Gabriel Brito – Correio da Cidadania
Tal como estava cantado, o governo de São Paulo e a prefeitura da capital do estado anunciaram conjuntamente o reajuste das tarifas dos ônibus (municipais), trens e metrô (estaduais) para R$ 3,20. O Movimento Passe Livre (MPL) foi às ruas protestar e pedir revogação do aumento da tarifa em manifestações nos dias 6, 7, 11 e 13 de junho, no Centro, Faria Lima/Pinheiros e Paulista/Consolação.
Da mesma forma que nos protestos de 2011, uma forte repressão militar foi mobilizada para combater os mais de 30 mil manifestantes (na soma dos quatro dias, sendo praticamente metade no dia 11), tachados pela grande mídia de “vândalos” e de “baderneiros” pelo governador Geraldo Alckmin, expostos ao público como meros desocupados, desobedientes, riscando do caderno a completude de suas pautas e proposições políticas. De Paris, o prefeito declarou que “os atos de violência eram praticados por pessoas inconformadas com o ‘Estado de Direito’”.
Certamente, nem Alckmin e nem Haddad andam nos trens da CPTM (em greve), nas linhas de metrô e ônibus em horário de rush, onde há pisoteamentos, milhares de homens e mulheres encaixotados em latas de sardinha, pagando-se uma das mais caras tarifas de transporte da América Latina. Esta violência e falta de respeito com direitos elementares de milhões de pessoas – como o direito a um transporte público digno, de qualidade e com tarifas baratas – não entram no discurso destes governantes como desrespeito ao “Estado de Direito”.
Como mote central, os comunicadores nortearam seus ferozes ataques aos manifestantes em função da obstrução do trânsito (que não estaria muito diferente se não estivessem ocorrendo as manifestações) e dos danos ao patrimônio público, uma vez que guaritas e lixeiras foram reviradas, e vidraças de bancos e prédios comerciais quebradas (também por bombas e balas de borracha, como evidenciam diversas imagens).
Primordialmente, é importante lembrar que protestos e revoltas em torno da questão do transporte coletivo (e privatizado) têm sido uma das pautas mais recorrentes de luta da juventude brasileira. Tal como já descrito por diversos analistas, trata-se de uma juventude difusa, que busca livrar-se do esquema partidário, por vezes negando as próprias bandeiras de partidos e organizações tradicionais nas manifestações, e adepta de mecanismos mais horizontais de organização, ainda que de formas pouco solidificadas.
É importante ressaltar tal aspecto, pois os atuais donos do poder, de lado a lado, se apressaram em desqualificar o movimento e seu ideário. Para a direita, uma corja arruaceira que pode e deve ser varrida à força pela Polícia Militar, talvez simbolizada pela histeria do sempre polêmico promotor (?) de justiça Rogério Zagallo, que assim se posicionou frente ao protesto:
“Estou há 2 horas tentando voltar pra casa e um bando de bugios revoltados parando a Faria Lima e a Marginal Pinheiros. Por favor, alguém poderia avisar a Tropa de Choque que essa região faz parte do meu Tribunal do Júri e que, se eles matarem esses filhos da puta, eu arquivarei o inquérito policial? Petista de merda. Filhos da puta. Vão fazer protesto na puta que pariu. Que saudade do tempo em que esse tipo de coisa era (?) resolvida com borrachada nas costas”.
Não cabe aqui discutir a compreensão de democracia do burguês tradicional, muito menos de seus colegas de rede social, até porque a corregedoria do Ministério Público já abriu procedimento contra o temperamental juiz e a Universidade Mackenzie o demitiu de seus quadros. No mais, vale ressaltar que cerca de 1500 manifestantes andando 15 minutos na Marginal Pinheiros, em sua pista lateral, travaram menos o trânsito do que o desfile de todo o aparato policial, com dezenas de viaturas e caminhões da Tropa de Choque parados, em esquinas fechadas durante mais horas que a duração da marcha. O espetáculo de guerra foi repetido de forma especialmente exibicionista no dia 13, quando dezenas de prisões foram efetuadas antes mesmo de a manifestação dar qualquer passo e um brutal aparato sitiou a cidade, inclusive horas depois de encerrado o ato.
O mesmo tipo de protesto vem ocorrendo em diversos estados brasileiros nestes últimos anos, inclusive com alguns casos de reversão do reajuste, como em Natal, Porto Alegre, Goiânia e em Florianópolis – que, aliás, têm seus trabalhadores do setor em greve neste exato momento.
Porto Alegre também caminha nesta direção. E no Nordeste, ao menos em Aracaju, Fortaleza, Teresina e Natal (que aumentara de R$ 2,20 para R$2,40 e acaba de recuar a R$2,30), fortes protestos foram registrados, com a mesma repressão do poder público-militar.
