Estrada no Parque do Iguaçu causa controvérsia

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Um caminho de terra de 17,6 quilômetros em meio à mata cerrada é o pivô da mais nova controvérsia ambiental em tramitação no Congresso. Fechada oficialmente em 1986, reaberta clandestinamente e novamente fechada em 2003 por decisão da Justiça Federal, a cicatriz da Estrada do Colono, no Paraná, pode ser vista em foto aérea, dividindo o Parque Nacional do Iguaçu, um dos mais importantes do país. Projeto de lei aprovado pela Câmara e a caminho do Senado propõe a reabertura da rota, agora como “estrada-parque”. A iniciativa encontra resistência do Ministério do Meio Ambiente, da Polícia Federal (PF), da bancada ambientalista no Congresso e de centenas de ONGs. Argumentam que reabrir a estrada não só coloca em risco um dos parques mais preciosos do Brasil, mas pode ter efeito explosivo: permitir a abertura de outras vias em qualquer unidade de conservação do país

Daniela Chiaretti – Valor

O projeto de lei 7123/2010 proposto pelo deputado Assis do Couto (PT-PR) foi aprovado por uma comissão especial da Câmara em julho e está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) para ser votado e ir ao Senado. “Apresentei o projeto depois de esgotadas as possibilidades de um acordo. É um conflito que dura 27 anos”, diz Couto. Sua proposta, diz ele, promoverá o turismo e o desenvolvimento sustentável da região.

A Estrada Parque Caminho do Colono não teria asfalto, mas outro tipo de pavimento, seria apenas para veículos de passeio e teria vistoria de carros e pessoas. “Também facilitaria o acesso dos moradores das cidades na beira do parque, que têm que dar uma volta de 180 km para visitar familiares”, diz, referindo-se aos moradores de Capanema, Serranópolis do Iguaçu e Medianeira. Com a estrada são apenas 18 km.

O discurso ecológico não convence os opositores da iniciativa, a começar pela ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira. “É um acinte o Brasil querer reabrir a Estrada do Colono”, disse em evento recente em Foz do Iguaçu. “Essa é uma disputa que a sociedade faz há mais de 20 anos, com decisões do Supremo Tribunal Federal. Sou frontalmente contra a reabertura, é inaceitável. Não preciso reabrir a estrada para promover o desenvolvimento sustentável no Paraná.”

Em nota ao Valor, a ministra adicionou: “A manutenção dessa estrada aberta e com tráfego de veículos e pessoas, no meio do Parque Nacional do Iguaçu, tem impactos significativos sobre o meio ambiente (…) e do ponto de vista de segurança de fronteiras é crítica. A Polícia Federal chamou a atenção para o fato de que ela era, no passado, amplamente utilizada para transportar contrabando, armas, drogas e munições. E agrega, à lista dos problemas potenciais de segurança, a caça, a exploração clandestina de palmito, o tráfico de animais silvestres, a biopirataria. Esse impacto será potencializado, se a estrada for implantada”.

Em maio de 2012, o superintendente regional da PF no Paraná, José Alberto de Freitas Iegas, declarou que a proximidade com a fronteira “facilitava a utilização indevida” da Estrada do Colono quando estava em funcionamento, apesar de “encurtar distâncias e ter promovido o desenvolvimento dos municípios próximos.” Iegas, atual diretor de inteligência da PF, dizia que, com dificuldades de recursos humanos e financeiros, a PF do Paraná não poderia controlar “com rigor o tráfego de veículos e pessoas” por ali e que a reabertura “seria mais um complicador no que se refere ao controle de nossas fronteiras”. Procurada agora, a PF não quis se manifestar.

Izabella diz ainda que “a justificativa do potencial turístico é vazia. A área não tem atrativos cênicos ou recreativos.” A estrada que leva às cataratas, e encanta milhares de turistas, fica bem distante do caminho do Colono. “Hoje, é possível entrar no Parque do Iguaçu e andar por vias asfaltadas. O problema é que essa estrada não é para visitar o parque, é para atravessar o parque”, diz Marcio Santilli, coordenador do Instituto Socioambiental (ISA). “No caso das estradas-parque dos EUA, o cenário para o turista é deslumbrante. Não aqui. Essa estrada é só mato de um lado, para cair do outro lado, na soja. Não tem paisagem.”

