Isto não é sobre um rito de passagem, isto é sobre violência!

Mariana Prandini Assis e Débora Antoniazi Del Guerra*

Uma jovem branca pintada de negra, carregando um cartaz com os dizeres “Caloura Chica Silva”, é exibida como prêmio, no vasto pátio de cimento, pelo bem vestido jovem branco que detém suas correntes. Do outro lado do mesmo pátio, um jovem pintado de marrom encontra-se amarrado à pilastra, enquanto ao redor dele três outros jovens brancos, um deles com bigode que remete a Hitler, se divertem fazendo a saudação nazista. Não, esse não é o script de uma peça que trata do racismo, sexismo e autoritarismo do passado! O local onde essas imagens puderam ser vistas é o Território Livre José Carlos da Matta Machado[1], na faculdade de direito da UFMG. A data, 15 de março de 2013. A ocasião, uma recepção aos novo/as estudantes.

Diferentemente do que afirmam aqueles que procuram justificá-la, a prática descrita acima não constitui um rito de passagem mas, ao contrário, é reveladora das extremas formas de opressão e violência enraizadas na cultura política brasileira. O fato de que todos os jovens protagonistas das cenas ocorridas na faculdade de direito são homens brancos não é um detalhe banal.

Homens brancos, majoritariamente, usufruem de um conjunto de privilégios adquiridos através da subordinação violenta dos demais seguimentos da sociedade que foram construídos como “Outros”. O colonialismo constitui um dos momentos de nossa história em que se pode apreender com clareza a operação dessa lógica. Homens brancos europeus justificaram o empreendimento colonial e, consequentemente, a dizimação dos povos indígenas e a escravização dos negros e negras trazidos da África através do discurso da diferenciação acoplada à inferiorização. O Outro, o indígena, o negro, é não apenas diferente, mas inferior, o que legitima o projeto civilizatório, a objetificação e a consequente apropriação como bem que se vende, troca, usufrui e dispõe. Quando os alunos da faculdade de direito da UFMG representam a prática da escravidão em sua recepção aos calouros, eles não estão revivendo um passado remoto, mas reafirmando, aqui e agora, o racismo, a objetificação e a negação do Outro que é constitutiva de tal prática e, desse modo, construindo uma realidade em que tais valores são aceitáveis. Não, isso não é sobre um rito de passagem!

Objetificação e a consequente apropriação como bem que se vende, troca, usufrui e dispõe, é também a descrição histórica da vida das mulheres. Ao longo dos anos, as mulheres tiveram negados o reconhecimento de seu trabalho produtivo, o acesso à esfera pública, às ciências e às artes, sob o argumento de que, embora semelhantes, elas não são iguais aos homens e carecem de uma série de atributos para exercerem atividades em todas as mencionadas esferas. Seres de pouca razão, as mulheres são orientadas por suas paixões, emoções e hormônios. Incapazes de articular palavras e ideias com precisão e rapidez, elas não sobrevivem ao predador mundo da política. De frágil constituição corporal, elas necessitam de auxílio masculino para o desenvolvimento das mais banais atividades físicas. Enfim, mulheres são seres incompletos, física e mentalmente, incapazes até mesmo de decidir sobre seus próprios corpos, que por isso podem ser apropriados, estuprados, negociados ou simplesmente destinados à sua natureza procriadora. Quando os alunos da faculdade de direito da UFMG representam Chica da Silva acorrentada e exibida como troféu por um homem branco, o que eles atacam é precisamente o histórico da luta das mulheres, negras e brancas, contra uma vida marcada por opressão e negação. E o que eles reificam é o lugar subordinado das mulheres. Não, isso não é sobre um rito de passagem!

