Às vésperas da Cúpula dos Povos, vale reler, 48 anos depois, “Os estatutos do homem”, de Thiago de Mello

Artigo I.
Fica decretado que agora vale a verdade.
que agora vale a vida,
e que de mãos dadas,
trabalharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II.
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III.
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV.
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo Único:
O homem confiará no homem
como um menino confia em outro menino.

Artigo V.
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

Artigo VI.
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII.
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII.
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX.
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha sempre
o quente sabor da ternura.

Artigo X.
Fica permitido a qualquer pessoa,
a qualquer hora da vida,
o uso do traje branco.

Artigo XI.
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo.
muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII.
Decreta-se que nada será obrigado nem proibido.
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.

Artigo XIII.
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

Artigo Final.
Fica proibido o uso da palavra liberdade.
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.

Santiago do Chile, abril de 1964
Publicado no livro Faz Escuro Mas Eu Canto: Porque a Manhã Vai Chegar 1965.
In: MELLO, Thiago de. Vento geral, 1951/1981: doze livros de poemas. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 198.

Enviada por José Carlos, a partir de postagem de postagem de Valdir Bergmann no Portal Luis Nassif.

Comments (2)

  1. “Dizem que a partir de uma determinada idade nós aprendemos a olhar para trás para tentar enxergar à frente. Dizem que nós, os que falamos a Língua Portuguesa, somos os únicos que sabemos o significado da palavra SAUDADE. Isso porque, dizem, ela não existe em nenhuma outra língua falada no mundo. Dizem que somos todos revolucionários na juventude e conservadores na maturidade. Diziam que o Brasil era o País do futuro. Diziam que era o País dos Jovens. Diziamos então que a esperança nunca morre. Dizíamos, diziam, dizem. O verbo ainda é o mesmo, mas já o conjugamos com certa dificuldade. Agora, aos 63 anos, sou um daqueles filhos da GERAÇÃO AI-5, geração que, em 1968, tinha entre 17 e 20 anos. Tempos dificeis, muito difíceis. Tempo de duas cores apenas: cinza e escuro! Tempo em que até a esperança era pálida. Foi num tempo assim que li pela pela primeira vez FAZ ESCURO MAS EU CANTO: PORQUE A MANHÃ VAI CHEGAR. Escrito por aquele cidadão da floresta, magro, vestido inteiramente de branco, ainda por mim desconhecido poeta Thiago de Mello. Com emoção, ainda, mas já com uma esperança um tanto desbotada, reli esse belíssimo “OS ESTATUTOS DO HOMEM”, agora, neste instante, sinto que vivemos num tempo cada vez mais sem Homens com esse conteúdo visto pelo poeta manauara! Mas, resisto, na teimosia de quem ainda quer ver essa manhã de Thiago de Mello romper o escuro como no poema DENTRO DA NOITE VELOZ, de outra poeta, também magro e daquelas vizinhanças: Ferreira Gullar!

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.