Herança

Filhos de fundadores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra celebram e assumem a luta dos pais

Marciane Hences, de Frederico Westphalen (RS)

O sol já se punha no horizonte quando, aos solavancos, arrancando terra da estrada poeirenta que a seca castigava há quase três meses, após uma curva, surgiu o asfalto. Meu pai, Carlos, parou o carro no acostamento, procurou um cigarro, apontou na direção da minha janela:

– Ali estão eles!

Desci do carro com o coração aos pulos, encarando fixamente aquele homem que segurava a foice e sua companheira que carregava a bandeira. Lentamente, me aproximei dos dois. Numa placa abaixo dos pés do casal lia-se: “Monumento em homenagem aos 10 anos de retomada da luta pela terra (7-09-1979/ 7-09-1989) Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.”

O monumento fora erguido em 1979 na beira da estrada que liga Ronda Alta a Passo Fundo, norte do Rio Grande do Sul, no local conhecido como Encruzilhada Natalino. Estima-se que 5 mil pessoas estiveram acampadas no local. A imagem daquele casal remeteu-me à infância. Lembrei-me dos tios, vizinhos e conhecidos indo e voltando para os acampamentos. Recordei dos relatos sobre o fim da ditadura militar, o renascimento do país e, como parte do reflexo dessas mudanças, o surgimento do MST. No centro dessa ebulição, renascia a esperança dos camponeses no final da década de 1980.

Anoitecia quando retornamos para Ronda Alta. A terra vermelha, nua, se estendia às margens da BR-386 e eu me perguntava por onde andariam aqueles camponeses que um dia sonharam com a reforma agrária.

Terra de Lutas

A região norte do Rio Grande do Sul fez parte dos acontecimentos que deflagrariam o nascimento do maior movimento de contestação e luta pela terra na América Latina, o MST.

Nesse espaço, ao sul com o Rio Uruguai e a leste com o Rio Passo Fundo, o processo de ocupação do solo gerou diversos conflitos entre índios e brancos. Diversas famílias foram expulsas desse local. As Reservas Indígenas da Serrinha e Nonoai, ambas demarcadas em 1857 pelo governo imperial e redemarcadas em 1912 foram o estopim da crise.

Desde 1940, ano de fechamento da fronteira agrícola do Rio Grande do Sul, quatro grupos sócio-culturais dividiam o espaço nessa região – índios, caboclos, fazendeiros e imigrantes europeus. As reservas indígenas foram sendo ocupadas pelos brancos com a conivência do Estado. O confronto cultural foi inevitável.

A partir dos anos 1960 o campo passa por profundas mudanças. A Revolução Verde difundiu o uso de tecnologia, mas causou um intenso êxodo rural. Além disso, famílias numerosas e a falta de perspectivas na cidade foram alguns dos fatores que levaram os camponeses a exigir uma redistribuição das terras.

Salete Campigotto é uma das protagonistas dessa história. Assentada em Nova Ronda Alta (município de Ronda Alta) em 1983, assumiu em 2005 a Coordenação do Instituto Educar, escola técnica do MST, na Fazenda Annoni.

De acordo com a educadora, para entender o processo da luta pela terra na região é preciso voltar à década de 1960, quando o Movimento dos Agricultores Sem Terras (Master), que antecipou, no Rio Grande do Sul, as propostas e estratégias do MST pela Reforma Agrária, organizou a ocupação da Fazenda Sarandi, no local que ficou conhecido como acampamento do Cascavel, em Ronda Alta. A ocupação reuniu cerca de 1500 pessoas e contou com o apoio do então governador Leonel Brizola, que teria apoiado a ação também em prol de sua reeleição. A fazenda agregava uma área de aproximadamente 120 mil hectares. Pertencia a uma família de uruguaios, os Mailhos, e cobria grande parte do território dos atuais municípios de Ronda Alta, Sarandi, Rondinha, Pontão e Coqueiros do Sul.

Em janeiro de 1962, parte dessa área seria desapropriada e distribuída entre meeiros e granjeiros que viviam ali. Apesar das contradições desse processo, o acampamento do Cascavel deixou marcas na cultura daquele povo que foram passadas para as próximas gerações.

Herdeiros da terra

O relógio marcava 8h30min quando desci do ônibus no trevo que dá acesso à área 1 da Fazenda Annoni, dividida hoje em vários lotes, localizada no município de Pontão. Era a primeira vez que eu voltava à Annoni, desde uma visita que fiz quando era criança. O frio de junho castigava quem andava pela estrada de terra que levava até o Instituto Educar.

A ocupação da Annoni ocorreu em outubro de 1985 e durou até 1993, quando os colonos foram assentados, mas deixou marcas na história da luta camponesa. Símbolo de resistência e de luta pela terra, esse acampamento foi um dos mais longos conflitos no estado. Foi a primeira ocupação organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, que já vinha se estruturando desde o acampamento da Encruzilhada Natalino. A partir daí o MST se consolida como movimento social e suas práticas se disseminam por todo o território nacional.

Hoje, os assentados da Annoni constituem parte da história da reforma agrária que deu certo. Abertos às novas ideias, vivendo de forma coletiva, pautados pelo social, com bases em valores socialistas, eles se organizaram em cooperativas, como é o caso da Cooperativa de Produção Agropecuária Cascata LTDA (Cooptar).

Nas idas e vindas à Fazenda Annoni conheci muitas pessoas, conversei com dirigentes do MST, ex-assentados, professores, entre outros, mas o que me chamou atenção foram alguns jovens que nasceram ali e saíram para ter acesso às universidades, sem abandonar suas raízes. Eles fazem parte de uma nova geração de militantes do movimento, com curso superior, e que trazem no sangue a luta dos pais.

