Por Jaime Benchimol e Marina Lemle, em História, Ciências, Saúde — Manguinhos
Em seu artigo A emergência da medicina tradicional indígena no campo das políticas públicas, publicado em História, Ciências, Saúde – Manguinhos (vol.20, no.1, jan./mar. 2013), a antropóloga Luciane Ouriques Ferreira analisa com perspicácia as redefinições de sentido pactuadas entre representantes do Estado e de comunidades indígenas em encontros realizados no Acre, em 2006, reunindo médicos, parteiras, pajés e agentes indígenas de saúde de diferentes etnias.
Enquanto os últimos falam em nome de saberes e práticas localizados, não redutíveis aos critérios de mensurabilidade da medicina acadêmica, esta se apresenta como científica e fundamenta as políticas públicas, numa posição hegemônica, mesmo quando busca interagir com as medicinas por ela qualificadas como ‘tradicionais’.
Nesta entrevista ao blog da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, a antropóloga explica que as medicinas tradicionais indígenas podem ajudar a ampliar a cobertura dos serviços de atenção à saúde dos povos indígenas em regiões de difícil acesso, bem como contribuir para a atenção diferenciada e integral, mas, para isso, os profissionais de saúde precisam comunicar-se de forma intercultural e construir, junto com as comunidades, rotinas de cuidados que articulem saberes e práticas de horizontes epistemológicos distintos.
Na última década, as parteiras ganharam novo status nas políticas públicas de saúde. Houve mudanças também no papel dos pajés? E os agentes indígenas de saúde, como se inserem no contexto?
Desde a Conferência de Alma-Ata em 1978 que os organismos internacionais das Nações Unidas reconhecem a atuação das parteiras, agentes comunitários e praticantes tradicionais como importante recurso da atenção primária em saúde. No Brasil, a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (Pnaspi), regulamentada em 2002, estabelece como uma de suas diretrizes a articulação entre os serviços de saúde e os sistemas tradicionais indígenas de saúde como forma de melhorar a situação dos povos indígenas e efetivar o direito de terem acesso a uma atenção diferenciada à sua saúde.
Conforme a Pnaspi, aos Agentes Indígenas de Saúde cabe o papel de mediar a relação intercultural estabelecida entre as equipes de saúde e a sua comunidade. Porém, a eles vem sendo delegada um lugar subordinado na organização dos serviços e não são raros os casos em que passam a atuar como representantes da biomedicina no interior de suas aldeias. De fato, até o momento as experiências de articulação entre esses sistemas sociomédicos são pontuais e dispersas. A maioria delas opera com um ideário integracionista que visa incorporar saberes, práticas e praticantes das medicinas indígenas ao sistema de saúde oficial, desde que devidamente qualificados e validados pela ciência moderna. Assim, as medicinas indígenas são instrumentalizadas e subordinadas ao modelo médico hegemônico, contribuindo para medicalizar áreas cada vez mais íntimas da vida comunitária indígena. É o caso dos cursos de capacitação de parteiras tradicionais indígenas, eventualmente ofertados pelos setores governamentais que atuam junto a essas populações.
Assim como os pajés, as parteiras tradicionais também não são universais entre os povos indígenas. Cada povo tem sua própria forma de organizar o cuidado com a gestação, o parto e o pós-parto, bem como de atribuir responsabilidades a cada cuidador, especializado ou não, que participa para que o empreendimento de produção de uma nova pessoa seja bem sucedido. Nesse caso, se faz necessário conhecer o sistema indígena de atenção ao parto em cada povo, para que as ações de articulação entre os serviços de saúde e as medicinas indígenas sejam desenvolvidas em conformidade com as realidades de cada comunidade, de modo a contribuir para garantir uma gestação saudável e um parto seguro para as mulheres indígenas.
Há 200 anos, práticas que hoje qualificaríamos de tradicionais, como as de curandeiros e parteiras, ainda eram legitimadas, como descrito por Tânia Salgado Pimenta, mesmo num sistema dominado por médicos acadêmicos. Porém, nas décadas seguintes, eles romperiam este pacto de convivência, passando a qualificar tais práticas como charlatanismo. Você trata de contextos dialógicos atuais que sugerem certa equidade. Como avalia experiências como as que incorporam pajés como coadjuvantes do tratamento em hospitais na Amazônia?
O artigo 231 da Constituição Federal de 1988, ao instituir o direito dos povos indígenas a manterem as suas línguas, costumes e tradições, também instaura as bases para o respeito e o reconhecimento da validade dos saberes, praticas e praticantes agenciados pelos seus sistemas sociomédicos. Portanto, qualquer discurso que qualifique as práticas e praticantes indígenas como “charlatanismo” está operando com os estereótipos e preconceitos vigentes no imaginário nacional acerca das medicinas tradicionais indígenas.
