Terra Firme, um quilombo urbano em Belém

Daniel Leite Jr e Rogério Almeida*

O Brasil é o país que concentra a maior parcela da principal floresta tropical do mundo, a Amazônia. Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela são os demais países onde incide a floresta. Do território nacional, cerca de 61% é constituído pela Amazônia Legal (Acre, Amapá, Amazonas, oeste do Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins), com uma população estimada em 20 milhões de pessoas.

A floresta é um mundo de gentes, olhares, saberes, cores, cheiros e histórias. A abundância de recursos florestais, minerais e hídricos a torna alvo dos mais diferentes interesses em variadas dimensões: econômicas, sociais, políticas e ambientais. E em escalas: local, regional, nacional e global, onde o direito à propriedade privada sobre a terra tem se sobreposto à posse ancestral.

Um mundo de água integra a paisagem da vasta Amazônia. Água de igarapés, furos e rios. Muitos rios. Sem falar da água da chuva. As principais capitais, Manaus e Belém, cresceram de costas para esse mundo das águas. A sufocar tudo que foi possível em nome da especulação imobiliária. Um rio-mar de gentes inunda a região.

O olhar do colonizador a sintetizou sob uma perspectiva exótica: natureza exuberante, eldorado, paraíso perdido, vazio demográfico ou inferno verde. A população originária, quando citada nos relatos, sempre foi tratada como inferior. Uma forma de legitimar a instalação da “civilização” interpretam alguns observadores. Horizonte que os discursos midiáticos dos estados centrais atualizam.

Há cidades na Amazônia. A Amazônia é uma floresta urbana, enfatizou a professora Bertha Becker na década de 1970, baseada em dados censitários. Belém é uma delas. A principal capital da região é quase uma ilha. Dos 505.823 km2, 332.037 km2 é região insular (65,64%), formada por 43 ilhas. Sob um clima quente úmido, numa temperatura média de 30º C, é o comércio e a prestação de serviço que fazem a cidade se mover economicamente. A hidrografia é rica: furos, igarapés, rios e baías. Tanto em sua parte continental quanto na insular. Baía do Guajará, baía do Marajó, baía de Santo Antônio, baía do Sol, rio Guamá, rio Murubira, rio Mari-Mari, igarapé do Tucunduba são alguns dos recursos que compõem a península.

O Tucunduba corta vários bairros de Belém, entre eles, a Terra Firme. Nascido na década de 1950, o bairro ganhou corpo a partir da ocupação de terras públicas em áreas aqui tratadas de baixadas (favelas), onde predomina a arquitetura da palafita. O bairro que tem cerca de 60 mil habitantes acumulou áreas da Universidade Federal do Pará (UFPA), da antiga Faculdade de Ciências Agrárias do Pará (FCAP), Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), e do Museu Paraense Emílio Goeldi. Boa parte da população da área é composta por migrantes internos ou do Nordeste, em particular do Maranhão.

No território estigmatizado pela violência, os serviços elementares ou inexistem ou são precários: saneamento (drenagem e tratamento dos esgotos domiciliares, industriais e comerciais), fornecimento de água, coleta e tratamento de lixo. O mesmo canal que aproxima os produtores de hortifrutigranjeiros do arquipélago de Marajó, e outras regiões, é o mesmo possibilita o tráfico de drogas. Baixo nível de escolaridade, desemprego, subemprego e violência conformam a aquarela da pobreza.

Relatório da Caixa Econômica Federal (2003) elaborado pelo Centro Sócio Econômico da UFPA, Curso de Serviço Social e Departamento de Políticas e Trabalhos Sociais, sob a coordenação da professora Maria José Barbosa e consultoria do professor Alfredo Wagner Berno de Almeida, indicava que 96,28% da população da região metropolitana de Belém absorvem 24,80% da renda, enquanto uma minoria, isto é, 3,72% da população absorvem 75,20% da renda gerada. A renda familiar no bairro da Terra Firme oscila entre meio a dois salários mínimos. A informalidade absorve a maior parte da força de trabalho.

Desde a década de 1990, o Tucunduba passa por um projeto de macrodrenagem. No começo da década de 2000, o projeto foi laureado com o prêmio “Caixa Melhores Práticas em Gestão Local”, e foi apresentado como exemplo de novas práticas de gestão da cidade na Conferência Habitat, da Organização das Nações Unidas (ONU). A política de saneamento básico integrou várias dimensões: geração de renda, sustentabilidade, empoderamento local, gênero e multiculturalismo. Além da Terra Firme, o Tucunduba atravessa os bairros do Marco, Guamá e Canudos, um perímetro da cidade considerado zona vermelha pelos órgãos de segurança do estado.