“Essa estrada existiu aqui a vida inteira”, defende o vice-prefeito de Capanema, Valter José Steffen (PDT), um dos 14 municípios no entorno do parque. O caminho ligava as regiões Sudoeste e Oeste do Paraná e segundo seus defensores, foi trilha indígena, rota de peões e até trajeto da Coluna Prestes. Depois virou estrada de terra, com trânsito de carros. “Até o dia em que se tentou asfaltar a via, mas entraram com uma ação judicial e ela foi fechada”, conta Steffen. Capanema, diz, tinha 33 mil habitantes e depois do fechamento da estrada, encolheu. Hoje são 18.500 moradores. Com sucessivas reaberturas clandestinas, a rota foi fechada de vez pela Justiça em 2001 e a mata foi tomando conta.

“O fechamento da estrada, para nós, foi uma aberração. Os comerciantes se desestimularam e foram embora”, diz o vice-prefeito de Capanema. “A estrada não seria ruim para o parque desde que fosse bem planejada”, concorda Ivo Roberti, vice-prefeito de Serranópolis de Iguaçu, de 4.600 habitantes. No caso de Serranópolis, o parque do Iguaçu produz a receita mais importante do município – 15 a 18% do orçamento vem do ICMS ecológico, forma de compensar cidades que têm, por exemplo, unidades de conservação em seu território.

Capanema, Medianeira e Serranópolis do Iguaçu, três cidades afetadas pelo fechamento da Estrada do Colono, vivem do agronegócio. Todas têm alto IDHM, e os índices têm crescido nos últimos anos. “Até pouco tempo existia caça ilegal e extração de palmito, mas os moradores vizinhos ao parque cuidam dele”, diz uma funcionária pública de Medianeira que prefere não se identificar. “Os moradores daqui não têm nenhum benefício com o parque, a não ser pagar menos no ingresso”, afirma.

Não há consenso sobre se a estrada existia antes do parque, ou se foi o contrário. “O caminho do Colono é mais antigo que o Parque Nacional do Iguaçu”, diz a cartilha elaborada pelo deputado federal Assis do Couto. Maria Luisa Ribeiro, coordenadora de projetos da Fundação SOS Mata Atlântica e especialista em estradas-parque, tem outra versão. “Quando o parque foi criado, o caminho do Colono de fato existia, mas era apenas uma trilha. A estrada só apareceria 30 anos depois do parque”, diz ela.

Foi Getúlio Vargas quem criou, em 1939, o Parque Nacional do Iguassu. Era o segundo parque nacional brasileiro, depois do Parque Nacional de Itatiaia. Foi criado por sugestão de Alberto Santos Dumont, que visitou a região, espantou-se em ver o patrimônio natural restrito a propriedades privadas e convenceu o governo a investir na área. Tem 185 mil hectares – ou 1.850 campos de futebol – e arrecada por ano cerca de R$ 15 milhões. Conhecido pela beleza e pelas cataratas espetaculares, é o maior remanescente de floresta Atlântica na região Sul do Brasil, o último do gênero.

Em 1986, foi reconhecido pela Unesco como Patrimônio Natural da Humanidade – espécie de Prêmio Nobel das unidades de conservação -, reconhecimento que ficaria ameaçado, se a estrada for reaberta, dizem ambientalistas. “A eventual abertura dessa estrada coloca em risco um patrimônio da humanidade. O assunto tem implicações no âmbito internacional”, diz Santilli. Mais de mil instituições não governamentais mandaram carta à ONU, à Unesco e à IUCN, a mais famosa entidade internacional de conservação, relatando o projeto de lei no Congresso e os impactos que, acreditam, a estrada possa ter.

“É um dos ícones nacionais de conservação, uma estrutura organizada e com serviços de primeira”, diz Maria Cecilia Wey de Brito, secretária-geral do WWF-Brasil. Além disso, tem importância única em um bioma que perdeu 80% de suas florestas. “A estrada atravessa o parque ao meio e foi aberta à revelia. O desenvolvimento do Estado do Paraná está comprometido porque a estrada não existe?”, questiona. “O que está em jogo aqui, além de um discurso discutível, é o constante embate entre interesses privados e interesses públicos”. Em sua visão, a intenção de transformá-la em “estrada-parque” é “travestir uma estrada que não tem essa função, e não é necessária do ponto de vista do turismo. É uma iniciativa com interesses específicos e que quer mudar uma lei que foi discutida por 20 anos.”

