Sobre a vinda dos 6.000 médicos cubanos

Por Pedro Saraiva, no blog do Nassif

Olá Nassif, sou médico e gostaria de opinar sobre a gritaria em relação à vinda dos médicos cubanos ao Brasil. Bom, como opinião inteligente se constrói com o contraditório, vou tentar levantar aqui algumas informações sobre a vinda de médicos cubanos para regiões pobres do Brasil que ainda não vi serem abordadas.

– O principal motivo de reclamação dos médicos, da imprensa e do CFM seria uma suposta validação automática dos diplomas destes médicos cubanos, coisa que em momento algum foi afirmado por qualquer membro do governo. Pelo contrário, o próprio ministro da saúde, Antônio Padilha, já disse que concorda que a contratação de médicos estrangeiros deve seguir critérios de qualidade e responsabilidade profissional. Portanto, o governo não anunciou que trará médicos cubanos indiscriminadamente para o país. Isto é uma interpretação desonesta.

– Acho estranho o governo ter falado em atrair médicos cubanos, portugueses e espanhóis, e a gritaria ser somente em relação aos médicos cubanos. Será que somente os médicos cubanos precisam revalidar diploma? Sou médico e vivo em Portugal, posso garantir que nos últimos anos conheci médicos portugueses e espanhóis que tinham nível técnico de sofrível para terrível. E olha que segundo a OMS, Espanha e Portugal têm, respectivamente, o 6º e o 11º melhores sistemas de saúde do mundo (não tarda a Troika dar um jeito nesse excesso de qualidade). Profissional ruim há em todos os lugares e profissões. Do jeito que o discurso está focado nos médicos de Cuba, parece que o problema real não é bem a revalidação do diploma, mas sim puro preconceito.

– Portugal já importa médicos cubanos desde 2009. Aqui também há dificuldade de convencer os médicos a ir trabalhar em regiões mais longínquos, afastadas dos grandes centros. Os cubanos vieram estimulados pelo governo, fizeram prova e foram aprovados em grande maioria (mais à frente vou dar maiores detalhes deste fato).

A população aprovou a vinda dos cubanos, e em 2012, sob pressão popular, o governo português renovou a parceria, com amplo apoio dos pacientes. Portanto, um dos países com melhores resultados na área de saúde do mundo importa médicos cubanos e a população aprova o seu trabalho.

– Acho que é ponto pacífico para todos que médicos estrangeiro tenham que ser submetidos a provas aí no Brasil. Não faz sentido importar profissionais de baixa qualidade. Como já disse, o próprio ministro da saúde diz concordar com isso. Eu mesmo fui submetido a 5 provas aqui em Portugal para poder validar meu título de especialista. As minhas provas foram voltadas a testar meus conhecimentos na área em que iria atuar, que no caso é Nefrologia. Os cubanos que vieram trabalhar em Medicina de família também foram submetidos a provas, para que o governo tivesse o mínimo de controle sobre a sua qualidade.

Pois bem, na última leva, 60 médicos cubanos prestaram exame e 44 foram aprovados (73,3%). Fui procurar dados sobre o Revalida, exame brasileiro para médicos estrangeiros e descobri que no ano de 2012, de 182 médicos cubanos inscritos, apenas 20 foram aprovados (10,9%). Há algo de estranho em tamanha dissociação. Será que estamos avaliando corretamente os médicos estrangeiros?

Seria bem interessante que nossos médicos se submetessem a este exame ao final do curso de medicina. Não seria justo que os médicos brasileiros também só fossem autorizados a exercer medicina se passassem no Valida? Se a preocupação é com a qualidade do profissional que vai ser lançado no mercado de trabalho, o que importa se ele foi formado no Brasil, em Cuba ou China?

O CFM se diz tão preocupado com a qualidade do médico cubano, mas não faz nada contra o grande negócio que se tornaram as faculdades caça-níqueis de Medicina. No Brasil existe um exército de médicos de qualidade pavorosa. Gente que não sabe a diferença entre esôfago e traqueia, como eu já pude bem atestar. Porque tanto temor em relação à qualidade dos estrangeiros e tanta complacência com os brasileiros?