Diego Vedovatto é um exemplo disso. Filho de Isaías Vedovatto, um dos dirigentes estaduais do MST na década de 1980, Diego nasceu no assentamento da Annoni em 1990. Formado em Direito pela Universidade Federal de Goiás (UFG) em agosto desse ano, estudou por meio de um convênio entre o governo federal, a universidade, o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O programa subsidia os custos do curso, como despesas de passagem, moradia e alimentação. O curso era voltado para o Direito Agrário, frequentado apenas por filhos de assentados e de pequenos agricultores. Atualmente, Diego reside em Porto Alegre e trabalha num escritório de advocacia, onde presta assessoria jurídica para integrantes do MST e agricultores gaúchos.

Josene dos Santos é natural de Trindade do Sul. Os pais vieram acampar na Annoni em 1985. Na época ela tinha 1 ano de idade. Hoje, Josene é formada em Geografia pela Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), também com a ajuda do Pronera. Após concluir seus estudos, foi designada pelo MST para dar aula no Instituto Educar. Sempre presente nessa caminhada, quando pergunto o que o MST representa na vida dela, é com firmeza que responde:

– A condição de ter conquistado uma vida digna. Meus pais eram meeiros e foi a partir dessa luta que nós conquistamos a terra. Hoje eles são assentados em Eldorado do Sul. É muito importante dar prosseguimento à luta que nossos pais iniciaram, ainda que não seja trabalhando diretamente com a terra. Através do conhecimento, voltamos mais qualificados para fazermos algumas intervenções no meio rural e conscientizar as pessoas da legitimidade da luta.

Magnus Potheguara Maschio, filho de Darci Maschio, um dos primeiros gaúchos a assumir a liderança nacional do MST, tem 19 anos e também nasceu na Annoni. Sempre acompanhando a luta dos pais, decidiu bem cedo o que queria para sua vida. Cursando o 2º semestre de Agronomia no Instituto Federal de Ciências e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS), ele é um dos dirigentes estaduais da Juventude do MST no Rio Grande do Sul. Juntamente com outros integrantes da direção, ele faz um trabalho de base para manter os jovens no campo:

– O MST incorporou outras bandeiras a sua luta. Não queremos somente a terra, que era uma necessidade dos nossos pais lá nos anos de 1980. Hoje nós lutamos por melhores condições de vida no campo e na cidade, educação, moradia, cultura, além de buscar o fortalecimento das pessoas que já estão assentadas. Nosso objetivo é construir novas estratégias de luta. Vivemos um governo muito contraditório que só chegou ao poder porque fez alianças com grupos de direita e hoje está amarrado a esses setores, principalmente com o agronegócio.

Andréia Campigotto, filha de Salete e Antoninho Campigotto, foi a primeira criança que nasceu no assentamento de Nova Ronda Alta, em 1984. O amor pela terra e pela causa dos pais tornou-se a bandeira de sua vida. Com 18 anos de idade ela assume a direção estadual da Juventude do MST. Posteriormente, é convidada a participar de um projeto que seleciona jovens do Movimento Sem Terra para estudar na Escola Latino Americana de Medicina (Elam), em Cuba.

Andreia concluiu o curso de Medicina em 2011. Retornou ao Brasil e assumiu novamente a direção estadual da Juventude do MST. Atualmente ela reside com a família na Fazenda Annoni e fala da aprendizagem em Cuba e dos planos para o futuro:

– Morei durante seis anos em Cuba e aprendi muito. Meu objetivo agora é fazer uma medicina voltada para o povo camponês. O MST é um movimento social que consegue organizar nossos jovens para que tenham uma perspectiva de vida. A luta sobrevive na memória coletiva daqueles que deram os primeiros passos e eu quero continuar o trabalho que meus pais iniciaram lá na Encruzilhada Natalino.

Para concluir essa reportagem retornei à Annoni muitas vezes. Na última vez que estive lá alguns já haviam seguido seus caminhos. Despedi-me da Salete, que ficou acenando lá da escola. Olhei para trás e revi as casas bonitas, confortáveis, com seus pátios floridos e gramados bem cuidados, comparei-as mentalmente com os barracos de lona preta embaixo dos quais eles viveram por mais de oito anos. Conclui que a luta não fora em vão, ela havia dado frutos que se multiplicavam. Muitos anos se passariam, outras gerações viriam, mas a terra continuaria ali, à espera de sementes.

Enviada por José Carlos para Combate ao Racismo Ambiental.

http://www.brasildefato.com.br/node/11323#.UMYluJ3FgeE.gmail

Comments (2)

  1. Carmen, muito obrigada! Tudo isso também faz parte da minha história. Sou do interior de Ronda Alta, convivi muitos anos com as dificuldades do campo, a falta de incentivos dos governos para com os agricultores e sem terras, e hoje, na universidade, senti que poderia, de alguma forma, contribuir com a luta dos sem terras.

  2. Parabéns pela reportagem! Ela me levou de volta à minha infância no interior do RS e às dificuldades da vida do campo, como a falta de escola, de atendimento médico e dentário, de transporte… Um tempo difícil que acabou levando a minha família para viver na cidade. Tivemos sorte por lá, mas nem todos que fazem esse caminho conseguem melhorar de vida. Creio que o nosso diferenciar foi o empenho do meu pai no incentivo ao estudo. Segundo ele, só estudando seriamos respeitados. Creio que da mesma forma o movimento. Com o estimulo à formação dos jovens, o MST está fortalecendo a sua base e estruturando a luta em defesa de uma distribuição mais justa da terra no Brasil. Esses jovens são o futuro do movimento.

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