“Estado de emergência para os Yanomami”*

Homme au cours d'une présentation cérémonielle Yanomami. Amazonas, 1997. Luis Donisete Benzi Grupioni
Homem num ritual Yanomami. Amazonas, 1997. Luis Donisete Benzi Grupioni

Por Nicolas Bourcier, enviado especial do Le Monde a Surucucu, Brasil
Traduzido do francês por Stéphan Bry

É uma batalha silenciosa, áspera, que está ocorrendo no coração da floresta amazônica, ao longo da fronteira com a Venezuela, nos planaltos brasileiros de noites frias e dias de calor. Só as crianças, “vestidas de sol”, como dizem com pudor os padres missionários, parecem não dar nenhuma importância ao que está acontecendo ao redor.

Em todos, o cansaço se vê nos rostos. São uns vinte homens e mulheres, sentados debaixo de uma vasta lona, abrigados num pedaço de sombra. Mais longe, outros se amontoam nas tendas, deitados nas suas redes ou acocorados em volta de um fogo aceso para espantar os mosquitos e esquentar os beijus.

Eles falam pouco. Olhares preocupados e gestos simples, com as barrigas inchadas pela verminose, os pés frequentemente machucados pelos parasitas. Mais de uma centena de Yanomami chegam cada dia neste morrinho da Serra de Surucucu, no oeste dos estado de Roraima, para serem tratados por uma equipe de médicos voluntários. Eles chegam a pé depois de dias de caminhada ou num pequeno avião fretado pelo Expedicionários da Saúde (EDS), uma surpreendente ONG de Campinas – SP.

Pela segunda vez em onze anos, EDS se instalou por uma semana com sua sala de cirurgia móvel nestas terras onde vivem 16.000 Yanomami como na pré-história do País, ou melhor: na beira do país. Fantástico posto de observação dos males do momento, o lugar parece uma fortaleza onde os índios não foram ainda totalmente expulsos de suas áreas de caça e de colheita pelo avanço das frentes pioneiras. “Mas sua situação é preocupante”, explica Ricardo Affonso Ferreira, ortopedista fundador e animador do projeto. “Aliás, ela se degradou”.

O nome colado com fita adesiva no peito, um boné na cabeça, Mauas é um paciente comum. Como a maioria, ele não sabe a sua idade. Como muitos, ele vem para uma consulta com o médico pela primeira vez. Mauas espera ser operado de uma catarata, um problema do qual ele sofre há uns 10 anos, impedindo-o de participar das atividades tradicionais dos homens Yanomami. Seu cotidiano se tornou ainda mais difícil com a volta dos garimpeiros, que tinham sumido por muitos anos. “Eles poluem nosso rio, destroem nosso meio ambiente, criam conflitos com toda impunidade.”

Ianomani (Le Monde)

Palavras secas e firmes, também ditas por seus companheiros, que deixam transparecer um sofrimento crescente e um sentimento de abandono. “Os Yanomami estão sob pressão permanente”, afirma Rogério Duarte do Pateo, antropólogo e professor na Universidade Federal de Minas Gerais que acompanha a expedição da EDS. “Há não só a deterioração dos serviços de saúde básica e as manobras cada vez mais intensas das autoridades para tirar proveito deste espaço rico em recursos minerais, mas também a violência dos garimpeiros, que estão voltando para a região com a crise e a alta do preço do ouro.”

Até o começo do século XX, os Yanomami imaginavam serem sozinhos no mundo, ou quase, protegidos no vale do Orinico e pelos afluentes dos rios Branco e Negro. Os primeiros contatos com os brancos, coletores de produtos florestais, viajantes estrangeiros, militares ou agentes de proteção dos Índios, datam dos anos 1930. Durante as décadas seguintes, missões católicas e evangélicas se estabeleceram em torno de seu território, fontes de trocas mas também de epidemias mortais. No começo dos anos 1970, os índios foram ameaçados pelo projeto de construção de uma estrada transamazônica, a Perimetral Norte. Mas foi abandonado. Depois, no meio dos anos 1980, ocorreu a febre do ouro. 40 mil garimpeiros invadiram a região com suas máquinas para raspar o fundo dos rios e construir pistas para seus aviões. Mais de mil Yanomami morreram – em torno de 13% da população – dizimados pelas doenças trazidas pelos garimpeiros.

Sob o efeito das pressões internacionais, das ações locais e da alternância política em Brasília, a invasão dos garimpeiros está parada desde os anos 1990. As autoridades federais legalizaram o território Yanomami em 1992 com o nome de Terra Indígena Yanomami: 96 650 km², uma superfície um pouco superior à de Portugal, onde vivem 300 grupos.