– Em relação este exame de validação do diploma para estrangeiros abro um parêntesis para contar uma situação que presenciei quando ainda era acadêmico de medicina, lá no Hospital do Fundão da UFRJ.

Um rapaz, se não me engano brasileiro, tinha feito seu curso de medicina na Bolívia e havia retornado ao país para exercer sua profissão. Como era de se esperar, o rapaz foi submetido a um exame, que eu acredito ser o Revalida (na época realmente não procurei me informar). O fato é que a prova prática foi na enfermaria que eu estava estagiando e por isso pude acompanhar parte da avaliação.

Dois fatos me chamaram a atenção, o primeiro é a grande má vontade dos componentes da banca com o candidato. Não tenho dúvidas que ele já havia sido prejulgado antes da prova ter sido iniciada. Outro fato foi o tipo de perguntas que fizeram.

Lembro bem que as perguntas feitas para o rapaz eram bem mais difíceis que aquelas que nos faziam nas nossas provas. Lembro deles terem pedidos informações sobre detalhes anatômicos do pescoço que só interessam a cirurgiões de cabeça e pescoço. O sujeito que vai ser médico de família, não tem que saber todos os nervos e vasos que passam ao lado da laringe e da tireoide. O cara tem que saber tratar diarreia, verminose, hipertensão, diabetes e colesterol alto. Soube dias depois que o rapaz tinha sido reprovado.

Não sei se todas as provas do Revalida são assim, pois só assisti a uma, e mesmo assim parcialmente. Mas é muito estranho os médicos cubanos terem alta taxa de aprovação em Portugal e pouquíssimos passarem no Brasil. Outro número que chama a atenção é o fato de mais de 10% dos médicos em atividade em Portugal serem estrangeiros. Na Inglaterra são 40%. No Brasil esse número é menor que 1%. E vou logo avisando, meu salário aqui não é maior do que dos meus colegas que ficaram no Brasil.

– Até agora não vi nem o CFM nem a imprensa irem lá nas áreas mais carentes do Brasil perguntar o que a população sem acesso à saúde acha de virem 6000 médicos cubanos para atendê-los. Será que é melhor ficar sem médico do que ter médicos cubanos? É o óbvio ululante que o ideal seria criar condições para que médicos brasileiros se sentissem estimulados a ir trabalhar no interior. Mas em um país das dimensões do Brasil e com a responsabilidade de tocar a medicina básica pulverizada nas mãos de centenas de prefeitos, isso não vai ocorrer de uma hora para outra.

Na verdade, o governo até lançou nos últimos anos o Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica (Provab), que oferece salários mensais de R$ 8 mil e pontos na progressão de carreira para os médicos que vão para as periferias. O problema é que até hoje só 4 mil médicos aceitaram participar do programa. Não é só salário, faltam condições de trabalho. O que fazemos então? Vamos pedir para os mais pobres aguentar mais alguns anos até alguém conseguir transformar o SUS naquilo que todos desejam? Vira lá para a criança com diarreia ou para a mãe grávida sem pré-natal e diz para ela segurar as pontas sem médico, porque os médicos do sul e sudeste do Brasil, que não querem ir para o interior, acham que essa história de trazer médico cubano vai desvalorizar a medicina do Brasil.

– É bom lembrar que Cuba exporta médicos para mais de 70 países. Os cubanos estão acostumados e aceitam trabalhar em condições muito inferiores. Aliás, é nisso que eles são bons. Eles fazem medicina preventiva em massa, que é muito mais barata, e com grandes resultados. Durante o terremoto do Haiti, quem evitou uma catástrofe ainda maior foram os médicos cubanos. Em poucas semanas os médicos dos países ricos deram no pé e deixaram centenas de milhares de pessoas sem auxílio médico.

