Maria Clara Migliacio: “Carta aberta a todos que se interessam pelo Patrimônio Arqueológico Brasileiro”

A carta de Maria Clara Migliacio* foi enviada a Combate ao Racismo Ambiental por Alessandra Mello Simões Paiva, a quem agradecemos. Vale lê-la no texto e no contexto. TP.

Prezados colegas, arqueólogos, cidadãos,

Minha saída repentina do Centro Nacional de Arqueologia – CNA, junto com os demais colegas que o dirigiam, motiva esta comunicação, visto que em diversas ocasiões estivemos apresentando, publicamente, ideias, propostas e planos, que estavam sendo por nós idealizados e/ou implementados.

Minha trajetória no Iphan, iniciada em 1989, me fez abraçar o patrimônio arqueológico como objeto a demandar maiores atenções por parte da instituição, já que naquela época apenas seis técnicos da Casa eram responsáveis pela gestão do patrimônio arqueológico de todo o Brasil.

Após alguns anos trabalhando sistematicamente na área de proteção ao patrimônio edificado (sou graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo), considerei que o Iphan tinha mais necessidade de arqueólogos do que de arquitetos já que, desde aquele tempo, a maioria dos técnicos de que a Casa dispunha constituía-se desses últimos.

De fato, minha atuação em Mato Grosso, comprometida com a defesa do patrimônio cultural, do meio-ambiente e dos povos indígenas, me forneceu uma visão mais ampla de patrimônio, que sempre vislumbrou para além da “pedra-e-cal” e, mais ainda, para além daquela “pedra-e-cal” remanescente da colonização europeia. Em termos de patrimônio, considero que o Brasil tem muito mais do que isto.

Naquelas alturas, também já me apaixonara pelo patrimônio arqueológico de Mato Grosso e, especialmente, pelo patrimônio arqueológico do Pantanal, que depois veio a ser objeto das minhas pesquisas acadêmicas, realizadas no âmbito do Programa de Pós-Graduação do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo.

Em 2009, quando fui convidada a assumir o cargo de direção do recém-criado Centro Nacional de Arqueologia, vago desde maio, quando foi criado pelo Decreto 6844, até meados do segundo semestre, para mim o convite soou como um acontecimento natural, embora eu nunca tivesse pretendido, planejado, ou sequer almejado ocupar tal cargo. Senti, no entanto, como natural, devido ao meu próprio histórico de vida e qualificação técnica, sempre comprometidos com causas justas na área social, ambiental e cultural.

Saí, então, de Mato Grosso para Brasília, com disposição plena e total de dar minha contribuição ao fortalecimento do CNA e ao aperfeiçoamento da gestão do patrimônio arqueológico naquilo que fosse da competência do Iphan, e considerando as interfaces e parcerias da instituição com diversas outras que de alguma forma participam daquela complexa tarefa.

Posso lhes afirmar que os quase dois anos e meio em que estive à frente do CNA foram de muita luta.

Contamos com recursos humanos reduzidíssimos – cerca de 40 técnicos, se considerados os lotados no CNA e os distribuídos pelas Superintendências Estaduais, dos quais menos da metade possui formação na área de Arqueologia. Com esta equipe, que compensava a falta de formação específica com o interesse, a motivação e a dedicação que sempre lhe foram característicos, procuramos avançar, buscando meios para evidenciar, tanto aos olhos da direção da Casa, como a ambientes estratégicos externos, a necessidade de dotar a gestão do patrimônio arqueológico brasileiro com uma estrutura mais condizente com a relevância e grandeza que veio conquistando, especialmente nos últimos vinte anos (vide, por exemplo, meu artigo na Revista do IPEA – Desafios do Desenvolvimento, nº 62, edição especial de jun/jul 2010, e a entrevista por mim concedida ao jornal Valor Econômico, publicada em 31/10/2011).

