Os fatos em Florianópolis, por Elaine Tavares

Dizia Maquiavel ao seu soberano no célebre livro O Príncipe, ensinando como administrar um estado. “Conhecendo-se de longe os males que virão (o que só é dado ao homem prudente), pode-se curá-los facilmente. Mas, quando esses males se avolumam de modo que todos já podem reconhecê-los, não há mais remédio que possa estancá-los”. Pois é essa baratontice (de não saber entender a realidade) que se pode observar nas declarações do governador Raimundo Colombo, nos secretários municipais, no alto comando da polícia e tantas outras autoridades, nesses dias em que, ao que parece, baixou um zepelim dourado na cidade de Florianópolis. A tal da “segurança” do estado de direito parece ter se esvaído e ninguém sabe onde encontrá-la, com as autoridades preferindo atuar na aparência a mergulhar na essência dos problemas, para definitivamente resolvê-los. Talvez, como na música do Chico, estejam esperando uma Geni, que afaste o mal, por hora, para que os turistas possam voltar e a cidade se sentir segura.

Na verdade, poucos conseguem perceber que a raiz dessa violência desenfreada está na própria existência de um sistema de organização da vida que divide as pessoas em classes, sendo que uma é possuidora dos meios de produção e das riquezas produzidas, e a outra, nada tem além do corpo, a força de trabalho. Ao mesmo tempo, a classe que domina impõe uma pedagogia do desejo que faz com que os que nada têm almejem possuir o que nunca terão. Assim, quando essa expectativa se frustra, as respostas são as mais diferentes: uns, se resignam, outros, lutam, outros tomam à força o que o próprio sistema lhes ensina querer. Esses, os últimos, por fazerem o que fazem, são perseguidos e punidos. E daí nasce o paradoxo do sistema prisional. Grande parte dos que ali estão nada mais é do que vítima de um sistema que lhes ensina a querer o que nunca terão, mas que, por rebeldia ou necessidade, acabam por tomar na força. O estado, criador do sistema punitivo, não tem qualquer compromisso com essas gentes. Não quer cuidar delas, não quer recuperá-las, não se importa. Trata como um tumor, uma doença que foi crescendo no corpo sarado que tenta dar ao sistema social, e cujo destino final só pode ser o extermínio.

Ao que se sabe as prisões sempre existiram como espaço de confinamento daqueles que burlassem a paz dos senhores. Os que não pagassem os tributos, os que se rebelassem contra o poder, os chamados hereges. Nos tempos mais antigos o confinamento não tinha o caráter de pena, o que se buscava era manter a pessoa sob o domínio físico, visando garantir que os castigos fossem impostos. Conforme conta Elizabeth Misciasci, no trabalho “Como nasceram os cárceres”, até a chamada modernidade ninguém se importava muito com os locais onde as pessoas eram aprisionadas exatamente por não estares ligados a uma pena. Eram só os espaços nos quais a pessoa esperava pela tortura ou pela execução. As penas, conta ela, eram imputadas conforme o arbítrio dos governantes, que as definiam conforme o “status” social do réu: “amputação dos braços, degolar, a forca, incendiar, a roda e a guilhotina, proporcionando o espetáculo e a dor, como por exemplo, a que o condenado era arrastado, seu ventre aberto, as entranhas arrancadas às pressas para que tivesse tempo de vê-las sendo lançadas ao fogo. Eram essas penas que constituíam o espetáculo favorito das multidões deste período histórico”.

A ideia de prisão como espaço de cumprimento de pena só vai começar com o advento do capitalismo, pois como explica Misciaci, só num sistema em que o trabalho humano é medido pelo tempo poderia vingar a proposta de se fazer expiar o delito com um “quantum de liberdade”. Da mesma forma, na Europa, durante o período da chamada revolução industrial, a pobreza das gentes atingiu índices estratosféricos e desde aí, a criminalidade também aumentou. Foi essa situação específica que gerou a construção de lugares específico onde as pessoas pudessem ficar confinadas para corrigir sua forma de agir no mundo. Naqueles dias era crime mendigar, vagabundear, e não aceitar trabalho. As prostitutas eram consideradas “criminosas natas”. O preso era um sujeito sem direitos, não importando qual fosse seu delito. E foi apenas no século 18 que surgiu o Direito Penitenciário como uma tentativa de garantir ao prisioneiro uma proteção. A base era a exigência ética de que um ser humano deve ser tratado com dignidade seja qual for o seu delito, e que a um ato violento não se deveria pagar com outro.

Todo esse movimento da sociedade em direção a garantia de direitos dos apenados nunca foi sem razão. Ao observar a história das prisões fica bastante claro que boa parte das pessoas que eram encarceradas estava mais para vítima do que vilã. E isso quase sempre foi assim. É fato que existem criminosos violentos e cruéis, mas no mais das vezes a maioria dos que estão nas prisões cumprem pena por delitos leves.

No Brasil, o chamado regime penitenciário, de caráter correcional, com fins de ressocializar e reeducar o detento, só apareceu em 1890, depois reforçado e ressignificado com diversas outras leis. E, como é comum nos países que ficam na periferia do capital, por aqui a pobreza sempre foi gigante, criando as condições para que a criminalidade se fizesse em igual dimensão. Num mundo onde a riqueza fica nas mãos de poucos, muitos são os que se rebelam contra essa concentração, daí a necessidade que os detentores da propriedade têm de contínua vigilância de seus bens. Para isso criam forças de repressão e sistemas de reclusão para quem burla as leis, as quais, majoritariamente, foram feitas pela classe dominante. Logo, para servi-la.