Se não fosse Cuba e seus médicos, haveria uma tragédia humanitária de proporções dantescas. Até o New England Journal of Medicine, a revista mais respeitada de medicina do mundo, fez há poucos meses um artigo sobre a medicina em Cuba. O destaque vai exatamente para a capacidade do país em fazer medicina de qualidade com recursos baixíssimos (http://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMp1215226).

– Com muito menos recursos, a medicina de Cuba dá um banho em resultados na medicina brasileira. É no mínimo uma grande arrogância achar que os médicos cubanos não estão preparados para praticar medicina básica aqui no Brasil. O CFM diz que a medicina de Cuba é de má qualidade, mas não explica por que a saúde dos cubanos, como muito menos recursos tecnológicos e com uma suposta inferioridade qualitativa, tem índices de saúde infinitamente melhores que a do Brasil e semelhantes à avançada medicina americana (dados da OMS).

– Agora, ninguém tem que ir cobrar do médico cubano que ele saiba fazer cirurgia de válvula cardíaca ou que seja mestre em dar laudos de ressonância magnética. Eles não vêm para cá para trabalhar em medicina nuclear ou para fazer hemodiálises nos pacientes. Medicina altamente tecnológica e ultra especializada não diminui mortalidade infantil, não diminui mortalidade materna, não previne verminose, não conscientiza a população em relação a cuidados de saúde, não trata diarreia de criança, não aumenta cobertura vacinal, nem atua na área de prevenção. É isso que parece não entrar na cabeça de médicos que são formados para serem superespecialistas, de forma a suprir a necessidade uma medicina privada e altamente tecnológica. Atenção! O governo que trazer médicos para tratar diarreia e desidratação! Não é preciso grande estrutura para fazer o mínimo. Essa população mais pobre não tem o mínimo!

Que venham os médicos cubanos, que eles façam o Revalida, mas que eles sejam avaliados em relação àquilo que se espera deles. Se os médicos ricos do sul maravilha não querem ir para o interior, que continuem lutando por melhores condições de trabalho, que cobrem dos governos em todas as esferas, não só da Federal, melhores condições de carreira, mas que ao menos se sensibilizem com aqueles que não podem esperar anos pela mudança do sistema, e aceitem de bom grado os colegas estrangeiros que se dispõe a vir aqui salvar vidas.

Infelizmente até a classe médica aderiu ao ativismo de Facebook. O cara lê a Veja ou O Globo, se revolta com o governo, vai no Facebook, repete meia dúzia de clichês ou frases feitas e sente que já exerceu sua cidadania. Enquanto isso, a população carente, que nem sabe o que é Facebook morre à míngua, sem atendimento médico brasileiro ou cubano.

Enviada por Jair de Souza para Combate Racismo Ambiental.

Comments (5)

  1. Grande comentário! Eu só acrescentaria a ele a questão das pessoas que ainda fazem pós-graduação, aqui ou no exterior, e, se não ficam por lá mesmo (apesar de terem assumido um compromisso com o governo brasileiro de regressar), raramente se acham comprometidas com aqueles e aquelas que, muitas vezes, foram inclusive seus “objetos de estudo”, aqui literalmente coisificados.

  2. Considerando que as universidades públicas ainda são a origem da formação de um grande número de médicos de qualidade, eu acho que uma resposta mais simples para essa questão seja a instituição de estágios obrigatórios para os médicos recém-formados nas áreas carentes. Tendo-os como requisito para a validação de seus diplomas e com avaliações de sua atuação por parte da equipe da unidade de saúde e da população (e vamos inverter essa relação de poder, onde o médico está no topo da cadeia alimentar, já que isso os faz arrogantes e presunçosos).