Nesta segunda, 10, manifestação semelhante no Rio de Janeiro, cidade que passa por um violento processo de privatização de espaços e patrimônios públicos, terminou com a prisão de 31 pessoas. No mesmo dia, liminar deferida pela 1ª Vara da Fazenda Pública Estadual de Goiânia determinou a suspensão imediata da cobrança de R$ 3 a tarifa.
Diante disso, soa contraditório, pra dizer o mínimo, a crítica de setores governistas, ávidos em defender o petista recém-eleito Fernando Haddad, tratando de qualificar os manifestantes de “filhinhos de papai”, “extremistas da velha esquerda a fazer o jogo da direita”. Além de os protestos contarem com a presença de eleitores de Haddad, como evidenciaram as bandeiras da UNE, estes setores governistas apoiaram idêntico protesto nos anos de Kassab, conclamando todos a lutarem contra mais esse instrumento de exclusão social.
É evidente que, além dos trabalhadores – que, por passarem de 3 a 6 horas presos nos coletivos, sequer possuem tempo de protestar com visibilidade -, os atuais preços pesam fortemente sobre os bolsos do estudante médio.
Além do mais, ao invés de produzirem avaliações políticas precipitadas, seria mais produtivo conferir de perto as facetas do movimento. Bastaria observar as janelas dos arranha-céus comerciais, portas de estacionamentos, lava-rápidos, guaritas e bares para notar que os trabalhadores, aclamados em discursos pela ala governista, estavam atentos, com sorrisos e gestos de alento e aprovação à marcha dos “pequeno-burgueses universitários”.
Por fim, alguns bairros periféricos, com destaque pra M’Boi Mirim, na zona sul, contam com manifestações, que incluem bloqueios, confrontos com a polícia e queima de ônibus, há pelo menos uma década. Neste caso, a invisibilidade midiática cuida de bloquear a repercussão destas manifestações que ocorrem para além das regiões centrais, contempladas por políticas públicas.
A mesma invisibilidade, por sinal, que omite as centenas de crimes covardes cometidos pela polícia legada pela ditadura militar, à qual é autorizada a utilização de um monumental aparato de guerra e o uso abusivo da força. Estes são o Estado e a polícia festejados pela mídia e seu público.
Com uma mídia dessa estirpe, o extinto DOPS não teria, muito provavelmente, necessidade de enviar diariamente seus agentes às redações, a fim de revisarem todo o conteúdo a ser veiculado por meios de comunicação autoproclamados “livres, independentes e democráticos”, “a serviço do Brasil”. Só mesmo a violência policial contra seus próprios repórteres para quebrar um pouco deste açodamento.
Quanto à legitimidade e oportunidade dos protestos, muito menos massivos se comparados a tantos outros mundo afora, como os de hoje na Turquia, dos indignados espanhóis ou nos países árabes, saudados por essa mesma mídia, o jurista Jorge Luiz Souto Maior resume:
“O Movimento Passe Livre tem o mérito de nos forçar a colocar a questão do transporte público em pauta, para que todos tenham, de fato, o direito de ir e vir. Nesta linha da visualização social, é importante perceber que, mesmo considerando todas as dificuldades, facilmente verificáveis nas vias da cidade, a saída do transporte privado (cada um em seu carro, buscando caminhos alternativos), ainda é melhor – muito melhor – que o transporte público. O que nos força a reconhecer que o direito de ir e vir daqueles que, em virtude do desenvolvimento de um processo excludente, advindo da desequilibrada divisão do trabalho e da especulação imobiliária, foram deslocados para periferias distantes e que dependem de transporte público, tem sido ainda mais agredido: é fila no ponto; é ônibus que não para; é fila no trem; é trem que não chega; são ônibus e trens lotados, nos quais, durante as longas viagens, se intensifica a supressão da dignidade humana”.
Haddad acena com uma possível busca de recursos federais, a fim de subsidiar o transporte coletivo. Ainda que sem tocar na atual lógica e no lucro privado, e fazer coro condenatório com Alckmin, mostra interesse mínimo em buscar soluções, não só contendo o reajuste como tentando elaborar novas fórmulas para o bilhete único e suas integrações para mais de uma viagem de ônibus e/ou sobre trilhos.
O Movimento Passe Livre recoloca, portanto, em questão a lógica do serviço público e universal, tal qual se reivindica na saúde e educação, por exemplo. Lógica outrora levada adiante pelos próprios governos petistas, como se pode lembrar na gestão de Erundina e seu secretário Lucio Gregori. Já no final dos anos 80, delinearam projetos com essa premissa, sempre bloqueada por uma política tão privatizada quanto outros bens e direitos públicos. Há quem ainda se levante contra tal quadro.