Já em 2009, quando acabávamos de assumir a direção do CNA, demos importante contribuição ao I Fórum Nacional de Patrimônio Cultural, realizado pelo Iphan em Ouro Preto, de 13 a 16 de dezembro, e que contou com ampla participação de especialistas externos e da própria sociedade. As mesas temáticas propostas pelo CNA trataram de aspectos ainda frágeis no âmbito do Iphan, a exemplo da socialização do patrimônio arqueológico e dos desafios da gestão do patrimônio arqueológico em meio urbano.

As discussões do I Fórum, realizadas por 19 mesas temáticas, resultaram em propostas para a formulação de uma política nacional para o patrimônio cultural e para a estruturação de um sistema nacional para o setor(1). A plenária realizada para apresentação e consolidação de todas as propostas enalteceu especialmente a contribuição de dois grupos de trabalho, sendo um deles o que tratou do patrimônio arqueológico. Desta forma, os dois temas tratados por nossa área passaram a nortear os nossos esforços no sentido da ampliação da ação governamental em matéria de patrimônio cultural.

2010

No primeiro ano de nossa permanência à frente do CNA elaboramos e apresentamos à direção do Iphan um plano de trabalho a que chamamos Plano Intermediário para a gestão do Patrimônio Arqueológico, composto por um conjunto de linhas programáticas que pretenderam criar espaço institucional para o desenvolvimento de uma ampla gama de ações em áreas e atividades que poderiam dar conta de parte significativa do complexo trabalho de gestão. A sua proposição como plano “intermediário” deveu-se ao fato de que foi elaborado pela equipe do CNA como ponto de partida, visando à ampliação de sua discussão com as Superintendências e com a própria direção da Casa e permitir, ainda, a incorporação de contribuições que viessem a ser feitas por instâncias externas, por instituições com as quais o Iphan mantém interfaces na área da gestão do patrimônio arqueológico, a exemplo das Universidades e da Sociedade de Arqueologia Brasileira – SAB, além de outras de acompanhamento, como o Tribunal de Contas da União(2) e o Ministério Público, entre outras.

A versão final do Plano seria, então, consolidada mediante um Termo de Parceria a ser firmado com instituição especializada em estruturação e implantação de políticas públicas, projeto este que por dois anos consecutivos (2010 e 2011) teve a sua realização inviabilizada por forças internas do próprio Iphan.

Na área da qualificação e ampliação dos recursos humanos, foi a partir de nossa interferência que o edital do último concurso do Iphan exigiu formação específica na área de Arqueologia para os que pretendessem ocupar as vagas disponíveis para a gestão do patrimônio arqueológico, o que representou significativo acréscimo de arqueólogos aos quadros da Casa.

Também no primeiro ano de atuação conseguimos levar, no âmbito da Cooperação Brasil-México, 11 técnicos do Iphan para um intenso curso de 15 dias, em tempo integral, realizado pelo Instituto Nacional de Antropología e Historia – INAH especialmente para a delegação brasileira, no qual foram tratados os mais relevantes aspectos que compõem a gestão do patrimônio arqueológico, da pesquisa à socialização, na teoria e na prática, usando o caso emblemático de Teothiuacan e de outros importantes sítios e zonas arqueológicas mexicanas. Construiu-se, também, a oportunidade do desenvolvimento de projetos em parceria com aquela instituição do governo mexicano, bem como a possibilidade de realização de publicações conjuntas.

Ainda no ano de 2010 e em continuidade aos resultados do I Fórum Nacional de Patrimônio Cultural, empreendemos o importante trabalho de discussão e proposição de um instrumento normativo do que se convencionou chamar no Brasil de “Arqueologia Histórica”, voltada para bens do período dito “histórico”, este entendido como o período iniciado a partir da colonização europeia. Durante seis meses, um grupo formado principalmente por arqueólogos, procuradores federais e arquitetos, de dentro e de fora da Casa, trabalhou na elaboração de uma proposta para normatização da “Arqueologia Histórica” no Brasil, já que se trata de um campo em que a gestão do Iphan ainda não está bem definida e explicitada, e do que decorrem inúmeros problemas e omissões.

