Sérgio Botton Barcellos*
No Brasil nas últimas semanas pudemos observar e participar de um conjunto de manifestações por diversas localidades do Brasil e por um conjunto de pautas, dentre elas a questão do aumento da tarifa do transporte público e as condições precárias de mobilidade urbana, que podem ser consideradas um dos estopins imediatos das últimas manifestações. Dentre várias manifestações acirrando os ânimos e provocando os manifestantes, que levaram os protestos a se transformar em uma revolta popular, foram as contínuas ações violentas da Polícia Militar.
Uns dizem que o Brasil, o gigante, ou sei lá quem acordou. Outros meio estupefatos, pois não conseguem entender o que está acontecendo. Muitos outros estão participando das manifestações reivindicando mudanças pontuais e até transformações sociais. Basta recorrer aos livros e notícias cotidianas, para perceber que o povo já está mobilizado e nas ruas há muito tempo, os movimentos sociais que se organizam no espaço rural e urbano estão mobilizados e na resistência faz muito tempo, como os Movimentos pelo transporte, Movimento dos atingidos pelos grandes empreendimentos (Vale do Rio Doce, Belo Monte, etc..) e Copa do Mundo, Movimentos Feministas, Movimento GLBTS, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Movimento dos Sem Emprego, Comissões Pastorais, Movimento Estudantil e uma grande variedade de outros movimentos.
O povo já estava desperto há muito tempo, não talvez em forma de multidão. O mesmo pode-e evidenciar, em relação a violência policial com agentes fardados e a paisana, não é novidade, pois acontece cotidianamente pelas ruas e periferias brasileiras.
A multiplicidade de pautas e acontecimentos que estão contidas nas manifestações, além do transporte público e da Copa do Mundo, não permite ter certeza de uma única interpretação sobre como essas mobilizações foram possíveis. Quem achar que consegue captar todas suas dimensões e projeções futuras de imediato corre um sério risco de ter uma interpretação inapropriada das diversas manifestações que estão ocorrendo, para defender hipóteses dedutivas e previamente elaboradas, para confirmar seus próprios argumentos e responder sozinho suas próprias questões, sem se permitir ao exercício de participação, de refletir e disputar o sentido dessas mobilizações em seu lócus privilegiado, ou seja, nas ruas. Esse texto busca trazer alguns elementos para o debate e trazer apenas dois, dos muitos pontos de vista disponíveis na rede, para estimular o debate sobre o atual momento.
Os muitos, dos muitos grupos contidos e alguns sentidos dessas manifestações
Evidencia-se uma ambivalência em nossa cultura política brasileira que ao mesmo tempo em que questiona certas posturas e atitudes nas manifestações, como as atitudes de vandalismo, ou as bandeiras partidárias, ou os “caras pintadas” com a bandeira do Brasil, também são retroalimentadas no cotidiano pelas instituições de Estado e grande mídia. Contudo, o conjunto de fatores que levaram esses diversos grupos sociais saírem nas ruas aos milhares, são bastante influentes e se entrelaçam em uma perspectiva democrática e de uma parcela que almeja transformações sociais, como pautar a desigualdade social, ao mesmo tempo com diretrizes conservadoras, autoritárias e ufanistas que se reconfiguram e são apresentadas pela mídia com um revestimento democratizante.
Um traço disso, é que conservadores estão determinados a também sair das redes sociais e ir às ruas. Uma das características dessas manifestações, o que não pode ser desconsiderado, é que depois que a grande mídia comprou as manifestações e isso virou um viral nas redes sociais, muitos/as vestiram suas “velhas roupas coloridas” (como diria Belchior) em algum momento na segunda e quinta passada e resolveram ir às ruas para dar uma rejuvenescida na sua monótona vida pequeno burguesa, uma refrescada em seus preconceitos e reafirmar suas crenças sobre a “nação”.
Outra coisa, que observa-se inclusive nos campos políticos que ainda se dizem de esquerda, nem que em performance estética, fazem uma espécie de meta discurso generalista denominando uma grande parte dos/as participantes das manifestações como fascistas, ou de direita e como conspiradores de um golpe de Estado. Ora francamente, esse tipo de discurso, despolitiza o debate, tanto, quanto as ações de traços ufanistas e de algeriza as bandeiras partidárias que estão ocorrendo nas manifestações.
Em suma, rótulos, deduções e a arrogância ao analisar os recentes fatos e manifestação são frutos de uma formação política que há tempos não vem sendo feita, ou mesmo, que é realizada de modo protocolar no âmbito dos partidos e em muitas organizações de esquerda. Essas posturas, possivelmente não estão dando e nem darão conta para auxiliar na compreensão dos últimos acontecimentos e manifestações nas ruas. Atentemo-nos então em olhar e juntos nas ruas, quem está lá e por quais motivações estão ocupando esse espaço, junto com tantos/as outros/as.
