“Jesus de Nazaré, um profeta radical? A Bíblia respira profecia (Parte 5)”, por Gilvander Luís Moreira

Gilvander Luís Moreira[1], para Combate ao Racismo Ambiental

2.6 – Jesus de Nazaré, um profeta que se tornou Cristo.

Jesus, o galileu de Nazaré, se tornou Cristo, filho de Deus. Como camponês, deve ter feito muitos calos nas mãos, na enxada e na carpintaria, ao lado de seu pai José. Os evangelhos fazem questão de dizer que Jesus nasceu em Belém, (em hebraico, “casa do pão” para todos), cidade pequena do interior. “És tu Belém a menor entre todas as cidades, mas é de ti que virá o salvador”, diz o evangelho de Mateus (Mt 2,6), resgatando a profecia de Miquéias (Miq 5,1).

2.6.1 – De forma radical, Jesus mostra como resolver o problema da fome.

A fome era um problema tão sério na vida dos primeiros cristãos e cristãs, que os quatro evangelhos da Bíblia relatam Jesus partilhando pães e saciando a fome do povo.[2] É óbvio que não devemos historicizar os relatos de partilha de pães como se tivessem acontecido tal como descrito. Os evangelhos foram escritos de quarenta a setenta anos depois. Logo, são interpretações teológicas que querem ajudar as primeiras comunidades a resgatar o ensinamento e a práxis original de Jesus. Não podemos também restringir o sentido espiritual da partilha dos pães a uma interpretação eucarística, como se a fome de pão se saciasse pelo pão partilhado na eucaristia. Isso seria espiritualização do texto. Eucaristia, celebrada em profunda sintonia com as agruras da vida, é uma das fontes que sacia a fome de Deus, mas as narrativas das partilhas de pães têm como finalidade inspirar solução radical para um problema real e concreto: a fome de pão.

A beleza espiritual das narrativas de partilha de pães está no processo seguido. Em uma série de passos articulados e entrelaçados que constituem um processo libertador. O milagre não está aqui ou ali, mas no processo todo. Ei-lo:

Mateus mostra que o povo faminto “vem das cidades”, ou seja, as cidades, ao invés de serem locais de exercício da cidadania, se tornaram espaços de exclusão e de violência sobre os corpos humanos.

“Jesus atravessa para a outra margem do mar da Galileia” (Jo 6,1), entra no mundo dos gentios, dos pagãos, dos impuros, enfim, dos excluídos. Jesus não fica no mundo dos incluídos, mas estabelece comunicação efetiva e afetiva entre os dois mundos, o dos incluídos e o dos excluídos. Assim, tabus e preconceitos desmoronam-se.

Profundamente comovido, porque “os pobres estão como ovelhas sem pastor” (Mc 6,34), Jesus percebe que os governantes e líderes da sociedade não estavam sendo libertadores, mas estavam colocando grandes fardos pesados nas costas do povo. Com olhar altivo e penetrante, Jesus vê uma grande multidão de famintos que vem ao seu encontro; só no Brasil são milhões de pessoas que têm os corpos implodidos pela bomba silenciosa da fome ou da má alimentação.

Jesus não sentiu medo dos pobres, encarou-os e procura superar a fome que os golpeava e humilhava. Apareceram dois projetos para resgatar a cidadania do povo faminto. O primeiro foi apresentado por Filipe: “Onde vamos comprar pão para alimentar tanta gente?” (Jo 6,5). No mesmo tom, outros discípulos tentavam lavar as mãos: “Despede as multidões para que vão aos povoados comprar alimento para si.” (Mt 14,15). Filipe está dentro do mercado e pensa a partir do mercado. Está pensando que o mercado é um deus capaz de salvar as pessoas. Cheio de boas intenções, Filipe não percebe que está enjaulado na idolatria do mercado.

O segundo projeto é posto à baila por André, outro discípulo de Jesus, que, mesmo se sentindo fraco, acaba revelando: “Eis um menino com cinco pães e dois peixes” (Jo 6,9). Jesus acorda nos discípulos e discípulas a responsabilidade social, ao dizer: “Vocês mesmos devem alimentar os famintos” (Mt 14,16). Jesus quer mãos à obra. Nada de desculpas esfarrapadas e racionalizações que tranqüilizam consciências. Jesus pulou de alegria e, abraçando o projeto que vem de André (em grego, andros = humano), anima o povo a “sentar na grama” (Jo 6,10). Aqui aparecem duas características fundamentais do processo protagonizado por Jesus para levar o povo da exclusão à cidadania. Jesus convida o povo para se sentar. Por quê? Na sociedade escravocrata do império romano somente as pessoas livres, cidadãs, podiam comer sentadas. Os escravos deviam comer de pé, pois não podiam perder tempo de trabalho. Era só engolir e retomar o serviço árduo. Um terço da população era escrava e outro terço, semi-escrava. Logo, quando Jesus inspira o povo para sentar-se, ele está, em outros termos, defendendo que os escravos têm direitos e devem ser tratados como cidadãos.

