“Temos de olhar para a história do racismo para percebermos porque é que partes da Europa e da América são tão ricas”

Bernasconi ensina na Universidade do Estado da Pensilvânia (Enric-Vives Rubio)

Robert Bernasconi veio a Portugal tentar perceber porque é que aqui se pensa pouco em raça. Nos Estados Unidos, onde o filósofo britânico vive há muito, preocupa-se com o que lhe parecem ser tentativas para “criar um novo racismo com objectivos políticos”

Nasceu em Newcastle, no Reino Unido, e ensinou durante 30 anos na Universidade de Essex antes de atravessar o Atlântico para aterrar na Universidade de Memphis. Conhecido pelo seu estudo das obras de Heidegger, Levinas, mas também Hegel ou Derrida, foi já nos Estados Unidos que começou a trabalhar as questões da raça. Hoje, Robert Bernasconi ensina na Universidade do Estado da Pensilvânia, onde desenvolve uma nova disciplina para estudar a raça e o racismo. Por que razão falhou a luta contra o racismo? foi o tema de uma das conferências que deu em Portugal, onde esteve a convite do Instituto de Filosofia da Universidade da Beira Interior.

Muitos portugueses pensam que há pouco ou nenhum racismo em Portugal. Como foi a recepção à sua conferência?

A principal razão para eu vir foi precisamente querer aprender mais sobre o que as pessoas em Portugal pensam sobre o racismo.

E aprendeu?

Espero ter aprendido. Há esta nova disciplina filosófica, que a minha universidade tem trabalhado, chamada Filosofia Crítica da Raça. Parte da tarefa é tentar obter uma imagem mais global de como a raça é vista. A cultura académica dominante é adoptar a perspectiva dos Estados Unidos. Para contrariar isso, quisemos saber como é que a raça é vista no Ruanda, depois na África do Sul, e esta é uma iniciativa de três anos que ficará concluída no próximo ano. Tenho pensado que a próxima parceria pode ser com o Brasil, mas outra possibilidade é Portugal. Há um aspecto interessante: os portugueses parecem pensar muito menos sobre raça do que pessoas noutras partes do mundo. Isso parece ter tido algum sucesso e nós queríamos perceber melhor se não pensar sobre a raça leva a menos racismo ou se é por haver menos racismo que as pessoas têm menos razões para pensar em raça.

Chegou a alguma conclusão? Tem suspeitas de qual seja a resposta certa?

Duas ou três coisas ficaram claras. Em primeiro lugar, há algo de extraordinário na forma como os portugueses lidam com os cidadãos das ex-colónias. É muito diferente de outros casos que eu conheço. Pode ser que tenha a ver com o impacto da revolução, nos dois lados. Pode ser a existência de uma história mais longa de mistura de raças que tornou mais fácil para os portugueses integrarem pessoas de Angola e de outros países. Outro aspecto é a existência de um problema com ciganos em Portugal e eu inclino-me a chamar a isso racismo. Também discutimos os estereótipos que existem em relação às mulheres brasileiras. A questão, mais uma vez, é saber se isso é racismo. Eu inclino-me a considerar que sim. Só por não corresponder ao modelo de racismo que a UNESCO nos deu em 1950, completamente focado nas raça e na biologia, não quer dizer que não seja.

A ONU aconselhou Portugal a fazer perguntas sobre a raça nos censos, o que é ilegal. É perigoso fazer essas perguntas?

Devíamos começar por perguntar às pessoas como é que elas querem identificar-se, aos “membros menos favorecidos da sociedade”, como Sartre dizia. Não é a elite cultural que deve responder se isso é uma boa ideia. Se há pessoas em Portugal que se sentem vitimizadas, devem ser elas a decidir como querem ser identificadas.

O Brasil, por exemplo, que durante muito tempo se apresentou como modelo de uma sociedade pós-racista, está agora a reconhecer que falhou e percebeu que tem de ter políticas de acção afirmativa.

Há forma de enfrentar as descriminações das minorias sem este tipo de dados?

Inclino-me a acreditar que as pessoas devem olhar à volta e tentar perceber se todos os portugueses estão representados em todo o tipo de instituições.

Não estão.