Outra evidência dessas manifestações e que chama a atenção é a percepção de um tipo de ação conjunta das polícias estaduais no país, seja nos dias de arrefecimento dos combates aos manifestantes na quinta-feira (20/06), quanto no dia de suposta “trégua” como a que ocorreu nas manifestações de segunda-feira (17/06). Esse tipo de ação pôde ser observada, tanto na ação policial, quanto na de possíveis agentes policiais infiltrados nas manifestações promovendo a depredação dos prédios públicos e incitando demais manifestantes a essa ação.
Isto apesar de escamoteado, pela opinião pública, mídia e governo, é um fato que também deve ser mais analisado nesse contexto. Por exemplo, ação de agentes policiais infiltrados nas manifestações aparentemente, trata-se de uma prática tradicional da polícia mundo a fora, na qual infiltra pessoas nos atos promovendo atos de depredação para logo em seguida justificar uma ação policial mais ostensiva e violenta com o intuito de dispersar os manifestantes, ou mesmo, justificar atos de abuso da força policial e fragilizar politicamente as mobilizações perante a opinião pública.
Em relação a essas questões e um possível alinhamento de discurso da mídia com o governo, cabe trazer Noam Chomsky em um dos seus escritos, no qual ele abordou as estratégias de manipulação das informações e da mídia, como, por exemplo, a de criação de problemas para depois oferecer soluções e causar certa reação no público a fim de que eles sejam os demandantes das medidas que os grupos hegemônicos desejam. Por exemplo: deixar que se desenvolva ou se intensifique a violência urbana, ou organizar atentados sangrentos, ou criar uma crise econômica para fazer aceitar como um mal necessário o retrocesso dos direitos sociais e o desmantelamento dos serviços públicos.
Observa-se dos governos pouca sensibilidade com as pautas das manifestações e com pouco ou nenhum compromisso programático com as bandeiras históricas de luta no campo das esquerdas no Brasil. Exemplo disso é o atual governo federal, que diz que ouve os movimentos e as organizações sociais, mas não escuta (Sim, escutar requer outra atitude e outra sensibilidade!).
Os dois últimos governos e o recente governo federal representam uma construção histórica e anos de luta de uma significativa parcela da classe trabalhadora no Brasil e estava sendo protagonista em algumas transformações muito bem avaliadas na vida imediata do povo brasileiro, como, por exemplo, as políticas de redistribuição de renda. Contudo, não é por isso que não devemos ficar atentos em que medida está se fazendo política para desestabilizar e modificar os aparatos e mecanismos do Estado que historicamente replicam desigualdade e injustiça social no Brasil.
Ao não optarmos em pautar o sistema social e econômico desigual e (re) formador de preconceitos de gênero, expressão social, regionais, de raça e etnia, percebe-se que tendemos a criar uma reivindicação aparente por direitos exclusivos e uma indignação de pouco lastro reflexivo na sociedade, seja em um plano abstrato, ou na realidade concreta, para colocar em “xeque” ideologias que emergem em meio às formas de dominação que se expressam no atual estágio do capitalismo, mesmo com o verniz (muito mal passado) do respeito e a tolerância a diversidade.
Alguns debates necessários para o país, mesmo que ainda não feitos
Sob essa perspectiva, esse conjunto de grandes manifestações pelo Brasil, parece ser uma das grandes possibilidades de refletir e atuar um pouco sobre a realidade em que construímos e vivemos. Ao ir para a rua sem ter uma pauta discutida e comprometida com a transformação da realidade que beneficie a maioria da sociedade, por exemplo, ao não realizar a autocrítica sobre a ação de preconceito e agressão a partidários, banalizar as instituições políticas e exaltação aos símbolos nacionais em um contexto atual além de uma retórica contraditória e banalização do cotidiano, o que, sob o reino do cinismo, como indica Safatle (2008) implica uma inércia na modificação do agir, pois o sujeito automatiza e se dessolidariza de seu próprio ato.
Este cinismo traria consigo a falência de certa forma de crítica social, afinal, em tal regime de “racionalidade cínica”, não é mais possível pensar a crítica entre situações sociais concretas, tratando a expressão e a linguagem da manifestação como pura forma, cujo conteúdo pode ser substituído (traduzido) ou valorado por uma racionalidade que se tornou procedimental. Portanto, essas manifestações tem sentido e direção, e não só uma, mas a questão que devemos nos atentar alguns dos fatores que motivam e dão direção a esses movimentos?