    É justo e necessário que os médicos formados com o dinheiro público, e portanto com o dinheiro da população dessas áreas, deem à sociedade um retorno mínimo e direto daquilo que ela investiu nele. Afinal, é uma imoralidade que se use dinheiro público para formar profissionais que só estarão disponíveis em clínicas e hospitais privados. Uma boa ideia seria não restringir esse pré-requisito para o curso de medicina, mas para todos os cursos universitários das universidades. Elas são pagas com o dinheiro do trabalhador, e depois são as empresas e uma meia dúzia de burgueses que vão usufruir desse conhecimento que os estudantes adquiriram? As áreas pobres também precisam de médicos, arquitetos, engenheiros, advogados, pessoas que resgatem sua história, as coloquem no mapa ou de professores qualificados.

  3. Considero problema mais grave a qualidade do médico brasileiro. Noto queda brusca da qualidade médica nos ultimos 5 anos, provavelmente coincidindo com a proliferação de escolas de medicina com mensalidades ridiculamente altas. A seleção do candidato ao vestibular passou a ser financeira. Acho fundamental a realização de provas ao final do curso de medicina nos moldes da OAB. E como no direito, acho que a carreira do médico do estado deveria ser similar a de juizes, promotores, defensores publicos, etc, com concurso público. Só assim sera possível deslocar o médico do sudeste para o interior do país. Não adianta salario do PSF de 10.000,00 se o médico não tem garantias da continuidade ao fim do mandato do prefeito. Mas é mais facil trazer os cubanos. Concordo que isso possa ser uma medida emergencial necessária. Mas temo que não seja essa a ideia do governo, que parece conivente com a abertura de escolas médicas (temos mais escolas de medicina que os EUA). O problema não é falta de médicos no Brasil e sim falta de politica publica efetiva para levar o médico a quem precisa. Mas é claro que com a proliferação de médicos (muitas vezes mal formados) e com a vinda de mais médicos estrangeiros, haverá uma pressão de mercado e ocorrerá alguma migração de médicos para o interior. Mas que fique claro que isso ocorrerá com o pano de fundo de piora drastica da qualidade da medicina.
    Concordo que não precisamos de superespecialistas mais que médicos da família, mas considero que o médico da família deve ter o mesmo nivel de qualidade médica na sua area de atuação (o médico de família “meia-boca” faz mais estrago que o superespecialista “meia-boca”). Aí você me diz:_ Melhor um “meia-boca” que nenhum. Tudo bem se quizermos resolver um problema emergencial de forma pontual e isolada. Mas não será assim que propiciaremos medicina de qualidade ao brasileiro de forma definitiva e a longo prazo. Sinceramente não sei detalhes sobre a qualidade do médico cubano atualmente e acho que talvez o médico brasileiro recem formado dessa leva de escolas mercenárias seja mais problemático. Mas tudo isso é reflexo da ideia de que se resolve o problema com mais médicos na praça (de qualquer jeito).

  4. Parabéns Sr. Med.Pedro Saraiva.
    Sou de direita, e obviamente identifico facilmente os problemas do governo de esquerda.
    Mas em tratando-se de melhorar, ou melhor criar um sistema de saude para nossa sofrida base social, concordo plenamente na implantação de um plano de medicina familiar, aproveitando os Médicos Cubanos, os quais neste sistema de medicina, sem lugar a duvidas, acredito, estão entre os melhores do mundo.

  5. Brilhante explanação!Sou médico brasileiro e apesar de não concordar com a atual política do governo brasileiro, pautada eminentemente com finalidade eleitoreira, reconheço coerência em seu discurso!Sou de acordo, também, de que o momento é de solidarizar com a população menos assistida, ainda que prejudique a luta médica por melhores condições de trabalho. Se a finalidade é atenção básica e focar nas regiões mais desassistidas, que sejam bem vindos médicos de qualquer lugar do mundo. Agora, só acho que se não tiver condições de trabalho mínimas, os colegas médicos de qualquer lugar do mundo vão acabar migrando para áreas mais desenvolvidas e com melhor infraestrutura, ficando, novamente, a população mais pobre desassistida e precarizando, ainda mais, o mercado de trabalho médico!

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