Em 1999, é a idade de ouro. O governo decide transferir a gestão dos serviços sociais para as ONG, mais em contato com as populações locais. Mas a experiência não dura. O governo Lula inverte o processo em 2004, e o governo federal reassume estes serviços. Os orçamentos aumentam, mas o sistema perde sua qualidade. Casos de corrupção são denunciados. As epidemias são vencidas graças às quarentenas estabelecidas pelos postos de saúde espalhados no território, mas o atendimento médico de base é mais e mais escasso. O absenteísmo, a falta de material: a Casa do Índio, localizada na periferia de Boa Vista, capital estadual, revelam as carências do sistema. Cada dia, a instituição recebe 500 pacientes na espera de uma intervenção no hospital público da cidade. No melhor dos casos, estes pacientes devem esperar duas ou três semanas.

Davi Kopenawa, pajé respeitado e porta-voz Yanomai há 30 anos, acompanha também a expedição. “Antes, éramos nômades, muito mais móveis para caçar e procurar nossos alimentos. Sob a pressão dos garimpeiros, nos tornamos mais sedentários, o que é ruim para a alimentação e a saúde. O ouro, os diamantes e até o urânio que as grandes empresas cobiçam devem ficar no solo. Isto pertence à terra, e é ela que nos alimenta.”

Atingido pela violência

O homem é revoltado e tem uma linguagem ferina, indignado pelos lutos que castigaram sua família, dizimada pelas infecções. Ele se preocupa com as violências vindas com os garimpeiros apoiados pelas redes de traficantes, que ele não cansa de denunciar. Mais famoso ainda graças a seu livro A Queda do Céu (La Chute du ciel, coleção “Terre Humaine”, editora Plon, 2010), co-escrito com o antropólogo francês Bruce Albert, Davi pode ficar horas contando os perigos que atingem os Yanomami. “Há brasileiros que nos apoiam e estrangeiros também. Mas as pessoas daqui, que moram perto, continuam sendo nossos inimigos, eles e seus poderosos patrocinadores”.

Hoje, estima-se que o número de garimpeiros é superior a 1.300. Uma alta contínua desde 2009, segundo a Funai. “A policia efetua operações, algumas pistas de aterrissagem são dinamitadas, mas não é suficiente. Os garimpeiros voltam” explica Fiona Watson, da Survival International, organização de proteção das condições de vida dos povos originários.

“As ameaças continuam, às vezes com um certo refluxo, mas agora sentimos um aumento geral, favorecido pelas mais altas esferas do Estado” destaca o professor Duarte do Pateo. Apoiados pelas mineradoras e os lobbies agrícolas, mais ou menos 70 projetos de lei permitindo a exploração dos territórios indígenas estão tramitando no legislativo em Brasília. A região que concentra o maior número de pedido de exploração é a Terra Yanomami.

Houve uma reunião no dia 11 de setembro entre ministros e uns 30 deputados da bancada ruralista para defender um texto que mudaria as regras de demarcação das terras indígenas. Um outro projeto pretende suspender qualquer demarcação. Foi elaborado pela senadora Katia Abreu, presidente da Confederação Nacional de Agricultura e conhecida por sua proximidade com membros do governo Dilma Rousseff.

O contexto é preocupante: um recente estudo indica um aumento de 437% de superfície desmatada na Amazônia desde a reforma do Código Florestal, em maio de 2012. Veredito: “A presidente é oriunda desta esquerda cujo modelo se apoia no progresso econômico e a justiça social. Um modelo do qual são excluídas as culturas primitivas.”

Advogada experiente por anos de trabalho ao lado dos Yanomami, Ana Paula Caldeira Souto Maior explica: “Tenho a impressão que voltamos 25 anos para atrás. O atual governo trata a Amazônia como o faziam os militares nos tempos da ditadura, isto é: exclusivamente pela lente dos recursos naturais, do crescimento, do desenvolvimento.”

Na pequena colina de Surucucu, Davi Kopenawa se prepara para dormir. Ele agradece aos médicos da EDS. Dentro de alguns dias, quando eles terão indo embora; um médico cubano deve se instalar aí pelo programa governamental “Mais Médicos”. Serão cinco médicos para todo o território Yanomami. Davi Kopenawa acha isso muito bom.

Mas ele quer acrescentar uma coisa, a respeito de seu encontro com Dilma Rousseff no final de agosto. Ele diz não ter recebido nenhuma promessa para o futuro; só a indicação de que a presidente agirá no quadro da Constituição. “Ela deve tomar cuidado, a natureza escuta tudo. E, sobretudo, ela não esquece nada”.

Davi Kopenawa"Eles não invadiam a terra, mas a nossa cultura, a nossa tradição, o nosso conhecimento. Eles são outro pensamento para tirar o nosso conhecimento e depois colocar o conhecimento deles, a sabedoria deles, a religião deles". Foto: acercandoelmundo.com
Davi Kopenawa. Foto: acercandoelmundo.com


*Artigo publicado por este blog no original – “Au Brésil, état d’urgence pour les Yanomami” (Le Monde no original) -, no dia 27 de setembro de 2013.

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