Ainda visando ao atendimento da necessidade de empreenderem-se pesquisas junto ao patrimônio arqueológico do período “histórico” ou, ainda, daquele hoje localizado em ambiente urbano, frente à implementação do chamado PAC das Cidades Históricas, que prevê mais de uma centena de intervenções em centros ou núcleos históricos urbanos, propusemos a contratação temporária de consultores arqueólogos que fariam a primeira etapa dos trabalhos de arqueologia, que consistiria na avaliação da relevância e do potencial arqueológico dos bens atingidos e, ainda, na indicação do que seria necessário realizar na fase seguinte de estudos. Estes últimos a serem contratados no bojo de cada projeto de restauração arquitetônica ou de intervenção urbana.

A contratação, pela UNESCO, de consultores para o desenvolvimento de trabalhos de interesse do Iphan tem sido bastante comum, o que de certa forma viabiliza alguns trabalhos que a falta de recursos humanos(3) não tem permitido ao órgão desenvolver com seus próprios quadros. Porém, a despeito de que algumas áreas do patrimônio vêm sendo bastante atendidas por meio dessas contratações temporárias, não logramos sucesso na nossa proposição.

2011

O ano de 2011 foi um ano de dedicação especial ao Patrimônio Cultural Subaquático, área em que realizamos importantes avanços. A elaboração de um instrumento de Cooperação entre o Iphan e a Marinha do Brasil para a proteção do patrimônio arqueológico subaquático, aliado à atuação conjunta das duas instituições, resultaram numa profícua parceria que, da melhor forma possível, atenua as falhas da legislação vigente, oportunizando maior participação do Iphan e uma ação governamental mais adequada para a proteção dos bens culturais localizados em meio aquático.

No campo da qualificação, conseguimos desengavetar um importante convite e enviar um arqueólogo do quadro permanente do Iphan para o curso de Arqueologia Subaquática oferecido pela UNESCO e pelo Museo Nacional de Arqueología Subacuática em Cartagena, Espanha, com um mês e meio de duração e no qual, além da parte teórica de gestão, oportunizou a participação em escavações subaquáticas que estão sendo realizadas na costa mediterrânea, em um sítio de naufrágio de uma embarcação romana do século I antes de Cristo.

Ainda no campo da qualificação, desenhávamos, em conjunto com o Laboratório de Arqueologia de Ambientes Aquáticos da Universidade Federal de Sergipe e com a Agência Holandesa de Patrimônio Cultural, um projeto de cooperação tripartite com o objetivo de preparar quadros técnicos brasileiros para tratar desse tipo específico de patrimônio, no âmbito do desenvolvimento de um projeto-piloto de gestão de um sítio de naufrágio localizado na costa baiana e que fosse exemplar e contemplasse todas as fases da gestão – desde a discussão da pertinência ou não do resgate, da realização da pesquisa, até a conservação e musealização in situ.

Quando da nossa saída do CNA, em maio do ano corrente, estávamos aguardando a assinatura do Termo de Cooperação com a Marinha, e em pleno processo de finalização de um instrumento normativo para aprovação de projetos e relatórios, com definição de atribuições e competências para coordenação de pesquisas, definição de fluxogramas e de outros aspectos, para nortear especificamente os trabalhos de arqueologia subaquática no Brasil no âmbito do licenciamento ambiental.

Dois mil e onze também foi um ano bastante dedicado à discussão da socialização do patrimônio arqueológico. Desde a revisão da ficha de Cadastro dos sítios arqueológicos e sua adequação ao Sistema Integrado de Conhecimento e Gestão – SICG, ferramenta que está sendo construída pelo Iphan com o objetivo de integrar a informação sobre todos os tipos de patrimônio cultural do Brasil.