Sim, parece claro que não há muitas pessoas com origens nas antigas colónias nas universidades. Isso quer dizer que há um problema. Mas é preciso começar por ter os números.

Como não queremos perguntar sobre a raça perguntamos sobre a origem, o que abre a porta a considerar pessoas que são portuguesas como estrangeiras ou pelo menos não tão portugueses como outros.

Por isso é que é importante perguntar como é que as pessoas se identificam a si próprias, em vez de importarmos categorias. Uma das razões que me levou a este exercício da Filosofia Crítica, de querer saber como é que pessoas em diferentes partes do mundo olham para o racismo, foi ter percebido ainda no Reino Unido que como resultado de se ver muita televisão americana, tinha-se adaptado as formas americanas de pensar na raça e de descrever o racismo. Mas não serviam à história britânica nem às circunstâncias actuais. Há sempre o perigo de uma instituição central, como a UNESCO, querer estatísticas globais e querer que os mesmos critérios sejam usados em todo o lado.

O que é que significava essa importação no caso britânico? Importavam-se os preconceitos ou a forma como as pessoas se viam a si próprias – o que também parece acontecer em Portugal, entre as gerações mais novas?

Em parte a forma como as pessoas se vêem. Pode haver algo de libertador nisso, mas é preciso ser cauteloso. Cada um deve identificar-se com a sua história e não com a história de outros. Fico sempre nervoso quando os critérios são determinados por uma grande organização.

Nos EUA fazem-se todas essas perguntas.

Sim, mas nos EUA há um problema com a interpretação dos dados. Por exemplo, primeiro as pessoas têm de decidir se são hispânicas ou não hispânicas, depois há uma segunda pergunta para determinar a raça. O que aconteceu é que neste momento há esta grande ansiedade de se estar a caminhar para uma maioria de não brancos no país. Mas se realmente olharmos para as estatísticas, em 2000 72% das pessoas identificavam-se como brancas. Em 2010, subiu para 78%. Então porque é que a narrativa que os dois lados do debate apresentam é diferente do que nos dizem os números? O censo mostra-nos quantas pessoas se identificam como brancas e isso incluiu as que também se identificam como hispânicas. Quem o interpreta diz que as pessoas que se consideram brancas e hispânicas são brancas mas hispânicas, o que significa que não são realmente brancas. Mas não é isso que as pessoas estão a dizer.

Esses dados, como a notícia de que pela primeira vez nascem mais bebés não brancos do que brancos no país, preocupam alguns americanos?

Há estados onde há uma grande ansiedade da parte das pessoas brancas de descendência anglófona – e não só, de grupos que já foram assimilados à identidade branca, como os hispânicos agora não são. Houve um tempo em que a separação não era tão clara, tornou-se mais clara por causa da preocupação com os imigrantes mexicanos.

Penso que parte do problema é que as pessoas nos EUA, particularmente os brancos, têm uma imagem do país que não corresponde à História. Tendem a pensar que, de alguma maneira, a Declaração de Independência e a Constituição já puseram o país no caminho para a igualdade das raças. Mas há factos que contradizem isso, alguns dos piores períodos de racismo aconteceram nos anos 1890 e depois nos anos 1920, com os linchamentos, e isto só para falar do racismo anti-negros.

Mas há estados onde essa mudança já aconteceu.

Há partes inteiras do país onde estas mudanças já aconteceram e isso não criou nenhuma situação terrível. É possível que esta ansiedade em relação à demografia esteja a ser alimentada por pessoas que querem criar um novo racismo com objectivos políticos. O [movimento conservador anti-Governo] Tea Party preocupa-me e a muitas outras pessoas. Os seus membros lançam mensagens racistas explícitas e muitas vezes codificadas. No Arizona, por exemplo, há uma grande ansiedade sobre o ensino de estudos latinos. Parece-me contraprodutivo dizer que vamos retirar financiamento a escolas e instituições que promovem uma identidade latina ao mesmo tempo que dizemos aos hispânicos que não são realmente brancos. E são as mesmas pessoas que o fazem. Estou preocupado com o que estes sinais podem dizer sobre o futuro dos EUA, particularmente acompanhados da crise económica. E penso que isto parte de uma desonestidade fundamental sobre a História e sobre a existência de racismo no presente. Se falarmos com afro-americanos, particularmente com os que cresceram na pobreza e continuam a viver em pobreza, teremos uma visão dos EUA muito diferente daquela que é apresentada como a imagem pública do país, que tanto orgulha tantos americanos.