Diante desse contexto, aponta-se, mesmo que de forma incipiente, alguns pontos para o conjunto dos debates possivelmente pertinentes para o próximo período, que em algum dia vamos ter que encarar no Brasil, relacionados à função que o Estado está desempenhando junto com a sociedade, como:
– A necessidade de uma reforma do sistema político brasileiro urge e é um debate que não é somente atrelado a questão do financiamento público de campanha, mas também sobre a regulamentação do art.14º da Constituição Federal que trata dos plebiscitos, referendos, iniciativas populares e a participação da sociedade nos espaços de investigação de decoro no poder público. Isto é, rediscutir a democracia representativa, e voltar a fazer e viabilizar efetivos canais de democracia participativa na sociedade;
– Realizar um debate franco e aberto junto com a sociedade em relação aos megaeventos (copa do mundo e olimpíadas). Parece ser necessário debater junto com a sociedade o retorno social e as decisões sobre destinação orçamentária, prioridades eleitas e projetos previstos, pois até agora estes não foram, submetidos ao escrutínio e ao debate público, inclusive nos Conselhos da Cidade e Conselhos de Política Urbana. Lembrando que, segundo o Comitê Popular da Copa, cerca de 170 mil famílias estão ameaçadas de despejo e já ocorreu a remoção de mais de 8 mil famílias, afetando diretamente 24 comunidades em todo o país. (Sim, as recentes manifestações também têm esta motivação!);
– Dar início a construção de um planejamento de Estado em longo prazo e enfrentar a questão das reformas agrária e urbana no país, bem como considerar nesses debates a grande mudança demográfica que vamos ter a partir de duas décadas, com o atual ciclo de maior população em idade jovem da nossa história e o envelhecimento da população em 20-30 anos;
– Rediscutir o nosso sistema de segurança pública caracterizado por medidas repressivas, vigilância, cárcere e homicídio policial que criminalizam os movimentos sociais, a pobreza, a nossa juventude e os negros do país. Para isso, será necessário ampliar o conceito de segurança social abrangendo questões como: justiça social, defesa dos direitos sociais como saúde, educação, moradia, meio ambiente e demais demandas sociais;
– Esclarecer para a população a destinação de 100% dos royalties para a educação. Constata-se que isso somente ocorrerá no caso de futuros contratos de concessão, ou seja, quando novos poços de petróleo – localizados fora do “Pré-sal” – forem entregues à iniciativa privada. Para maiores esclarecimentos sobre o tema recomenda-se a leitura do artigo “ROYALTIES DO PETRÓLEO: PARA A EDUCAÇÃO???”;
– O modelo de transporte coletivo baseado em concessões para exploração privada e cobrança de tarifa está em crise, além de ser o terceiro maior gasto da família brasileira, no qual há cerca de 37 milhões de pessoas por falta de recursos que não usam o serviço (IBGE, 2010). O Brasil necessita urgentemente de projeto e programas de mobilidade urbana;
– A soberania alimentar que necessita ser tratada enquanto estratégia nacional para assegurar alimentação à população em modo permanente e que produzamos em condições para a produção em autossuficiência, distribuição e acesso da população a uma alimentação considerada adequada e saudável.
(In) Conclusões
O debate sobre “Qual o Estado que queremos?” e “Estado para quê e para quem?” percebe-se que é evitado por muitos setores e grupos políticos tanto de oposição, como alguns grupos partidários que compõem a situação no atual governo. Além de ser um debate considerado “complicado” do ponto de vista teórico, técnico e político, é considerado pouco viável do ponto de vista eleitoral. Claro, que, além disso, propor o debate sobre um Estado promotor de igualdade social tenderia a desestabilizar zonas de conforto, desconcentrar poder e recursos públicos direcionados para corporações e grupos mercantis privados. Esse debate sobre Estado no Brasil junto com a sociedade talvez seja adiado por muito tempo ainda, por mais que não faltem evidências de que precisa ser feito.
Ressalta-se que ao afirmar (talvez, mirabolar) que os/as jovens de classe média que se manifestam são fascistas ou quase, ou que há um golpe de Estado em curso, é se propor a colocar viseiras e andar em uma cancha reta equívoca, além de se incapacitar para responder ou mesmo atuar na disputa dos sentidos dessas manifestações. Destaca-se, que segundo pesquisas (talvez, não confiáveis), cerca de 46% das pessoas que foram a essas manifestações, estão participando pela primeira vez de tais atos.
Claro, não se recusa o fato de que tenham motivações protofascistas contemporâneas e que em muitas partes dessas manifestações os partidos são rechaçados. Mas em meio a isso há perguntas que podem ser feitas, como: por onde andaram os partidos nesse período que não estão com esses jovens? Porque os jovens de classe média e de outras classes que compõem as manifestações não se sentem representados pelas organizações e instituições políticas tradicionais? Os que se consideram de esquerda vão sair dos protestos, ou tentar controlá-los, ou montar os seus, ou disputar os que estão ocorrendo? Porque o governo nesses quase 12 anos não priorizou as pautas e o desenvolvimento de políticas públicas para a juventude?
O momento requer observação, escuta e participação tanto por parte das organizações e movimentos sociais historicamente constituídos no campo da esquerda, como dos setores no mínimo progressistas do governo. Evidencia-se que as manifestações não vão parar mesmo com a forte repressão policial, pelo menos até o final da copa das confederações. Soluções imediatistas, emergenciais ou políticas campanhistas de governo, como apenas a redução da tarifa do transporte, não vão dar resposta às pautas que estão colocadas. É preciso escutar os movimentos e organizações sociais e também realizar planos do governo a médio prazo a partir de uma nova agenda, com um novidades de sentido social e político, não com um novo apenas substantivado como estratégia de retórica.
*Sérgio Botton Barcelos faz doutorado em Ciências Sociais no CPDA/UFRRJ e atua na assessoria da PJR.