A Estética do Terreiro

Por Ana Stela de Almeida Cunha e Márcio Vasconcelos, em Cultura Afro-Brasileira

Com a proposta de se vislumbrar a materialidade dos “encantados” nos Pajés de Negro, religião praticada na Baixada Ocidental, borda oeste do Maranhão, nordeste do Brasil, este projeto retratou parte da vida material de entidades espirituais conhecidas sobretudo pelas práticas de cura. Tais práticas, ao contrário de outras manifestações religiosas, como o Candomblé, possuem um panteão de divindades (encantados) brasileiros, de origem “cabocla” (da mata, das águas doce ou salgada).

Encantados são espíritos de pessoas que um dia viveram, mas não morreram, ou, nas palavras de Prandi (2001) se “encantaram”, “passando a viver no mundo invisível, do qual retornam ao mundo dos homens no corpo de seus iniciados, em transe ritual. Manifestando-se assim na cabeça de seus filhos ou iniciados, ou na coroa, como se costuma dizer na mina, os encantados vêem à terra, descem na guma (terreiro)para dançar e conviver com os mortais, estabelecendo com todos os que comparecem aos terreiros relações de afeto e clientela.”

O substantivo – Pajé – que nomeia tanto o sujeito praticante quanto a religião por eles praticada, delineia a dimensão ontológica desta realidade, que possui na imagem dos “encantados” sua figura central.

A iconografia destes encantados é escassa. Não há praticamente “imagem” que os represente e poucos são/estão “materializados” na pintura ou na escultura, pois eles “são” o próprio local onde habitam, o animal que encarnam, ou o santo que os “abriga”, como por exemplo, João da Mata, um encantado que muitos afirmam ser o próprio São João Batista, ou a Princesa Doralice, que é uma “troirinha”.

Os terreiros, entretanto, simbolizam a presença dos encantados da “casa” através de pinturas variadas na parede de seus barracões ou ainda podemos encontra-los nos inúmeros objetos que fazem parte dos ritos, desde tambores e panas até cabaças e alimentos, ornamentos em louvor a este ou aquele encantado, como as bandeirolas e as coroas de flores. A própria pedra de assentamento, tão importante em todos os terreiros, é a expressão máxima da importância material nestes contextos.

Assim, da nossa curiosidade de fora surgiu este projeto, que através das imagens e das palavras busca sintetizar a importância da materialidade nos Pajés, inclusive através da linguagem/cantigas, pois ainda que pareça óbvia, a relação entre língua/imagem e “agentividade” está vinculada a questões mais amplas, como por exemplo, se somente humanos possuem agentividade e se seria esta intencional. Por outro lado, sendo objetos (e então repensamos toda a noção de categorias classificatórias) agentes, que tipos de objetos são estes, e como atuam?

Se a “agentividade” é atribuída também a objetos, portanto “coisas” aparentemente inanimadas, então uma discussão mais adequada sobre o tema se faz necessária. Procurando compreender este universo, eis nossa visão acerca da materialidade, expressa não somente em palavras/conceitos, mas sobretudo na visualidade, quase que metalinguisticamente.

O trabalho foi centrado nos terreiros dos municípios de Guimarães, Pinheiro, Cururupu e Central, localizados especialmente dentro de quilombos. Ali, entre panas e tambores, colares e defumadores, encantados descem à terra para bailar, curar e brincar. Afinal, este é um “brinquedo de cura!”.

A materialidade, a agencialidade e os encantados

Tendo um estatuto tradicionalmente desvalorizado em nossas sociedades, os objetos, como fonte de conhecimento têm-nos conduzido a uma perspectiva logocêntrica: os artefatos têm sido considerados como um conjunto coerente de sinais (J. Baudrillard), frutos de representações coletivas (R. Barthes).

Entretanto, quando vistos desde uma perspectiva não somente da materialidade, mas também da agencialidade, os objectos são sobretudo testemunhas privilegiadas de um “saber fazer”, de técnicas e inovações inscritas numa época e numa sociedade, igualmente frutos de atitudes e práticas, individuais e sociais às quais estão associados.

Assim, a noção de “cultura material” e as reflexões teóricas que hão suscitado entre antropólogos, etnólogos e outros pesquisadores para quem os objetos constituem uma fonte privilegiada de conhecimento, ultrapassam e muito a mera descrição de objetos, sendo de fato interessante observar, nestes contextos, as relações e práticas envolvidas entre estes e seus “usuários”, altamente imbricados aqui (cf Henare, Holbraad & Wastel (2007), (Daston, 2004).

Atualmente muito se tem falado do resgate do patrimônio imaterial, no entanto, a materialidade, nestas religiões, parece ser fundamental para a articulação entre o mundo de “lá” e o de “cá”. Mais que isso, questionar o que seja material ou imaterial é questão importante para começarmos a refletir sobre epistemologias pré concebidas e nem sempre coerentes com as etnografias.

Tratamos, neste ensaio, de conceituar “coisa” (objeto) como algo vazio que, longe de ser dado previamente, espera por sua ativação nos encontros empíricos. Neste sentido, uma abertura analítica torna-se necessária, pois sendo a gama de definições do que sejam “coisas” (ou materialidade) tão aberta, o significado destes conceitos compreende certamente a dimensão espiritual.

Para Ingold (2010) “conceitos” são inerentemente políticos e deste modo é pertinente para alguns distinguir objetos (e por que não, animais) de “humanos”, que, embora estejam num único mundo, apenas os últimos seriam passíveis de elaborações e agentividade.

Mas se seguimos esta linha de pensamento teríamos que os humanos são então “menos naturais”, se pensamos na dicotomia natureza/cultura.