A lei em questão é a 9985/2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, a chamada Lei do SNUC, que criou unidades de proteção integral (como parques nacionais e reservas biológicas) e unidades de uso sustentável (reservas extrativistas, por exemplo). São 12 categorias, algumas permitem ocupação humana, outras, exploração econômica. Há aquelas para pesquisa científica e outras de proteção severa – é o caso do Parque Nacional do Iguaçu.

Ao tramitar na comissão especial, o relator do PL 7123, deputado Nelson Padovani (PSC-PR), elaborou substitutivo que altera a Lei do SNUC e cria nova modalidade de unidade de conservação, as estradas-parque. “Fizemos 12 audiências públicas”, diz. “Queremos que o turismo cresça com as estradas-parque e queremos de volta o que é nosso”, diz. “Como podem proibir o direito de ir e vir?”.

“É uma maluquice”, reage o deputado José Sarney Filho (PV-MA), buscando estratégias para derrubar o projeto. A estrada aproxima o Oeste do Sudoeste do Paraná, “mas com poucos ganhos econômicos e inúmeros problemáticos”, diz a deputada paranaense Rosane Ferreira (PV-PR), único voto contrário ao projeto na comissão especial. “Qualquer pessoa que tenha um mínimo de entendimento do que é sustentabilidade, é contra. Vamos fragilizar o parque.”

Rosane havia conseguido 80 assinaturas de deputados pedindo para que o assunto fosse para plenário e não diretamente ao Senado. “Mas conseguiram que 40 deputados retirassem as assinaturas e o recurso caiu”, diz ela. O deputado Arnaldo Jardim (PPS-SP) foi um deles. “Tenho posição contrária à reabertura da estrada. Retirei minha assinatura inadvertidamente, as pessoas me pediram, foi uma confusão.” O deputado Márcio Macedo (PT-SE) também reconheceu ter se enganado ao retirar a assinatura.

“Estamos falando de mudar o sistema nacional das unidades de conservação por conta de uma estrada de 17,5 quilômetros”, diz Clóvis Borges, diretor-executivo da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem (SPVS), ONG baseada em Curitiba. “Temos uma estrada de acesso às cataratas e ninguém está pedindo para que seja fechada. Mas a Estrada do Colono não tem atrativo turístico e não há melhoria econômica, se for reaberta. O que há é degradação ambiental.” Para Jean François Timmers, do WWF-Brasil, “o caso da Estrada do Colono é grave, porque corta a parte mais preservada do parque, encerra uma manipulação jurídica e cria um precedente perigoso”.

“Em que pese que, em determinado momento, essa via teve importância, hoje o contexto é outro”, afirma Roberto Vizentin, presidente do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente e responsável por cuidar das unidades de conservação do país. “Definitivamente, essa estrada não traz benefício nenhum, nem para o parque, nem para a região do entorno.”

Vizentin também discorda do argumento que é preciso modificar a Lei do SNUC para criar a figura da estrada-parque. “Temos muitos parques nacionais com estradas. Isso é um falso debate”, e menciona o parque nacional da Tijuca e o próprio Iguaçu. “Não somos contra estradas em parques, nem contra a abertura de parques para visitação. Mas aqui estão se valendo de um argumento falso para justificar a abertura, no coração do Parque Nacional do Iguaçu, de uma estrada que não tem função econômica ou ecológica.”

Não há consenso sequer sobre o estado da antiga rota. Na cartilha do autor do projeto lê-se que a estrada do Colono ainda existe. “A mata tomou todo o caminho. Não se enxerga a antiga estrada, a não ser por um tom de verde mais claro e vegetação mais baixa”, diz Maria Luisa, da SOS Mata Atlântica. “Se forem abrir a estrada, será um novo desmatamento.”

Será preciso desmatar 17 mil m2 de floresta, calcula o biólogo Apolonio Rodrigues, chefe de manejo do Parque do Iguaçu. “Isso não é interessante em lugar nenhum, imagine em uma unidade de conservação de Mata Atlântica, o bioma mais ameaçado do mundo.” Segundo ele, a “abertura da estrada traz uma lista gigante de impactos negativos para o parque.”

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