4 questões sobre a nova demarcação de terras indígenas

Índios Iauanauás
Índios Iauanauás: desde o ínicio de junho, comunidades indígenas fizeram protestos por todo o país e dois índios acabaram mortos no Mato Grosso do Sul.

Por Bárbara Pereira Libório, de Exame

São Paulo – As novas regras de demarcação de terras indígenas devem sair no próximo mês. É o que afirmou Gilberto Carvalho, ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, quarta-feira (26) em audiência na Comissão de Agricultura da Câmara. Segundo ele, o governo deve publicar uma portaria complementar ao Decreto 1775, que regulamenta as normas de demarcação de terras indígenas. A ideia é que  o processo de delimitação das áreas reservadas para índios deixe de contar apenas  com a participação da Funai (Fundação Nacional do Índio) .

Além do órgão, devem ser consultados os ministérios do Desenvolvimento Agrário; do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; das Cidades; e da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Órgãos subsidiários, como a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) e o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) também devem participar da decisão. Para isso, será criada uma assessoria no Ministério da Justiça que também deverá acompanhar os conflitos indígenas.

A resposta das comunidades indígenas, contudo, não foi positiva. Nas últimas semanas, grupos fizeram protestos por todo o país e dois índios acabaram mortos no Mato Grosso do Sul. Produtores rurais, que lutam pela suspensão da demarcação em diversas áreas do Brasil, também fizeram manifestações. A Casa Civil, por meio de sua assessoria de imprensa, afirma que o objetivo do novo modelo é dar mais segurança jurídica ao processo. Segundo nota emitida pelo órgão, “o que o governo busca hoje é um diálogo amplo entre as partes envolvidas, para que a solução se dê pelo diálogo e não pela pressão ou violência”.

1. O enfraquecimento da Funai

A Casa Civil também já declarou que “ao contrário do que vem sendo dito”, não há intenção de esvaziar a Funai, que deve continuar sendo importante no novo modelo. Mesmo assim, a retirada da exclusividade no processo de demarcação tem alimentado a sensação de que o órgão será enfraquecido.

Em meio aos conflitos, a antropóloga Marta Azevedo deixou o cargo de presidente da Funai na primeira semana de junho. Apesar dela alegar problemas de saúde, sua saída já era dada como certa pela imprensa desde o início das especulações sobre as novas medidas.

Corre na Câmara dos Deputados um pedido de instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) – protocolado pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) – para investigar possíveis irregularidades na atuação do órgão.

Cleber Buzzato,  secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), pondera que a Funai tem deficiências, como o déficit de orçamento e de pessoal. No entanto, para ele, a solução do problema está no fortalecimento do órgão, e não no contrário. “É necessário que a Funai receba por parte do governo os investimentos necessários para que ela atue de forma mais ágil, dando conta de suas responsabilidades”, afirmou.

Procurada pela reportagem, a Funai, através de sua assessoria de imprensa, se limitou a dizer que ainda não foi informada de nenhuma mudança.

2. Lentidão no processo e aumento dos conflitos indígenas

Para Buzzato, do Cimi, o novo modelo do governo pode fazer com que o processo de demarcações se torne ainda mais demorado. “Essa proposta trará mais dificuldades para que o Estado cumpra o seu papel, que é efetivar os direitos dos povos indígenas. Isso só trará o agravamento dos conflitos, e não a solução deles”, afirma.

Neli de Mello-Théry, ex-diretora de pesquisas do Instituto Brasileiro de Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), concorda que a retirada do monopólio da Funai não acelerará o processo de demarcação de terras. “A Funai é lenta, mas porque os procedimentos necessários para demarcação também são lentos”, afirma.

Neli explica que depois de identificar a área que será demarcada de acordo com laudos antropológicos, é preciso dar um prazo para que todos possam contestar a demarcação. Caso alguém o faça, todo o laudo precisa ser refeito. “Cada etapa que você avança, alguém pode questionar e fazer tudo voltar ao começo”, fala a geógrafa. O secretário-executivo do Cimi estima que, hoje, o processo já demore mais de uma década para ser finalizado.

Para Spensy Pimentel, antropólogo e pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios da USP, o Ministério da Justiça precisa agir para mediar conflitos, e não acirrá-los. “É preciso formar uma mesa de negociações. Os indígenas de áreas como o Mato Grosso do Sul estão muito esclarecidos sobre seus direitos e já deram muitas mostras de que não vão aceitar calados qualquer imposição de cima para baixo”, afirma.