Mas e os objetos, os animais, o mundo mineral e vegetal? Para evitar essa incoerente dicotomia, propomos aqui pensar no ambiente como uma zona de envolvimento mútuo, cujo relacionamento entre os seres se dá justamente por feixes, como luz, como ar, e caminhos. É este “ambiente” que procuramos retratar neste projecto, uma articulação da linguagem escrita e visual.

Ao capturar desenhos, imagens, objetos de uso pessoal dos encantados quando em seus “cavalos” (religioso que recebe a entidade em transe mediúnico), como os colares, as mantas, as panas, toda a parafernália utilizada para as “vistas”, a comida, os tambores e afins estaremos resgatando um conhecimento específico do universo religioso e todo um saber de práticas reelaboradas e consagradas.

A terra dos encantados

A Baixada Ocidental é uma das zonas mais produtivas culturalmente, dentro do Maranhão. Guimarães (antiga Vila de São José), uma das primeiras cidades do Estado, foi porto de comércio agrícola que outrora era a porta de entrada – durante os séculos XVIII até meados do XIX – para a escravidão na Amazônia Legal brasileira.

Na zona rural, comunidades negras e terras herdadas desenvolveram práticas culturais que, desde a decadência dos engenhos e abolição do trabalho escravo, em 1888, tiveram continuidade com recursos da própria transmissão oral.

Retratando a materialidade dos encantados, tratamos de refletir acerca das relações entre a religiosidade local e as apropriações e reelaborações secularmente engendradas nestes locais, através de uma presença católica devidamente marcada seja pelos contatos locais com grupos indígenas (o próprio nome da religião: Pajé de Negros) e toda a importância das curas nestes contextos, sendo importante ressaltar por exemplo que a conversão do Manicongo, o Rei do Antigo Reino do Congo, depois do encontro com os portugueses, data de 1468 (cf Thornton, 2007) o que equivale a dizer que desde o século XV que os povos da área denominada Banto (Guthrie, 1968) conhecem e praticam, de forma reelaborada, o catolicismo de colonizadores portugueses, reinventando aqui a historiografia demográfica do lado de lá do Atlântico.

Neste projeto retratamos visualmente a vida social e material dos espíritos (encantados) nos terreiros de Pajés, assinalando a importância também das doutrinas (cantos) enquanto outra forma possível de materialidade.

As redes sociais entre religiosos e encantados se moldam e se fortalecem basicamente através das palavras (sobretudo cantada) quando estes «descem» na «crôa» (cabeça) de seus médiuns para dar consultas, cantar, afinar relações com os humanos. De tal sorte, a materialização dos encantados através da linguagem se dá de dentro (do mundo da encantaria) para fora, e necessita tanto do Pajé (o religioso) quanto da assistência para que as relações sociais se dêem.

Isto equivale a dizer que a linguagem tem autonomia, não sendo apenas um veículo de transmissão, (Reddy 1979), tampouco um veículo condutor de significado referencial (Goodwin, 1990).

Estas afirmações são evidenciadas através das marcas linguísticas existentes nas doutrinas e cantigas proferidas durante as visitas dos encantados aos terreiros dos Pajés. É a força da palavra, das doutrinas. A palavra-ação, a palavra mágica.
No meio do terreiro, materializando a firmeza da casa, recobrindo o buraco onde são enterrados os símbolos referentes ao caboclo de frente, também chamado guia ou patrão.

É a forma material da magnetização que serve também para proteger o ambiente, mostrando-se em forma de cruz ou estrela de cinco pontas e, especialmente em dias de pajelança ou cura, pode-se ver em seu centro uma vela acesa.

Com gostos peculiares e particulares (que vão desde alimentos, bebidas ou mesmo brinquedos e flores), agradando o encantado o Pajé busca sua proteção e seus favores.

Carregar a guia com as cores do caboclo é uma responsabilidade e ao mesmo tempo motivo de orgulho, pois demonstra que aquela pessoa foi escolhida pela entidade e tem como missão torná-la visível, materializando-a aos olhos de quem acompanha um ritual de pajelança. Colocá-la é vestir-se e revestir-se de uma espiritualidade única e indizível.

Fazendo parte do ritual de pajelança, os tambores conversam com as mãos hábeis dos “batazeiros”, chamando os encantados, que ‘descem’ para brincar ou praticar a cura de doenças espirituais ou materiais que acometem os de cá.

Já o chi-chi-qui das cabaças e maracás faz com que os espíritos se elevem e fluam sobre a cabeça de homens e mulheres do terreiro. Sua força é tamanha que vai alcançar outros lugares, enchendo de magia o ambiente ao seu redor.

Muitas vezes representados de forma pouco convencional, como uma bandeira, uma flor ou um navio, os encantados se materializam em desenhos pintados nos barracões. Sem uma iconicidade direta, somente os iniciados ou pessoas da comunidade são capazes de fazer a relação entre a figura e o significado.

“Eu já fui uma Princesa
Hoje sou uma Rainha!
Sou filha de D. João
Sou princesa da Pedra Fina!”
“Doralinda da Mina de Ouro
Ela pode e manda amansar seu touro!”

“Sou uma moça encantada
Nas ondas do mar
Sou cigana
E vim passear”

“Rufa meu tambor, que eu quero baiar!”
“Rufa tambor
Rufa tambor, meu pai
Que moça bonita inda não baiou!”

“Pisa direito, pecador, e olha que o chão tem espinho!”

Concepção e texto: Ana Stele Cunha/Texto: Heridan Guterres/ Fotografías: Márcio Vasconcelos

A Estética do Terreiro

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.