Como parte de um Plano Nacional de Socialização estávamos organizando, também, a rede de parcerias que integraria as instituições de guarda de material arqueológico, o que permitiria ao Iphan fomentar o desenvolvimento de ações amplas de apoio e capacitação das mesmas, para aprimoramento da gestão dos acervos. A Educação Patrimonial no âmbito dos projetos de arqueologia estava sendo repensada. E, por fim, com base nas mais recentes experiências mexicanas, iniciávamos a discussão de projetos-piloto de vinculação social do patrimônio arqueológico, onde este é alavanca de desenvolvimento econômico e social, e de cidadania.

Essas ações e propostas na área da socialização foram apresentadas publicamente pela equipe do CNA durante o XVI Congresso da SAB realizado em 2011 (Florianópolis, de 04 a 10 de setembro de 2011), numa reunião que despertou grande interesse, tendo sido uma das mais concorridas do evento, e que contou com maior número de participantes.

Ainda no mesmo ano, realizamos um seminário interno que denominamos I Encontro Nacional de Gestores do Iphan para o Patrimônio Arqueológico (Brasília, de 5 a 9 de dezembro de 2011), e que reuniu cerca de 60 servidores públicos envolvidos com a gestão do patrimônio arqueológico e que atuam na área central e nas unidades descentralizadas do Iphan por todo o Brasil, entre os quais técnicos, pessoal de apoio e superintendentes, além de procuradores federais. O seminário veio a iniciar a discussão sistemática dos problemas, fragilidades e potenciais da gestão do patrimônio arqueológico como é hoje praticada pelo Iphan, construindo uma base comum para a propositura compartilhada de soluções com vistas ao aprimoramento de práticas e instrumentos.

Ao seu final, uma avaliação foi aplicada, de forma independente, pela Coordenação Geral de Gestão de Pessoas do Departamento de Planejamento e Administração do Iphan, sendo que 93% dos participantes avaliaram o evento entre bom e excelente, o que nos sinaliza que após muitos anos sem ocorrer uma reunião interna específica para o patrimônio arqueológico, o evento correspondeu positivamente às expectativas da maioria dos colegas, criando coesão, comprometimento, e um ambiente favorável para a continuidade das nossas construções compartilhadas.

Isso tudo, sem deixar de, com equipe tão reduzida, manter vivo todo o processo de licenciamento e acompanhamento das pesquisas arqueológicas, que somente em 2010 e 2011 somaram mais de 2 mil (cerca de 970 em 2010 e 1200 em 2011), do que resultaram milhares de relatórios e, em decorrência, também milhares de pareceres e informações técnicas, além de uma vultuosa comunicação interna e externa, que totalizou mais de 5 mil correspondências enviadas pelo CNA na forma de memorandos e ofícios.

Enquanto isso, foram elaborados alguns instrumentos normativos que ficaram encalacrados aguardando posição de instâncias superiores, o que não houve. Um dos mais importantes foi a proposta de portaria para a chamada “Arqueologia Histórica”, conforme descrito acima. Outra portaria, esta de caráter político e operacional, e que seria muito importante para resolver discrepâncias existentes entre diferentes instâncias do próprio Iphan, viria para definir competências na gestão dos projetos de arqueologia: do CNA (se projetos de abrangência nacional) e das Superintendências (se projetos de abrangência estadual) sendo, ainda, acompanhada dos respectivos fluxogramas de tramitação de projetos e relatórios. Ambas as propostas foram submetidas à Direção da Casa, mas ficaram sem resposta.