3. A participação da Embrapa

Em maio deste ano, pareceres da Embrapa foram responsáveis pela suspensão dos processos de demarcação nos estados do Paraná e Rio Grande do Sul. Estudos do órgão atestaram que a presença dos índios guaranis nas terras solicitadas por eles é recente ou inexistente, contestando estudos antropológicos da Funai.

Em nota oficial, a Embrapa afirmou que “não tem a atribuição de opinar sobre aspectos antropológicos ou étnicos envolvendo a identificação, declaração ou demarcação de terras indígenas no Brasil”.

O órgão também explica que sempre realizou estudos sobre o uso da ocupação de terras no país e que, para isso, trabalha com informações dos órgãos governamentais, além de recorrer às imagens de satélites, bancos de dados geoespaciais e trabalhos de campo.

Para o secretário executivo do Cimi, a Embrapa não tem competência para atuar nas questões indígenas. “Mais de 96% do orçamento desse órgão é para pesquisas agrícolas em produção de larga escala. Qualquer participação dele beneficia o latifúndio e o agronegócio, e vai contra os interesses indígenas”, afirma Buzatto.

Segundo ele, os últimos pareceres da Embrapa sobre o assunto já demostram a “tamanha ignorância dessa empresa em relação à questão indígena”.

4. Sustentabilidade das terras indígenas

Para o indigenista Fernando Schiavini, a prioridade do governo deve ser dar sustentabilidade às terras indígenas. “Não adianta só demarcar, tem também que recuperar essas áreas”, afirma. “Com as terras devastadas pelo agronegócio, não dá para as comunidades continuarem produzindo alimentos e se reproduzindo culturalmente”.

Para ajudar nessa questão, a Embrapa e a Funai têm desde 1997 um Convênio de Cooperação Geral que delineia as diretrizes básicas para trabalhos de pesquisa, desenvolvimento e transferência de tecnologia para a promoção da segurança alimentar indígena.

Entre as demandas está o mapeamento das terras indígenas para gerar diagnósticos etnoambientais e possibilitar a gestão dos territórios. Além disso, há o resgate de sementes tradicionais, a identificação do potencial econômico de produtos indígenas e a capacitação de técnicos indígenas em práticas de manejo e conservação dos recursos naturais.

Portaria 303 e PEC 215

Paralelamente aos recentes anúncios do governo, outras duas situações podem alterar o processo de demarcações.

A portaria 303 da Advocacia Geral da União (AGU) quer estender a todas as terras indígenas brasileiras as condições de demarcação definidas pelo julgamento dos recursos do caso Raposa Serra do Sol, em 2009. Se aprovada, as 19 restrições definidas para o caso podem valer para outras áreas. Com isso, por exemplo, seria proibida a ampliação de terras já demarcadas e a venda ou arrendamento desses territórios. Além disso, rodovias, hidrelétricas, linhas de transmissão de energia e instalações militares poderiam ser construídas dentro das terras indígenas demarcadas.

Para o Cimi, as medidas devem ser esclarecidas pelo STF. Ele afirma que por se tratar de um caso específico, elas não devem ser estendidas às outras demarcações.

Além disso, corre no Congresso a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que transfere ao Legislativo o poder de oficializar as terras indígenas. O projeto, além de submeter a demarcação ao Congresso, torna possível a revisão de demarcações de terras indígenas já homologadas.

“Jogar a decisão final sobre as demarcações num balcão de negócios, como é hoje o Congresso – ainda mais que não há indígenas por lá -, seria rifar os direitos indígenas”, afirmou Pimentel.

Em abril, a Câmara dos Deputados criou uma Comissão Especial para discutir a PEC 215. O ato foi repudiado pelas lideranças indígenas, que chegaram a invadir o Plenário da Câmara para protestar.

“A PEC 215 é um instrumento mais agressivo no ataque aos direitos indígenas. É evidente que ela interessa ao setor latifundiário. Os povos indígenas estão se movimentando contra ela, na expectativa de que não seja aprovada, para que a bancada ruralista não tenha em suas mãos o poder de não demarcar mais terras”, explica Buzatto.

Compartilhada por Terezinha Dias.

Comments (1)

  1. A FUNAI deve ser totalmente reestruturada! É imprescindível a participação direta de lideranças indígenas representativas de todos os povos do Brasil. E sem NENHUMA INGERENCIA de outros ministérios. Aí, sim, será um avanço para o Brasil.

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