O fato é que a tal da ressocialização dos presos nunca foi real. As prisões serviram e continuam servindo apenas como depósito de gente “malvada”, vista como câncer da sociedade. Assim o que acontece com eles dentro dos portões das penitenciárias não importa a ninguém. Para a maioria que vive mansamente sob as regras ditadas pela minoria, existe até uma sensação de segurança. Se os “malvados” estão presos, tudo correrá bem. É por isso que as denúncias de superlotação, espancamentos, violências, violação de direitos humanos, são vistas como coisas absurdas. Ou seja, não é permitido à “escória” do “mundo livre” reclamar ou exigir qualquer piedade. Se algum dia eles ousaram burlar as leis, que paguem por isso. Não importa que esse pagamento seja o mais cruel, tanto quanto os da idade média, aqueles que levam as boas pessoas às lágrimas quando vistos em algum filme de “roliudi”.

O sistema, para se proteger de quem o quer transformar, cria uma pedagogia do medo, mostrando à exaustão o quanto de maldade e terror os “bandidos” espalham pela terra. Não faz distinção entre os criminosos reais e os pobres diabos que buscam sobreviver num mundo de exclusão. Isso tampouco acontece dentro das prisões, nas quais um preso de primeira vez, por roubar um pão, acaba na mesma cela que a de um assassino serial. As prisões, então, em vez de promoverem a tal da reeducação, acabam se transformando em escolas de crime. Muitas vezes, uma pessoa que cometeu um delito simples, sai da penitenciária tão destruída psicologicamente que tudo o que quer é vingança. Daí para outro crime é um passo só.

Hoje, em Florianópolis, as pessoas mais pobres estão de novo pagando pela falta de visão do Estado. Fazendo ouvidos moucos aos reclames dos presos no sistema penitenciário, em vez de dar soluções simples como a garantia dos direitos humanos, o estado faz o contrário. Assim, aviltados, violentados e humilhados, os detentos com vinculação a grupos organizados no mundo do crime, resolvem atuar da mesma forma, impondo ao Estado a mesma violência e humilhação, ainda que a corda venha a queimar na mão dos trabalhadores.

Com as autoridades estatais em estado de baratatontice, não são poucas as vozes que se levantam exigindo um banho de sangue para os criminosos. “Bandido bom é bandido morto”, arengam, enquanto não tiveram um dos seus enredados na teia da rebeldia ou da marginalidade. Acreditam-se completamente livres de coisas assim, por isso babam por vingança. Muitas vezes são até piedosos cristãos, frequentadores de missas e obras de caridade. Criaturas para quem o “direito humano” só deve estar reservado aos “bons”, seus iguais.

Mas, ocorre que “direito humano” é coisa que vale para todos, sejam eles os privilegiados, os ricos, os dominadores, ou os pobres, os excluídos, os marginais, os bons ou os maus. Por isso se diz direito humano e não direito dos ricos, dos bonitinhos ou dos branquinhos. O avanço da sociedade fez com que as pessoas percebessem que punições como as que eram imputadas na idade média, de castigos corporais, torturas e outras barbaridades não eram condizentes com a natureza humana. Daí a necessidade de garantir os direitos, mesmo daqueles que do ponto de vista da lei, cometeram delitos. Para isso existe o direito, para superar a lei do talião, do dente por dente. Só que em momentos de crise é fácil perceber o quanto a humanidade ainda se mantém no passado brutal.

A segurança não é coisa fácil de ser garantida num estado divido por classes com uma abissal diferença econômica entre elas. Tampouco um banho de sangue nas prisões da grande Florianópolis vai trazer a paz. Se a sociedade insistir no dente por dente, olho por olho, isso não vai ter fim. Santa Catarina vive sim uma queda de braço entre o estado e o crime organizado. Mas essa é só a aparência imediata de um problema estrutural. Pode-se vencer com o uso da força ou pode-se atuar no rumo de uma mudança radical no sistema prisional do estado catarinense. E, mesmo isso ainda será um pequeno passo diante da extrema violência que é o sistema capitalista em si.

E aos que clamam por sangue é bom que saibam que o “outro”, ainda que desigual, tem os mesmos direitos de serem tratados com dignidade. Negar isso a eles é deixar-se envolver pelo mesmo véu de alienação e desumanidade, com o qual estão enredados os que cometem os crimes mais vis. É se equipar em vileza e maldade. As pessoas que dioturnamente estão em luta pelos direitos humanos não costumam escolher alvos específicos para o exercício de direitos. Defendem a vida e a dignidade dos policiais, dos trabalhadores, dos motoristas, das autoridades e dos que, premidos pela brutalidade de um sistema que esmaga o humano, assumem o papel de criminosos.

Florianópolis vive dias de caos, com ônibus queimados e gentes assustadas, no mesmo momento em que os trabalhadores da saúde estão parados por melhores salários e condições de trabalho. Assim, da mesma forma como os empresários tem seus bens depredados, os mais pobres, que dependem do serviço público, amargam nos hospitais e nos postos de saúde, sem atendimento. O tratamento dado pelo governador é desigual. Aos empresários, manda escolta policial, aos trabalhadores, corta o ponto e ameaça, deixando os espaços de saúde sem guarnição. Mas, isso, ao que parece, gera indignação em muito poucos…
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