Em defesa da mulher amazônica, por Marcelo Garcia

Questões como o mercado do sexo e o trânsito transfronteiriço são importantes no estudo da violência contra a mulher no Alto Solimões. (foto: Marcelo Garcia)

Projeto da Ufam mapeia casos de violência contra a mulher no Alto Solimões e instituições de apoio a essas vítimas com o objetivo de criar um observatório permanente sobre o tema na região.

Por Marcelo Garcia, em Ciência Hoje

Foi com base em um primeiro caso de violência envolvendo mulheres, o confronto entre o explorador espanhol Francisco de Orellana e as bravas índias icamiabas, que a região amazônica recebeu seu nome. Mais de 450 anos depois, uma iniciativa de pesquisadores da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) no Alto Solimões, área fronteiriça entre Brasil, Peru e Colômbia, busca mapear formas mais contemporâneas de violência contra as habitantes da região. A ideia é criar um observatório permanente sobre a situação, que ajude a entender o impacto de fatores locais, como o trânsito internacional e a dinâmica das populações indígenas, nesses eventos.

Em Manaus, dados oficiais apontam cerca de 700 casos de violência contra a mulher por mês. Porém, mil quilômetros rio Amazonas acima, onde se localiza a cidade de Benjamin Constant e os outros oito municípios que formam a região do Alto Solimões, praticamente não há dados oficiais sobre a situação. Para reverter esse quadro, desde o início de 2012 um grupo do Instituto de Natureza e Cultura, unidade da Ufam em Benjamin Constant, realiza um trabalho de mapeamento dos casos na região.

No ano passado, o grupo percorreu seis localidades: a própria Benjamin Constant, Amaturá, São Paulo de Olivença, Santo Antônio do Içá, Tonantins e Atalaia do Norte. Os municípios de Tabatinga, maior da região, e Fonte Boa e Jutaí, mais afastados, ficaram para 2013. O trabalho envolveu a catalogação de organizações que atendem mulheres em situação de violência e o levantamento de ocorrências desse tipo em delegacias e cartórios da região. “Não há dados oficiais de qualidade, não sabemos quais instituições existem ou como elas funcionam”, avalia a antropóloga Flávia Cunha, coordenadora do projeto.

Para apreender as percepções de violência na região e avaliar a importância de questões como orientação sexual e identificação étnico-racial nesse processo, a equipe também realizou diversas oficinas, voltadas para profissionais dos serviços identificados e para a comunidade em geral. “Pretendemos esclarecer a dinâmica da violência contra a mulher no Alto Solimões, a quem elas recorrem nessas situações e o porquê disso”, diz Cunha. “Temos levantado histórias de sujeitos emblemáticos que ajudam a construir o mapa da violência na região e dialogado com as comunidades para criar as bases de uma rede de enfrentamento permanente dessa situação.”

Proteção insuficiente

Apesar dos resultados ainda muito preliminares, Cunha destaca algumas descobertas sobre a dinâmica da violência no Alto Solimões. “Existe grande precariedade de organismos públicos capazes de garantir os direitos das mulheres e há uma invisibilidade maior de alguns grupos em termos de atenção, como as mulheres lésbicas, bissexuais e transexuais”, afirma. “Só há uma delegacia especializada na região e não há varas especializadas na lei Maria da Penha ou centros sociais de referência.” Recentemente, a equipe do observatório acompanhou o processo de consolidação do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher em Benjamin Constant.

Além de 10 alunos do campus de Benjamin Constant, o observatório conta com núcleos em outras regiões: um grupo da Ufam em Manaus, responsável pela análise estatística das informações e por consultar as bases de dados estaduais, e outro da Universidade Estadual de Campinas.

“A parceria com os pesquisadores de São Paulo ajudou a delinear questões centrais para a dinâmica da violência na região, como o mercado do sexo e a proximidade com a fronteira”, avalia Cunha. “Além disso, abriu novas possibilidades de financiamento e orientação, já que sozinha eu não poderia orientar tantos estudantes, e permitiu o contato deles com experiências de arguição acadêmica que não teriam isolados aqui.”

O relacionamento entre os grupos é basicamente virtual – e conduzido por uma ferramenta cuja utilização acadêmica ainda costuma dividir opiniões, o Facebook. “O Skype é muito instável para a internet que temos aqui e alternativas como e-mail e Dropbox não fizeram sucesso”, diz Cunha. “Mas os alunos fazem um uso intensivo do celular e usam o Facebook para tudo, em especial depois que passamos a explorar melhor a opção de compartilhar arquivos.”

Visibilidade

A repercussão do observatório tem sido grande. No fim de 2012, ele foi convidado a colaborar em ações promovidas na região por agências da Organização das Nações Unidas (ONU), como a Unaids e a ONU Mulheres. “Essas agências já atuam há alguns anos no Alto Solimões e acredito que a inexistência de dados sobre essa área tenha potencializado a iniciativa do observatório”, avalia Cunha. “O trabalho de campo realizado favorece a interlocução com gestores municipais e lideranças locais.”

Saiba mais sobre o trabalho do observatório e a iniciativa promovida pelo grupo na última eleição:

O projeto também tem gerado impacto muito grande na vida da cidade e dos estudantes. “Os alunos têm mostrado um comprometimento impressionante, estão sempre dando palestras nas escolas, tornaram-se referências em violência contra a mulher”, diz a antropóloga. Ela destaca o trabalho realizado durante a última eleição, quando o observatório promoveu a campanha ‘Eu não voto em quem bate em mulher’. “Os alunos entraram de cabeça, houve uma grande repercussão”, relembra. “Isso é incrível, se pensarmos que assumir publicamente posições aqui é bem diferente de fazer o mesmo numa cidade grande, pois implica uma série de questionamentos.”

A ideia da equipe é reunir informações para publicar, ao longo de 2013, relatórios e materiais analíticos sobre a violência contra a mulher no Alto Solimões. Uma alternativa de emprego direto dos dados é alimentar a Central de Atendimento à Mulher da região. “A análise permitirá uma visão completa do perfil de quem sofre com esse problema no Alto Solimões e, a partir daí, a abertura de novas linhas de pesquisa e a proposição de políticas públicas sobre o tema”, prevê a antropóloga.

Enviada por José Carlos para Combate ao Racismo Ambiental.

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