Foi também concebido um instrumento que define critérios gradativos para o reconhecimento da competência dos arqueólogos para assumir a coordenação de projetos de arqueologia, levando-se em conta a sua titulação e experiência técnica, em correspondência com o porte dos empreendimentos e com a complexidade dos projetos. O mesmo instrumento propõe também critérios para a definição da competência do “coordenador de campo” que, ao lado do coordenador científico passaria também a ser identificado na portaria de permissão de pesquisa. Esta proposta, como também aquela desenhada especialmente para a Arqueologia Subaquática no âmbito do licenciamento ambiental, não chegaram a ser submetidas a instâncias superiores, mas há todo um trabalho feito em prol desses instrumentos que, a nosso ver, não deveriam ir para a lata do lixo.

Na última década a gestão do patrimônio arqueológico no âmbito do licenciamento ambiental assumiu importância ímpar. O Iphan passou então a participar de reuniões mensais de acompanhamento das obras do PAC, coordenadas pela então chefa da Casa Civil, Dilma Rousseff, algumas das quais sob a condução do próprio Lula, enquanto Presidente da República, e das quais participavam entre 10 e 20 instituições envolvidas no licenciamento ambiental e na realização das obras estratégicas do governo federal.

A partir do governo Dilma essas reuniões passaram a ser nos Ministérios, principalmente no Ministério de Minas e Energia e no Ministério dos Transportes, conforme a natureza dos empreendimentos tratados.

Esse processo culminou com a publicação da Portaria Interministerial 419 de 26 de outubro de 2011, que pretendeu dar mais celeridade ao processo de licenciamento ambiental, definindo regras e limites à participação dos chamados “órgãos anuentes”(4).

No meu entender, com a Portaria Interministerial 419, a consulta aos “órgãos anuentes”, que antes se dava a cada licença ambiental requerida (Licença Prévia, Licença de Instalação e Licença de Operação) passou a ser obrigatória apenas na fase preliminar do processo de licenciamento: no momento da definição do Termo de Referência que vai nortear a elaboração dos estudos ambientais, e no momento da definição do Plano Básico Ambiental de cada empreendimento, o que se dá a partir da emissão da Licença Prévia. Assim, a participação na elaboração desses dois instrumentos passa a ser crucial para os órgãos relacionados ao licenciamento, entre eles, o Iphan.

Nesse contexto, o Iphan resolve, então, instituir o “licenciamento cultural”, para contemplar os diversos tipos de patrimônio cultural no licenciamento ambiental o que, a bem da verdade, já era previsto desde 1986 pela Resolução Conama 001/86, só não estava sendo sistematicamente aplicado(5).

A ideia foi de que instituindo o “licenciamento cultural”, o patrimônio cultural no âmbito do licenciamento ambiental seria tratado por outra instância do Iphan, deixando o CNA de exercer o papel de condutor do processo, o que considero um lamentável equívoco, dado que a área de gestão do patrimônio arqueológico possui uma experiência institucional acumulada ao longo de 20 anos, de acompanhamento de mais de seis mil processos de licenciamento ambiental, o que então passa a ser desconsiderado pelo próprio Iphan.

Deve-se considerar, ainda, o fato de que, em decorrência do caráter não seletivo da Lei Federal 3924/1961, que protege indistintamente os sítios arqueológicos brasileiros, é obrigatório que todos os empreendimentos e obras potencialmente causadoras de danos ao meio-ambiente façam os estudos arqueológicos, enquanto para os outros tipos de patrimônio, dado o caráter seletivo do Tombamento de bens culturais materiais (Decreto-Lei 25/1937) e do Registro de bens imateriais (Decreto 3.551/2000), são protegidos apenas uns tantos bens culturais previamente selecionados e que serão tratados no licenciamento de apenas alguns empreendimentos. Desta forma, retirar o CNA da condução do processo pode ser considerado um verdadeiro contrassenso.

O fato é que, a publicação da Portaria Interministerial 419 já está quase fazendo um ano e a estrutura, inicialmente anunciada pelo Depam/Iphan, de criação de uma “Coordenação de Licenciamento Cultural”, sequer foi desenhada.