Desumanização do “Outro” a partir da construção de um “Nós” homogêneo e puro é uma estratégia conhecida que levou a um dos maiores genocídios da história da humanidade. O nazismo significou, além da aniquilação física de vários grupos humanos através do homicídio de crianças, homens e mulheres, a defesa de uma ideologia que não apenas nega mas destrói a diferença. Tal ideologia encontra sua essência no totalitarismo, controle total da sociedade que, por seu turno, é dependente de um processo de homogenização social e da criação de um inimigo comum a ser destruído. A imposição do medo extremo e constante assim como um aparato de vigilância capilarizado foram as ferramentas utilizadas pelo regime nazista na construção de uma sociedade totalitária. Quando os alunos da faculdade de direito decidem representar esse regime como parte de sua suposta diversão, eles contribuem para a “banalização do mal”[2], para a disseminação da ideia de que a tortura, a execução, a aniquilação cultural e física do “Outro” é não apenas aceitável mas necessária para a “Nossa” defesa. Não, isso não é sobre um rito de passagem!

A prática aqui combatida reproduz e banaliza profundas formas de opressão e violência. E tal banalização ocorre precisamente no espaço em que são formados aquele/as que operarão nossas instituições de justiça. Historicamente, as faculdades de direito no Brasil são caracterizadas por seu caráter aristocrático, tendo sido constituídas como espaços para a formação dos filhos das elites que ocupariam posições de poder. Sim, porque direito é sobre poder! Poder de condenar e absolver, poder de afirmar o direito à moradia ou o direito à propriedade privada, poder de combater a violência contra a mulher ou mascará-la sob discursos familistas e machistas, poder para viabilizar a autonomia das mulheres aos próprios corpos ou encarcerá-las pelo seu exercício, poder de manter as práticas do agronegócio, das mineradoras, dos latifundiários escravistas ou combater o grande capital!  Ao reafirmarem o racismo, o machismo e o nazismo em seu trote, os estudantes da faculdade de direito da UFMG tornam explícito a qual das chaves do poder eles se aliam. E essa chave é a que garante a manutenção de uma hegemonia branca, capitalista, androcêntrica e heteronormativa.

Pesquisas afirmam que as mulheres são mais capazes de realizar rupturas no ciclo de violência doméstica quanto contam com apoio institucional. Ao vermos o Brasil ocupar a sétima posição entre os países com maior número de mulheres mortas no mundo[3], torna-se explicíta a relação entre um (não) funcionamento das institutições jurídicas e a perpetuação da violência contra as mulheres. Quando examinamos o perfil dos condenados à prisão no Brasil e constatamos que a população carcerária é formada, predominantemente, por negros, jovens e pobres, fica evidente que as instituições jurídicas funcionam para os interesses de uma classe social. Ao assistirmos a legitimação conferida pelo poder judiciário às várias ações de limpeza étnica e territorial para viabilizar as obras da Copa do Mundo, torna-se manifesto o alinhamento das instituições jurídicas ao grande capital.

A perpetuação de privilégios e a consequente subordinação dos grupos sociais excluídos e oprimidos não ocorreria se não fosse operada constitutivamente pelas instituições de nossa sociedade, entre as quais se encontra o direito e a universidade. Por isso, reafirmamos:

Não, isto não é sobre um rito de passagem, isto é sobre é sobre violência!

Se há racismo, machismo, homofobia, nazismo, não há universidade!

Somos todAs e todOs Chicas da Silva!

* Mariana Prandini Assis é Militante da Frente de Mulheres das Brigadas Populares, foi estudante da Faculdade de Direito da UFMG e membro do CAAP; Débora Antoniazi Del Guerra é Militante da Frente de Mulheres das Brigadas Populares e da Marcha Mundial das Mulheres

Notas:

[1]          José Carlos da Matta Machado foi estudante da Faculdade de Direito da UFMG, presidente do Centro Acadêmico Afonso Pena (1967) e vice-presidente da União Nacional dos Estudantes. Empenhou-se  no combate ao regime militar, tendo deixado a Faculdade para entrar na  clandestinidade. Ficou preso durante meses nas celas do DOPS e em 28 de  setembro de 1973 foi torturado e morto no DOI-CODI em Recife.

[2]          Veja: http://pt.wikipedia.org/wiki/Banalidade_do_Mal.

[3]          FLACSO, Mapa da Violência, 2012. O universo investigado é de 84 países.

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