Por que sentar na grama? A referência à existência de “grama” no local indica que o povo está no campo, na zona rural, e é a partir de uma reorganização da vida no campo que poderá advir uma solução radical para a fome que aflige o povo nas cidades. Em outras palavras, o combate que liberta da fome passa necessariamente pela realização de uma autêntica Reforma Agrária. Não dá para continuar a iníqua estrutura fundiária no Brasil.[3]

Jesus estimula a organização dos famintos. “Sentem-se, em grupos de cem, de cinqüenta,  …” (Mc 6,40). Assim, Jesus e os primeiros cristãos nos inspiram que o problema da fome só será resolvido, de forma justa, quando o povo marginalizado e excluído se organizar.

“Jesus agradeceu a Deus…” A dimensão da mística foi valorizada. A luz e a força divinas permeiam os processos de luta. Faz bem reconhecer isso.

Quem reparte o pão não é Jesus, mas os discípulos. Jesus provoca a solidariedade conclamando para a organização dos marginalizados como meio para se chegar à cidadania de e para todos.

“Recolham os pedaços que sobraram, para não se desperdiçar nada.” (Jo 6,12). Economia que evita o desperdício. Quase 1/3 da alimentação produzida é jogada no lixo, enquanto tantos passam fome.

As pessoas perceberam a profecia realizada por Jesus nas entranhas dos fatos humanos. Jesus não quis ser bajulado e retirou-se, de novo, para uma montanha. Exercer a solidariedade de forma gratuita e libertadora. Não estabelecer vínculos que geram dependência em quem é ajudado e consciência tranqüila em quem dá coisas.

 2.6.2 – De forma clandestina, Jesus e os seus companheiros e companheiras entram em Jerusalém.

Após uma longa marcha da Galileia a Jerusalém, da periferia à capital (Lc 9,51-19,27), Jesus e seu movimento estão às portas de Jerusalém. De forma clandestina, não confessando os verdadeiros motivos, Jesus e o seu grupo entram em Jerusalém, narra o Evangelho de Lucas (Lc 19,29-40). De alguma forma deve ter acontecido essa entrada de Jesus em Jerusalém, provavelmente não tal como narrado pelo evangelho, que tem também um tom midráxico, ou seja, quer tornar presente e viva uma profecia do passado.

Dois discípulos recebem a tarefa de viabilizar a entrada na capital, de forma humilde, mas firme e corajosa. Deviam arrumar um jumentinho – meio de transporte dos pobres -, mas deviam fazer isso disfarçadamente, de forma “clandestina”. O texto repete o seguinte: “Se alguém lhes perguntar: “Por que vocês estão desamarrando o jumentinho?”, digam somente: ‘Porque o Senhor precisa dele’”. A repetição indica a necessidade de se fazer a preparação da entrada na capital de forma clandestina, sutil, sem alarde. Se dissessem a verdade, a entrada em Jerusalém seria proibida pelas forças de repressão.

Com os “próprios mantos” prepararam o jumentinho para Jesus montar. Foi com o pouco de cada um/a que a entrada em Jerusalém foi realizada. A alegria era grande no coração dos discípulos e discípulas. “Bendito o que vem como rei…” Viam em Jesus outro modelo de exercer o poder, não mais como dominação, mas como gerenciamento do bem comum.

Ao ouvir o anúncio dos discípulos – um novo jeito de exercício do poder – certo tipo de fariseu se incomoda e tenta sufocar aquele evangelho. Hipocritamente chamam Jesus de mestre, mas querem domesticá-lo, domá-lo. “Manda que teus discípulos se calem.”, impunham os que se julgavam salvos e os mais religiosos. “Manda…!” Dentro do paradigma “mandar-obedecer”, eles são os que mandam. Não sabem dialogar, mas só impor. “Que se calem!”, gritam. Quem anuncia a paz como fruto da justiça testemunha fraternidade e luta por justiça, o que incomoda o status quo opressor. Mas Jesus, em alto e bom som, com a autoridade de quem vive o que ensina, profetisa: “Se meus discípulos (profetas) se calarem, as pedras gritarão.” (Lc 19,40). Esse alerta do galileu virou refrão de música das Comunidades Eclesiais de Base: “Se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão. Se fecharem uns poucos caminhos, mil trilhas nascerão… O poder tem raízes na areia, o tempo faz cair. União é a rocha que o povo usou pra construir…!”

