Leonardo Sakamoto
A Assembleia Nacional francesa aprovou, nesta terça (12), projeto de lei que autoriza o casamento homossexual e a adoção de crianças por casais do mesmo sexo. A primeira parte da lei já era esperada e não encontrava forte oposição. Já a segunda provocou acalorados debates na Câmara dos Deputados francesa, sem contar passeatas que reuniram centenas de milhares de descontentes. Apesar disso, o povaréu francês que foi às ruas foi minoria, pois a maior parte do país, segundo pesquisas de opinião, aprova a medida. Ela agora volta ao Senado e sua aprovação é dada como certa.
O que temos no Brasil, por enquanto, é a união civil homoafetiva – não graças a nossos deputados e senadores, mas sim a uma interpretação do Código Civil pelo Supremo Tribunal Federal. E a proibição de dois pais ou duas mães adotarem uma criança.
Pedi para a jornalista e especialista em Direitos Humanos Bia Barbosa, que acompanhou o processo da aprovação da lei em Paris, uma análise para este blog:
Enfim, a igualdade, por Bia Barbosa
Paris – A França viveu um dos dias históricos de sua Quinta República. Depois de 110 horas e 24 sessões de debate – incluindo uma que durou 30 horas ininterruptas e a última, que terminou às 5h40 da manhã deste sábado (9), a Assembléia Nacional francesa aprovou, por 329 votos a favor e 229 contra, o projeto de lei que autoriza o casamento homossexual e a adoção de crianças por casais do mesmo sexo. Promessa de campanha do presidente socialista François Hollande, o texto, apresentado pelo governo ao Parlamento, suscitou meses de debates e intensos protestos nas ruas de todo o país, opondo conservadores e progressistas, num dos mais claros debates dos últimos anos entre a direita e a esquerda francesas.
Nos discursos que precederam a apresentação dos votos dos seis grandes blocos que compõem a Assembléia Nacional nesta terça, as clivagens foram mais uma vez explicitadas. Hervé Mariton, deputado do UMP, partido do ex-presidente Nicolas Sarkozy, orador incansável e um dos líderes da direita no Legislativo, tachou o projeto batizado de “Casamento para Todos” de dogmático. Para o UMP, o texto incita o esquecimento da família e suas tradições, priva as crianças de suas origens e as trata como objetos, rompe com a filiação natural e pode ter “consequências imprevisíveis para a França”. “Enquanto nós amamos a língua francesa, vocês torturam o idioma, apagando as palavras “mère” (mãe) e “père” (pai) do Código Civil”, afirmou, em referência ao artigo do Código que, a partir de agora, será redigido com o termo “parents” (pais). “Somos pela família solidária, enquanto vocês são individualistas e materialistas”, disse, recuperando o argumento dos conservadores de que a lei seria baseada simplesmente no desejo dos homossexuais e não nos valores da família.
À esquerda, socialistas, comunistas e ecologistas conseguiram a unidade, tão rara em tempos de um governo do PS com contradições muito próximas às que vemos nos últimos dez anos no Brasil. Sergio Coronado, deputados dos Verdes, lembrou que a aprovação da lei vai mudar a vida de dezenas de milhares de casais e de famílias que passarão a ser protegidos pela lei. “É preciso dizer que os argumentos de ontem alimentam o conservadorismo de hoje. Mas a filiação de amanhã não será uma negação da existência de um pai e de uma mãe (biológicos) de cada criança, mas sim a conjunção de algo que já existe”. Atualmente, mais de 300 mil crianças – adotadas ou fruto de inseminação artificial – já vivem em lares homossexuais. A questão é que, até agora, elas são consideradas filhas de apenas um membro do casal, não tendo o segundo qualquer direito ou dever sobre elas.
A comunista Marie-George Buffet, da Frente de Esquerda, pediu o fim da hipocrisia e comparou a importância da lei a textos legislativos de outrora, que “contribuíram para o avanço da humanidade”, como o que acabou com a pena de morte na França (em 1981) e o que autorizou a interrupção da gravidez. “Tenho orgulho de viver este momento. Este é um texto que acaba com uma discriminação que se apoia na ordem patriarcal, no qual o casamento é sustentado por uma única visão de família baseada na procriação e na filiação, um modelo baseado “no estado natural das coisas”. Mas nós já superamos este estado. Hoje as mulheres tem direito ao seu próprio corpo e podem administrar sua liberdade sexual. O mais importante para essas crianças não é ter um pai e uma mãe, mas a possibilidade de crescerem rodeadas de amor. Hoje daremos estabilidade ao seu futuro”, declarou.
Marie-George concluiu defendendo a PMA (Procriação Medicamente Assistida), que deve ser a próxima batalha do governo Hollande no Parlamento. Retirada da lei aprovada nesta terça, este tipo de inseminação artificial, já existente em outros países, se autorizada na França pode permitir que duas mulheres sejam consideradas mães de uma criança gestada in vitro. O governo pretende enviar o novo texto ao Parlamento antes do final do ano.
O caminho, no entanto, é longo. Antes é preciso garantir que o Senado aprove, sem alterações, a lei votada nesta terça na Assembléia Legislativo (Hollande também conta com maioria na câmara alta). E há ainda o risco de um recurso interposto pela direita junto ao Conselho de Estado. No último dia 7, a imprensa francesa revelou trechos de uma consulta feita ao órgão sobre o projeto do “Casamento para Todos” na qual a mais alta autoridade administrativa da França emite uma série de reservas quanto à adoção por casais homossexuais e à possibilidade de casamentos entre franceses e estrangeiros do mesmo sexo. Não há equivalência para essa instituição no Brasil.
Ou seja, o edifício da igualdade, um dos pilares da República Francesa, ainda não está totalmente de pé neste campo. Sem dúvida, a França – depois de 15 países que já aprovaram leis semelhantes – recupera um pouco do tempo perdido em alguns séculos de discriminação, e rende uma justa e quase tardia homenagem às vítimas da homofobia em seu território. É preciso persistir e acreditar.
Christiane Taubira, a grande personagem deste episódio, acredita. Primeira mulher, negra, ministra da Justiça, ela conduziu pelo governo os debates com os parlamentares na Assembléia. Nascida na Guiana Francesa, dona de uma oratória invejável, Madame Toubira deu seu nome à lei francesa que, em 2001, reconheceu o tráfico negreiro e a escravidão como crimes contra a humanidade. Nas últimas semanas, entre trechos do poeta Léon-Gontran Damas, que ela adora citar, e manifestações de preconceito por parte da oposição, Christiane persistiu.
Nesta terça, após a fatiga mas também com a sensação de vitória, ela ainda se mostrou inspirada para brincar com os deputados da direita. “Fiquem tranquilos, messieurs, ainda restarão muitas mulheres para vocês olharem e tentarem convencer que, por detrás de suas carapaças, há alguma ternura”.
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http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2013/02/12/apesar-da-chiadeira-conservadora-franca-aprova-adocao-por-casais-do-mesmo-sexo/