A princípio, experiências que incorporam pajés como coadjuvantes de tratamento em hospitais na Amazônia são pontuais e raras. No caso em que atuam, eles desempenham para os pacientes que atendem e seus familiares, não um papel coadjuvante, mas sim uma atuação fundamental no reordenamento da experiência de sofrimento vivenciada pelo grupo envolvido no episódio de doença. Os tratamentos realizados pelos pajés estão ancorados no mesmo universo sociocultural do qual fazem parte o paciente e seu grupo de suporte, portanto são radicalmente diferentes da abordagem biologicista e tecnicista dispensada pelos serviços de saúde biomedicamente orientados.
A terapêutica tradicional, ao operar com modelos explicativos e práticas de cuidado localmente situadas, operam com modelos explicativos ontológicos e cosmológicos específicos, sendo que estes estão impregnados de eficácia simbólica. Nesse caso, antes de serem antagônicas, as terapêuticas disponibilizadas pelas medicinas indígenas e pelos serviços de saúde são acionadas pelos indígenas de modo complementar. Agora, a palavra pajé, de origem Tupi, vigente nos discursos de senso comum, possui uma conotação genérica e não dá conta da diversidade dos sistemas sociomédicos indígenas. Cada povo indígena possui e denomina os seus próprios especialistas que, por sua vez, exercem funções particulares conforme a posição que ocupam na organização comunitária de cuidados com a saúde (promoção, prevenção e recuperação).
Além disso, é importante dizer que as práticas de autoatenção realizadas pelo grupo familiar do paciente, incluindo as decisões tomadas durante o itinerário terapêutico quanto a qual especialista recorrer, também precisam ser consideradas no desenvolvimento das ações voltadas para a articulação entre as medicinas indígenas e os serviços de saúde em todos os níveis de complexidade da assistência, de modo a garantir as condições necessárias para efetivar a integralidade da atenção aos povos indígenas.
No interior do Brasil, principalmente na Amazônia, os serviços de saúde são desprovidos do essencial. Como fica a cooperação entre os sistemas oficiais de saúde e praticantes das medicinas tradicionais nesses contextos em que os serviços de saúde não foram além das promessas políticas?
A articulação dos serviços de saúde com as medicinas tradicionais indígenas pode ser um recurso muito eficiente para ampliar a cobertura dos serviços de atenção à saúde dos povos indígenas em regiões de difícil acesso, bem como para contribuir para efetivar o principio da atenção diferenciada e da integralidade da atenção. Entretanto, para que tal aconteça os profissionais de saúde precisam desenvolver competências comunicativas interculturais para atuar em contextos culturalmente diferenciados e para construir junto com as comunidades em que atuam rotinas de cuidados com a saúde baseadas na articulação entre saberes e práticas oriundos de distintos horizontes epistemológicos. Às universidades que aderiram ao sistema de cotas cabe importante papel na formação de recursos humanos aptos para atuar na saúde indígena.
Documento publicado pela OMS em 2002 estimula os Estados nacionais a regular as medicinas tradicionais. Você mostra bem que elas não são redutíveis aos parâmetros com os quais a medicina de Estado julga seus próprios procedimentos e saberes. O Estado brasileiro está apto a regular saberes mesmo pouco conhecendo as realidades nosológicas e epidemiológicas das regiões e comunidades em questão?
Talvez a questão aqui, mais do que avaliar a aptidão do Estado para regular as medicinas indígenas, é refletirmos sobre os efeitos que essa regulação teria sobre as realidades sociomédicas dos povos indígenas. Sabemos que as políticas públicas, ao irromperem nos contextos das aldeias, tendem a reordenar as relações sociais entre os membros de uma mesma comunidade, interferindo, inclusive, na distribuição de poder entre as posições que conformam determinada organização sociocultural. Nesse caso, a regulação das medicinas indígenas relegaria a posição marginal e de não-existência todo um conjunto de saberes, práticas e praticantes não validados pela ciência moderna, justamente por estarem ancorados em horizontes epistemológicos diferentes daqueles que sustentam o modelo médico hegemônico. Assim a regulamentação surgiria como uma forma de colonizar as medicinas indígenas ao transformá-las em uma imagem fantasmática da civilidade, para usar os termos de Homi Bhabha. De fato, nós ainda precisamos desenvolver a aptidão para o diálogo e para a tradução intercultural entre sistemas médicos, bem como a capacidade de respeitar e criar junto às comunidades indígenas estratégias de intervenção sobre os problemas de saúde por elas enfrentados. Do contrário, estaremos contribuindo para perpetuar ideologias tutelares integracionistas que desconhecem a agência criativa dos povos indígenas para construir as suas próprias realidades sociomédicas.
Contudo, o exercício de identificação da coerência e unidade desse saber, pode favorecer a tarefa de oferecer serviços de saúde as populações indígenas remanescentes, o que no Brasil corresponde à FUNASA – Fundação Nacional de Saúde e nos EUA Estados Unidos da América do Norte ao Indian Health Service .