Filha de Che luta para preservar a imagem de revolucionário idealista do pai

Tracy McVeigh, do Guardian

Ela tem os olhos do pai, um olhar que virou emblema do século 20. E possui também seu profundo senso de injustiça social. Mas a dra. Aleida Guevara sempre teve que dividir seu “papi” com o mundo.

Ela não se incomoda com os pôsteres, as faixas, os cartões postais, os grafites e as camisetas, mas ela e sua família estão tentando suprimir as utilizações “desrespeitosas” da célebre foto de seu pai feita por Alberto Korda em 1960. Tarefa difícil: é a imagem mais reproduzida do mundo.

“Não é fácil”, a doutora diz, sorrindo. “Não queremos controlar a imagem nem ganhar dinheiro com ela. Mas quando ela é explorada negativamente, é difícil. Às vezes as pessoas sabem o que ele representa, às vezes não. Na maioria dos casos acho que a imagem é usada bem, como símbolo da resistência à repressão.”

A imagem de Che num biquíni foi um caso que a família não pôde impedir, mas o rosto de Che, que era abstêmio, numa garrafa de vodca foi uma batalha ganha pela família com a ajuda da Campanha do Reino Unido de Solidariedade com Cuba.

No próximo mês se completarão 45 anos desde a morte de Ernesto “Che” Guevara, o guerrilheiro que ajudou a liderar a revolução cubana e tornou-se ícone da rebelião. Este ano é também o 50º aniversário do bloqueio americano, o embargo comercial e de viagens que vem sufocando a economia cubana.

Devido ao impasse ao estilo da Guerra Fria, os Estados Unidos ainda gastam milhões para fazer transmissões de rádio e TV com propaganda política para Cuba. Os cubanos ainda são os únicos imigrantes que os EUA incentivam com a concessão de cidadania automática.

País subdesenvolvido que proporciona educação e saúde de primeiro nível a todos seus habitantes, Cuba conserva políticas antidissidentes, encarcerando jornalistas e ativistas antigoverno. Apesar de uma libertação em massa de dissidentes realizada em 2011, as autoridades cubanas, segundo a Anistia Internacional, “não toleram qualquer crítica às políticas do Estado que seja feita fora dos mecanismos oficiais estabelecidos sob controle do governo. Leis sobre ‘desordem pública’, ‘periculosidade’ e ‘agressão’ são empregadas para processar adversários do governo. Nenhuma organização política ou de direitos humanos é legalmente aceita.”

A dra. Guevara está no Reino Unido em função de outro aniversário: o 14º ano desde que os Cinco de Miami –espiões encarregados de infiltrar grupos terroristas anti-Castro operando a partir da Flórida– foram encarcerados nos Estados Unidos. A pediatra de Havana, que tem 51 anos, vai liderar uma vigília noturna diante da embaixada dos EUA em Londres em 18 de setembro. “Não sou política, mas rejeito a injustiça”, ela insiste.

“TIO”

Aleida tinha 7 anos quando Che foi morto por um grupo de soldados bolivianos e agentes da CIA num povoado boliviano isolado. Tendo apenas recordações vagas de seu pai, ela o conheceu melhor através de seus diários e das recordações de outros, incluindo o homem que ela chama de “tio”: Fidel Castro.

“Fidel já me contou muitas histórias belas sobre meu pai, mas não posso lhe perguntar demais –ele ainda se emociona muito quando pensa em Che. Por exemplo, meu pai tinha letra péssima, então pediram à minha mãe que transcrevesse seus diários.

Quando Raúl Castro veio a nossa casa para buscar o manuscrito, minha mãe sabia que Raúl e Fidel também escreviam diários, então falou: ‘Se houver relatos nos diários que difiram, vocês precisam basear-se no de Che, já que ele não está aqui para se defender’. Raúl ficou muito bravo e falou: ‘Não, enquanto Fidel e eu estivermos vivos, Che estará vivo. Ele está conosco sempre.’ Os dois já estavam chorando.”

“Se Che não tivesse morrido na Bolívia, teria morrido na Argentina, tentando mudar as coisas nesse país”, ela diz. “Talvez a América Latina fosse um continente diferente hoje. Minha mãe sempre diz que, se meu pai tivesse vivido, todos nós seríamos humanos melhores.”

Che era estudante de medicina na Argentina quando, durante uma viagem de motocicleta pela América Latina, em 1952, ficou revoltado com a pobreza que viu. Passou a teorizar sobre política, depois pegou em armas e uniu-se à revolução que derrubou o corrupto regime de Fulgencio Batista em Cuba.

Foi então, quando a classe média e os ricos cubanos fugiram do país em direção a Miami, que um abismo se abriu entre Cuba e Estados Unidos, abismo que desde então vem se aprofundando a cada presidente americano que passa. A promessa feita por Obama de enfrentar a questão cubana até agora não deu em nada. “Tínhamos grandes esperanças, mas estamos decepcionados com Obama. Com ele, as coisas talvez até tenham piorado para nós”, diz Aleida Guevara.

Ela acredita que a revolução continua a borbulhar em fogo baixo na América Latina, onde a disparidade entre ricos e pobres vem crescendo, coisa que, como fazia Che, ela atribui à industrialização crescente liderada pelos EUA. “A crise econômica atual é mais perigosa para a América Latina que qualquer outra anterior. Agora não se trata apenas de óleo –os EUA querem água, também. O Brasil está destruindo sua floresta para extrair ferro, o México é um aterro sanitário de resíduos descartados. Desta vez é a terra que está sendo destruída também.”

Críticos de Che afirmam que a imagem do jovem fotogênico em uniforme de combate e que escrevia poesia ganhou precedência sobre a brutalidade de sua revolução. Guevara não tinha receios em matar. “Era uma revolução”, diz sua filha. “É claro que eu preferiria que não tivesse havido sangue, mas essa é a natureza da revolução. Numa verdadeira revolução, você precisa conseguir o que quer pela força. Um inimigo que não quer lhe dar o que você quer? Talvez você tenha que tomar. Meu pai tinha consciência do risco para sua própria vida.”

“É claro que eu senti raiva de crescer sem pai, mas minha mãe sempre me disse ‘ame seu pai por quem ele foi, um homem que teve que fazer o que fez’. Meu pai morreu defendendo seus ideais. Até o último minuto, foi fiel àquilo em que acreditava. É isso o que eu admiro.”

Mas ela diz que teria gostado de poder discutir com ele. “Quando eu tinha 6 anos ele me mandou uma carta. Nela, dizia que eu deveria ser boazinha e ajudar minha mãe com os trabalhos de casa. Fiquei brava porque a carta que ele mandou a meu irmão dizia ‘vou levar você para a Lua’ e a de meu outro irmão, ‘vamos partir e combater o imperialismo juntos’. Fiquei irritada. Eu também queria ir à Lua. Por que eu não podia combater o imperialismo?”

Aleida Guevara é a mais velha dos quatro filhos de Che com sua segunda esposa, Aleida March. “Crescendo em Cuba como filhos de Che, não tivemos privilégios. Meus colegas não souberam quem eu era até a primeira vez em que falei na TV cubana, em 1996. Mas é importante não guardar silêncio, porque há injustiças sendo cometidas.”

Tradução de CLARA ALLAIN.

http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1157536-filha-de-che-luta-para-preservar-a-imagem-de-revolucionario-idealista-do-pai.shtml. Enviada por José Carlos para Combate ao Racismo Ambiental.

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