A verdade na prateleira

Para se conseguir um documento no Arquivo Público do Rio de Janeiro é uma luta

Denise Assis

Veio a calhar o pedido do ministro e presidente da Comissão da Verdade, Gilson Dipp, para que o governador Sérgio Cabral crie uma comissão com este caráter no Rio. Como se pode observar no documento ao lado, o governador é filho de um ex-jornalista do Pasquim, publicação alternativa e de resistência contra a ditadura. Por esta atividade, considerada pelos generais como “terrorista”, Sérgio Cabral (pai) teve de descer aos porões e explicar que não era nada disto.

É possível que Sérgio Cabral Filho nunca tenha deitado os olhos em tal documento. Ou, talvez, já tenha ouvido falar dele, mas se soubesse da missa, a metade, de como obter cópia dele, caso queira, o nobre governador na certa já teria ido ver mais de perto por que o Rio está tão atrasado na organização da sua Comissão da Verdade.

A despeito dos apelos da presidente Dilma para que a história seja contada e os arquivos sejam abertos, pelo menos a pesquisadores, o Rio segue fazendo ouvidos moucos.

Há dias, pesquisando no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – e é importante que se preste atenção no vocábulo “público”, nesse título –, tive a impressão de ter entrado no túnel do tempo.

Ao consultar uma das pastas, a de “Informações”, número 145, do arquivo, encontrei entre a papelada um registro que me chamou a atenção. Era apenas isto, um parágrafo, mas me intrigou pela data.

Ora, todos sabemos que o ex-militante político de esquerda Stuart Angel desapareceu em 1971. Pois bem, datado de13 de maio de 1976, sob o código “P.B. 235/76 – DCI/SSI/SC – DCI/SSI/SC. (DRRQ 4485/76)”, havia um “pedido de busca” em nome de “Stuart Edgard Angel Gomes – Codinome Paulo – Henrique – Rui –“, feito pelo Cenimar, na folha 887, com “Solicitação de dados de qualificação.”

Ou seja, o Cenimar, órgão historicamente apontado como uma das instituições envolvidas nesse desaparecimento, queria saber dele e de sua ficha corrida. O mais curioso é que no pé da página desse registro consta a observação: (documentos anexos). E não há nenhum relatório anexado, apesar da ressalva entre parêntesis.

Pela data, não é difícil recordar que neste ano, durante uma visita do diplomata americano, Henri Kissinger, ao país, a estilista Zuzu Angel, mãe de Stuart, fez chegar as suas mãos um dossiê em que denunciava o desaparecimento do filho. Stuart tinha cidadania norte-americana, o que tornava ainda mais pertinente o gesto desesperado da mãe. Seria o pedido do Cenimar um “teatrinho” para inglês ver? Quis conferir, e para isto me dirigi ao diretor da sala de consultas.

– O Sr. Sabe me dizer onde estão esses documentos? Há um pedido de busca ao Stuart datado de 76, quando todos sabemos que ele sumiu em 71… E onde estão os anexos citados aqui?

– Olha, não sei lhe dizer. Nesta época eu ainda não trabalhava nisto. (?????)

Sua resposta foi seguida da informação de que não seria possível obter cópia. Não naquele instante. A esta altura fui inteirada do seguinte procedimento: apesar da lei da transparência total e da orientação do governo para que seja dado acesso aos arquivos, para que se fale do tema de modo aberto, pois já se transformou em história, e a história deve e tem de ser contada, o Arquivo do Estado do Rio de Janeiro está na contramão.

Ainda faz uma pasta em cartolina, com brasão do estado (ou seja, abre um processo com todos os seus dados: nome, endereço, telefone, CPF) a ser encaminhada a uma “Comissão de Acesso” composta de cinco membros que vão julgar a “procedência e a conveniência” do seu pedido de cópia do documento pesquisado.

Caso esses “doutos” considerem que sim, você está “apta” e dona de suas faculdades para ter o seu pedido aceito, o arquivo passa a solicitação para a mão de uma advogada (eu disse isto mesmo, uma!!!! para todos os pedido diários de cópias que costumam ser várias). O parecer jurídico sendo favorável a que a sua cópia poderá vir a engrandecer a história deste país em algum aspecto, aí sim, ela concede que esta mísera folhinha de papel contendo estas cinco linhas cheguem as suas mãos.

Todo este processo pode durar segundo uma carteirinha (semelhante às de vacinação) – que você recebe enquanto assiste um burocrata grampear com ar solene a pasta de cartolina com a requisição de cópia -, “de 15 a 20 dias prorrogáveis por mais 10?.

Seria o arquivo público um mero depósito de papéis empoeirados, cujo controle absoluto deve ser dele, Estado, com a única missão de guardar o acervo em prateleiras que um dia ruirão ante a inércia “moralizante”????? Ignorante???? Imobilizante???? E num momento em que a orientação é a de esclarecer e contar?

Ah! E como se não bastasse, solicitei umas fotos daquele período, o da ditadura. Uma jovem de não mais de 30 anos, que ocupa o cargo de coordenadora do arquivo fotográfico, veio explicar que o acervo solicitado (só para eu dar uma olhada no verso das fotos por alguns minutos) estava sendo “higienizado” e, por isto, eu só teria acesso a duas das nove fotos que pedi.

– Nós estamos fazendo um favor para a senhora permitindo que veja estas duas, porque o certo não seria mostrar nem isto.

Quase me joguei de joelhos a seus pés, agradecida e emocionada!!! (O que argumentar ante a uma explicação técnica dessa natureza???)

Concluí que eu estava em uma espécie de “zoológico”, onde os funcionários se sentem fazendo um “favor” de permitir que olhemos de vez em quando suas “atrações”.

Detalhe. Pedi reprodução dos documentos localizados por mim. Apenas um terço foi feito. O restante veio embaralhado em meio a reproduções que eu não pedi.

Engano???

http://correiodobrasil.com.br/a-verdade-na-prateleira/517237/#.UFnW641lQ01

Enviada por José Carlos para Combate ao Racismo Ambiental.

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