2.6.3 – Jesus chuta o pau da barraca do deus capital.

Os quatro evangelhos da Bíblia[4] relatam que Jesus, próximo à maior festa judaico-cristã, a Páscoa, impulsionado por uma ira santa, invadiu o templo de Jerusalém, lugar mais sagrado do que os templos da idolatria do capital que muitas vezes tem a cruz de Cristo pendurada em um ponto de destaque. Furioso como todo profeta, ao descobrir que a instituição tinha transformado o templo em uma espécie de Banco Central do país + sistema bancário + bolsa de valores, Jesus “fez um chicote de cordas e expulsou todos do templo, bem como as ovelhas e bois, destinados aos sacrifícios. Derramou pelo chão as moedas dos cambistas e virou suas mesas. Aos que vendiam pombas (eram os que diretamente negociavam com os mais pobres porque os pobres só conseguiam comprar pombos e não bois), Jesus ordenou: ‘Tirem estas coisas daqui e não façam da casa do meu Pai uma casa de negócio.” Essa ação de Jesus foi o estopim para sua condenação à pena de morte, mas Jesus ressuscitou e vive também em milhões de pessoas que não aceitam nenhuma opressão.

3 – E agora, José? E agora, Maria?

Enfim, os tempos são outros, mas o sistema do capital, uma engrenagem de moer vidas, está em pleno funcionamento. O capitalismo, como um castelo de areia, está podre. A idolatria do mercado e do capital está levando a humanidade e todas as criaturas da biodiversidade ao abismo. A maior devastação ambiental da história da humanidade cresce em progressão geométrica. As mudanças climáticas estão cada vez mais afetando a vida humana, vegetal e animal. “O tempo está doido”, dizem muitos. Doidos mesmos são os egocêntricos que mandam e desmandam acrisolados no próprio umbigo.

Intuo que as profecias das parteiras, de Elias, Miquéias, Amós, Oseias e de Jesus de Nazaré estão vivas, hoje, no ensinamento e na prática do MST[5], de Dandara – ocupação que se tornou comunidade em Belo Horizonte, MG -, do Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB -, da Via Campesina, de muitos sindicatos que ainda continuam combativos, de milhares de Comunidades Eclesiais de Base – CEBs -, que mesmo silenciadas e perseguidas, continuam testemunhando um jeito rebelde de encarnar o evangelho do Galileu de Nazaré. Em milhões de pessoas de boa vontade, em tantos movimentos populares vejo a profecia viva. No Movimento dos Negros, dos indígenas, dos deficientes, das mulheres …  Por isso vejo que a Bíblia respira profecia. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!

Belo Horizonte, MG, 10 de dezembro de 2012.


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma; assessor da CPT, CEBI, SAB e Via Campesina; conselheiro do Conselho Estadual dos Direitos Humanos de Minas Gerais – CONEDH; e-mail: [email protected]www.gilvander.org.brwww.twitter.com/gilvanderluis – facebook: Gilvander Moreira – Obs.: Esse texto é a 5ª e última parte do artigo “A Bíblia respira Profecia: “Se calarem a voz dos profetas …”, publicado na Revista Estudos Bíblicos, Vol. 29, n. 113, jan/mar/2012, pp. 37-56, revista que tem como título geral: Bíblia, uma Paideia libertadora. Esse artigo foi publicado também na Revista Horizonte Teológico, vol. 11, n. 21, jan-jul/2012, p. 43-70.

[2] Cf. Mt 14,13-21; Mc 6,32-44; Lc 9,10-17 e Jo 6,1-13.

[3] Dados e informações comparativas do Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA – revelam a síntese da estrutura fundiária Brasileira em 2003: como agricultura familiar, abaixo de 200 hectares, há 3.895.968 de imóveis rurais (91,9% dos imóveis) compreendendo uma área de 122.948.252 hectares (29,2% do território), enquanto apenas 32.264 propriedades rurais (0,8% dos imóveis rurais) têm acima de 2 mil hectares, constituindo um território de 132.631.509 de hectares. Essas grandes propriedades têm em média 4.110,8 hectares, correspondendo a 31,6% do território. CF. LAUREANO, Delze dos Santos. O MST e a Constituição, um sujeito histórico na luta pela reforma agrária no Brasil. São Paulo: Ed. Expressão Popular, 2007. p.60.

[4] Mt 21,12-13; Mc 11,15-19; Lc 19,45-46 e Jo 2,13-17.

[5] Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – www.mst.org.br

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