As últimas sondagens foram feitas depois da morte de Trayvon Martin [abatido por um vigilante latino-americano] – têm de ser relativizadas. Mas o número de negros que vêem o racismo como o principal problema do país ou dos que vêem o sistema judicial como construído para os prejudicar é altíssimo.

Basta olharmos para as prisões e para o impacto do que é um sistema cada vez mais privatizado, com os donos das prisões a fazer lobby junto dos políticos para que as sentenças sejam mais duras e eles possam ter mais pessoas nas cadeias. Isto só é possível porque a população prisional é constituída por grupos específicos. As prisões não estão cheias de brancos.

Outro aspecto é que a percepção dos afro-americanos e o discurso que usam entre eles ainda estão excluídos do mainstream. O exemplo mais claro disso foi o furor à volta do reverendo Jeremiah Wright na campanha para as últimas presidenciais. Surgiram clips dele a dizer coisas que se podem ouvir em muitas igrejas afro-americanas e que não devem levar os brancos sentirem-se ameaçados. Ele diz “God damn America” [“Deus amaldiçoe a América”], isso tem de ser compreendido no contexto de um discurso numa igreja. Se lermos os profetas do Velho Testamento compreendemos, como as pessoas que vão à igreja compreendem. E não só isso criou uma enorme polémica como [Barack] Obama teve de se afastar dele [Wright iniciou Obama na religião, casou-o e baptizou as suas filhas]. Eu conheço-o, ele é um homem inteligente, generoso, bom.

Penso que há um forte racismo nos EUA, em parte porque os brancos passam a vida sem saber o que os negros dizem quando estão entre eles. O reverso, em menor dimensão, também é verdade. Pelo menos os negros podem ligar a televisão e ver o que é que os brancos dizem quando pensam que estão entre brancos.

Nos últimos anos quando ligaram a televisão, os brancos viram que têm um Presidente negro. Isso não fez diferença?

Há uma resistência que explica em parte porque é que os EUA, vistos de uma perspectiva europeia, estão tão atrasados em coisas como o acesso à saúde ou a gestão da segurança social. Os brancos vêem os negros, e agora os hispânicos, como beneficiando mais do que eles. Isso é falso, mas a falta de uma unidade real da nação é exacerbada pelo facto de as pessoas verem um Presidente que é identificado como negro. Muitos brancos ainda estão zangados com o facto de isso ter podido acontecer e atribuem todo o tipo de disparates a Obama.

Esse impacto é mais revelante do que os possíveis benefícios?

Penso que sim. Tenho ficado muito perturbado com o que vejo nos EUA. E não nos podemos esquecer que África sofre mais do que qualquer outra região com a crise global e como cada vez mais nos dizemos pós-raciais é mais difícil lidar com os problemas de África. Temos de olhar para a história do racismo para percebermos porque é que partes da Europa e da América são tão ricas. Não é porque as pessoas lá são mais espertas. Muitas pessoas ainda acreditam que os negros são preguiçosos. Enquanto nos focarmos só no indivíduo e ignorarmos as circunstâncias e a História podemos continuar a acreditar nessa ideologia.

Mas a crise e a emergência de novas potências não são um sinal de que não vamos ser para sempre a parte rica do mundo?

Sim, mas os países que nas suas narrativas acreditam que foi só com o seu mérito que conseguiram o poder e a riqueza que têm vão resistir mais às mudanças globais que tenderão a fazer o mundo ficar mais igual. Algo que me preocupa nos EUA é que a única área em que os republicanos e o Congresso em geral não admitem cortar é a militar. Os EUA já têm um poder militar imenso. O mundo está a mudar, mas os republicanos não admitem que isso seja dito aos americanos. Atacam violentamente Obama cada vez que ele parece querer dirigir-se a um outro líder como igual. As consequências disto serão terríveis. Se os EUA ficarem enfraquecidos economicamente só vai sobrar o poder militar.

http://www.publico.pt/Mundo/muitos-americanos-brancos-ainda-estao-zangados-com-a-eleicao-de-obama-1557821?all=1

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