2012

No início de 2012, com a Portaria 419 já em plena vigência, preocupados com a falta de definição da Casa na área do licenciamento, e sob uma “chuva” de solicitações do IBAMA para anuência aos Termos de Referência para os estudos ambientais de diversos empreendimentos, elaboramos uma proposta de Termo de Referência de caráter geral para a área do patrimônio arqueológico, buscando garantir ao menos os itens mínimos a serem exigidos para a sua proteção.

Além da garantia da implementação de medidas mitigadoras de impactos negativos ao patrimônio arqueológico – entre as quais o desenvolvimento de pesquisas, a identificação de sítios merecedores da proteção por tombamento, entre outras -, a proposta de Termo de Referência elaborada procura garantir avanços importantes na área da socialização, especialmente na questão da sustentabilidade da guarda dos acervos arqueológicos, na definição dos programas de educação patrimonial e na inserção das comunidades locais e minorias no processo de desenvolvimento das pesquisas, por meio da utilização de metodologias participativas, a exemplo da arqueologia do presente, da arqueologia de comunidades, e da etnoarqueologia, entre outras, e cuja proposição foi baseada na experiência exitosa da identificação das Áreas Sagradas do Alto Xingu – Kamukuaká e Sagihengu(6), medida exigida para mitigação de impactos negativos ao patrimônio arqueológico das culturas indígenas altoxinguanas, no âmbito do licenciamento ambiental da PCH Paranatinga II, em Mato Grosso, e que culminou com o seu tombamento em 2010.

Tampouco houve manifestação da direção do Departamento sobre a proposta desse Termo de Referência.

Antes de deixarmos o cargo, finalizamos e encaminhamos ao presidente do Iphan contraproposta de Termo de Cooperação com o governo da Holanda na área de Patrimônio Cultural Subaquático em resposta ao seu convite inicial, tornando-o mais adequado aos interesses brasileiros, focados na formação de quadros de gestores e na
construção de uma experiência exemplar no campo específico dos sítios de naufrágios, tão numerosos na costa brasileira, quanto expostos a saques e explorações aventurescas ou, ainda, a ações descuidadas do ponto de vista da conservação.

Evidentemente estamos aqui colocando apenas algumas das ações que desenvolvemos durante o período de pouco mais de dois anos que permanecemos à frente do CNA, aquelas que entendemos como sendo as mais expressivas ou de maior interesse público.

Enquanto desenvolvíamos todos esses trabalhos, a direção do Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização (Depam) decidia pela exoneração da direção do CNA, ou seja, da sua Diretora e dos seus três Coordenadores – Coordenadora de Normas e Acautelamento, Coordenadora de Socialização e Coordenador de Pesquisa e Licenciamento.

Considero que foi uma espécie de “exoneração sumária”, pois não foram explicitadas nem críticas e nem motivação. Nem tampouco fomos ouvidos sobre qualquer aspecto que quiséssemos colocar. Até ali parecia que tínhamos o apoio do novo Diretor, que no momento em que anunciou a nossa exoneração havia ingressado no Iphan há apenas cinco meses.

Com isso é provável que sejam abortadas as nossas propostas e os trabalhos que iniciamos sem, contudo, ter havido tempo e apoio suficientes para a sua implantação. De fato, dois anos é um período muito curto para se promover a transformação de um setor tão sensível quanto complexo da área do patrimônio cultural e, ainda, dentro de uma instituição que tem se mostrado tão refratária a reconhecer os valores próprios do patrimônio arqueológico e a acatar qualquer tipo de mudança que venha para evidenciar ainda mais as suas especificidades e a sua importância.

Somente este entendimento pode explicar o silêncio absoluto com que as instâncias superiores do Iphan sempre reagiram às propostas feitas pelo CNA durante a nossa gestão, e a sua total ausência de posicionamento, nos deixando sem o apoio necessário para a implantação das transformações pretendidas.

