‘Não diferenciamos celas de senzalas’, diz assessora do governo sobre maioria negra nas cadeias

presidiária negra
“É bem assim. Tem racismo em tudo que é lugar. Aqui dentro algumas funcionárias fazem diferença com a gente”

Por Rachel Duarte, do Sul 21

Porto Alegre – “Porque a polícia respondeu às manifestações dos centros urbanos com bombas de efeito moral e na Favela da Maré (RJ) com arma de fogo?”, questionou a assessora do gabinete da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, Deise Benedito. Em palestra na Penitenciária Feminina Madre Pelletier, em Porto Alegre, ela falou sobre o racismo subjetivo que conduz a ação das polícias e do Judiciário no Brasil. Ela falou diretamente às vítimas do preconceito racial e social do país – que acompanharam com sinais de concordância, como se estivesse ouvindo um gestor finalmente falar à sua língua.

“É bem assim. Tem racismo em tudo que é lugar. Aqui dentro (prisão) algumas funcionárias fazem diferença com a gente. Eu faço de conta que não existe isso. Mas tem. Até entre nós mesmas”, disse L.R, presa que engrossa a estatística de 40% de negras e pardas na penitenciária feminina gaúcha.

A colega de cela, S.G, contou que é a segunda vez que vai para cadeia por falta de oportunidades. “Eu não consigo trabalhar. Na primeira vez que caí aqui, quando sai, fiquei três anos sem conseguir trabalho. Fazia bico com capina e faxina na vizinhança. A primeira que fui pega com coisa (droga) que era minha eu assumi. Só que agora, eu já tinha passagem e estava no meio da batida da polícia que nem perguntou e me trouxe junto. Eu não quero pagar pelo que não é meu”, disse.

O relato da presa reproduz a realidade cotidiana das abordagens policiais no país, afirma a assessora do governo federal, Deise Benedito. “A abordagem da polícia a um grupo de brancos na rua e a um grupo de negros é diferente. E, violência gera violência. Ninguém nasce odiando ninguém, o racismo é algo que se aprende”, argumenta. Ela acredita nas políticas afirmativas da União, por meio de oferta de qualificação em Direitos Humanos para os profissionais da área da segurança pública, mas, admite que o preconceito está arraigado na cultura brasileira há 500 anos e demanda um esforço maior e cotidiano. “Quando vemos uma propaganda na televisão que mostra um casal de negros comendo pão com manteiga? Quando vemos a beleza negra ser padrão? Temos 5 milhões de indígenas e 3 milhões de negros como nossos ancestrais e nosso padrão de beleza é a ditadura européia”, crítica ao exibir belas mulheres negras em um PowerPoint.

Além da crítica à mídia, pela reprodução da exclusão racial, Deise também fez uma reflexão sobre o processo de ensino-aprendizagem que, não raras vezes, discrimina os alunos na sala de aula. “Vocês já viram alguma vez a noiva da festa junina ser a aluna negra?”, questionou. Foi interrompida por um “não” unânime da plateia. Aos negros que vieram em 1500 para o Brasil nos navios negreiros só restou, afirma a gestora, após o fim da escravatura, a liberdade sem apoio, sem políticas públicas e sem acessos. “Isto não é liberdade. Isto é aprisionamento. Hoje não sabemos diferenciar celas de senzalas na maioria das cadeias do país”, diz Deise, que é responsável por inspeções nas penitenciárias.

Conscientização

A palestra de Deise Benedito integrou uma programação inédita no país. Pela primeira vez uma penitenciária realizou uma conferência livre étnico-racial e de gênero. A Secretaria da Segurança Pública, por meio da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), pretende conscientizar as presas sobre a realidade de triplo preconceito que elas terão que enfrentar ao retomar a liberdade. “Queremos reconstruir a cidadania destas mulheres que sairão daqui cientes de que são mulheres, negras e ex-presidiárias, e, deverão estar preparadas para enfrentar estes estigmas”, explicou a coordenadora penitenciária da Mulher, Maria José Diniz.

Na avaliação do representante da Comissão de Direitos Humanos da Procuradoria Geral do RS, Gleidson Renato Martins Dias, as transformações da sociedade ao longo da história sempre discriminaram negros e índios. Por esta razão, é difícil romper as barreiras que separam as classes. Por meio da carta dos presos da Casa de Detenção de São Paulo, em 1978, ele afirmou que as violações aos direitos humanos de ontem são as mesmas de hoje. “Eles escreveram de dentro do presídio denunciando o que hoje estas presas denunciam”, relatou.

Segundo Renato Dias, enquanto o governo federal caminha para avanços na igualdade racial e social, com políticas afirmativas e programas de oportunidades para jovens, os demais poderes se mostram conservadores na luta contra a igualdade de condições. “A inexistência de negros no sistema judicial e legislativo acaba deixando espaço para os que tentam barrar estes avanços”, defendeu.

O evento na Penitenciária Madre Pelletier foi preparatório para uma conferência estadual sobre o tema, que será realizada em agosto. Detentas, representando penitenciárias femininas do Estado, participarão como público e como debatedoras. A intenção é elaborar políticas para as mulheres negras em situação de prisão. “Vocês estão com os corpos presos, mas as mentes livres. Estudem e tenha consciência das coisas para que possam seguir adiante ao sair daqui”, incentivou Deise Benedito.

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