Metaforicamente falando, o patrimônio arqueológico vem sendo uma espécie de “patinho feio” dentro do Iphan. É aquele patrimônio cuja importância não tem recebido o merecido reconhecimento por parte da direção da Casa, habituada ao patrimônio de pedra-e-cal.

E hoje esse patinho-feio está crescido e prestes a virar cisne, abrir suas grandes asas e voar. Mas a pata, mãe postiça, ainda está a lhe bicar a cabeça para que fique quieto, encolhido, e que dê um jeito de parecer pequeno… E, de preferência, para sempre.

Não posso deixar de dizer que vivenciar esse período à frente do CNA foi uma experiência ímpar e que hoje vejo, com toda a clareza, que a tarefa da gestão do patrimônio arqueológico no Brasil cresceu e se complexificou tanto que ficou muito grande dentro de uma instituição que o vê pequeno. Assim, a gestão do patrimônio arqueológico está a requerer estrutura e espaço específicos de atuação, que sejam mais adequados às suas especificidades e condizentes com a grandeza que alcançou no cenário nacional.

Que fiquem essas palavras como um registro de um momento em que o patrimônio arqueológico no Brasil ainda está a buscar o seu merecido lugar ao sol. E que essa manifestação possa inspirar muitos guerreiros na construção de um serviço público verdadeiramente focado na sua missão, naquilo que diz respeito ao patrimônio arqueológico e ao seu enorme potencial de contribuir para o fortalecimento da identidade cultural brasileira.

…e saravá, meu pai!!!

*Maria Clara Migliacio
arquiteta, doutora em Arqueologia
ex-Diretora do CNA/Iphan
Brasília, 23 de agosto de 2012.

Notas:

1 Vide IPHAN Síntese preliminar das discussões – subsídios para o II CNC – I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural – Sistema Nacional do Patrimônio Cultural: desafios, estratégias e experiências para uma nova gestão. Brasília, março 2010.

2 O Acórdão nº 2164/2007 do Tribunal de Contas da União – TCU, após auditoria no Iphan, apontou a existência de falhas na gestão do patrimônio arqueológico relacionadas à insuficiência das normas, das formas de proteção e socialização recomendando, especialmente, o aumento dos recursos humanos, bem como a implantação de um Departamento específico para o desempenho de tal função.

3 Há 20 anos o Iphan contava com 2.400 servidores no quadro permanente e hoje conta com apenas 800, isto é, teve uma redução dos seus recursos humanos da ordem de 2/3.

4 “Órgãos anuentes”: órgãos aos quais o Ibama solicita anuência para expedição das licenças ambientais. Na Portaria Interministerial 419/2011 são referidos como “órgãos e entidades da Administração Pública Federal envolvidos no licenciamento ambiental”, sendo eles: Ministério da Saúde, Funai, Fundação Palmares e Iphan.

5 A atuação do Iphan no licenciamento ambiental vinha se dando sistematicamente apenas na área do patrimônio arqueológico, em função da Lei Federal 3924/1961 que exige a realização de estudo dos sítios arqueológicos previamente ao seu aproveitamento econômico, à sua destruição ou mutilação (Art. 3º).

6 Kamukuaká e Sagihengu são sítios arqueológicos relacionados à origem do Kuarup – ritual de homenagem aos mortos, e do ritual de furação de orelha, ambos dos povos indígenas do Alto Xingu (mais especialmente dos Kalapalo e dos Waurá) e que estão localizados fora dos limites do Parque Nacional do Xingu.

Comments (2)

  1. Ficamos muito felizes, prezada Maria Clara.
    Esse tipo de retorno nos realimenta para continuarmos.
    Saravá!

  2. Prezada Tania,prezados todos do racismoambiental
    Estamos tendo um retorno muito bom com a publicação da CARTA ABERTA…PELO PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO, e com certeza o racismoambiental tem parte da responsabilidade sobre isto. Depois de ficar 2 anos e meio semeando no deserto,a Carta parece que é uma semente que caiu em terra fértil. Saravá!!!

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