Em 2009, a região integrou o Território do Fórum Social Mundial. A relação entre a coordenação do evento e a população do bairro foi tensa. Jaime Soares, na época mestrando em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP), refletiu sobre o assunto. Soares avalia que a coordenação do FSM de Belém tentou ocultar a situação delicada em que vive o entorno do território escolhido para a realização do Fórum.

Sobre a situação de conflito o autor alerta para a tentativa de ocultação da região, e a não participação das pessoas do entorno na agenda de ações do FSM. O artigo registra que nos mapas divulgados pela organização do evento e dos órgãos públicos, a periferia é apresentada como área verde. O pagamento de taxas e a solicitação de crachás pelos seguranças nos locais de acesso aos debates são indicados como pontos de contradição da organização local do FSM.

Soares sublinha que a não inclusão cultural, econômica e social da Terra Firme ao Fórum fere o principio de orientação da rede, que em linhas gerais, visa o não colonialismo e o combate ao neoliberalismo. O autor enfatiza, ainda, a contradição da coordenação local do Fórum, que ao invés de promover a inclusão da população do bairro, usou de expediente conservador, que se traduz em mobilizar a Secretaria de Segurança para isolar a Terra Firme das áreas da UFRA e da UFPA, locais da realização dos seminários e atos culturais durante o Fórum.

O controle social sobre a região incluía toque de recolher, e proibia festas de aparelhagem, equipamentos sonoros que embalam as festas de brega. Apesar do estigmatizado signo da violência que pesa sobre o bairro, há na Terra Firme inúmeras manifestações que buscam a amplificação da cidadania, a exemplo do Coletivo Casa Preta, Polo São Pedro e Boi Marronzinho.

Casa Preta – Terra Firme ou Montese? O nome exato do bairro é uma dúvida desnecessária, pois basta circular pelos arredores do bairro que rápido o corpo percebe a rigidez da terra, ao lado do rio que contorna o ambiente, e incorpora o nome popular da área.

Atualmente a região passa por um processo de combate e prevenção a violência. A ação da PM privilegia lugares considerados de risco, aos moldes das UPPs do Rio de Janeiro. No mesmo cenário há algum tempo, ações culturais protagonizam a ampliação da cidadania. No mesmo local pode-se encontrar experimentos de instituições de pesquisa e ensino, a exemplo do projeto Território da Memória, do Museu Paraense Emilio Goeldi. No entanto, as pautas dos jornais insistem em contemplar o aspecto negativo do lugar. Os principais jornais de Belém, Diário do Pará e O Liberal lideram pesquisa em andamento da Agência Nacional dos Direitos da Infância (Andi), em matérias sobre adolescentes em situações de conflito com a Lei.

Observador um pouco mais cuidadoso encontrará dimensões interessantes para além da superfície das pautas factuais. Exemplo disso é a realização de oficinas de construção de instrumentos musicais e percussão da Casa Preta. A iniciativa tem como um dos ponta de lança o ativista cultural Anderson de Souza Ferreira, mais conhecido como “Don Perna”. O migrante da periferia de Campinas, estado de São Paulo, aprendeu o que é cultura nas ruas. Ferreira além de percussionista é ciberativista e dj. Fala com entusiasmo dos mestres de percussão e capoeira com quem teve contato no processo de aprendizado sobre o universo da cultura de matriz africana.

É esta a opção do Coletivo “Casa Preta”: cultura de matriz africana. A ONG integra a Rede Mocambos, que atua nos estados do Pará, Maranhão, Amapá, Acre, Porto Velho e Manaus. Um dos objetivos da rede é incentivar e reafirmar a identidade da cultura negra. É este segmento que configura boa parte da população do bairro. O horizonte das ações possui como pano de fundo motivar a reflexão sobre a cidadania, cultura, paz, negritude, literatura, cinema e música.

O Projeto Bloco Firme, selecionado pelo Programa Territórios de Paz do Ministério da Cultura no ano de 2011, por via do Programa Mais Cultura é uma das âncoras do coletivo. A inciativa do ministério colabora para a geração de recursos econômicos para os projetos, dando estabilidade às pequenas iniciativas de incentivo a grupos artísticos independentes, grupos étnicos de tradição cultural e pequenos produtores culturais. O projeto resulta de uma parceria com a Justiça Federal através do Programa Nacional de Segurança Pública e Cidadania (Pronasci), que visa oportunizar o acesso à produção, ao consumo e ao reconhecimento de bens culturais.

Casa Preta-Bloco Firme acontece no espaço “Polo São Pedro” que é vinculado à Igreja São Domingos de Gusmão, liderado pelo Padre Bruno, histórico ativista pela garantia dos direitos da criança e do adolescente. Cinco eixos orientam a atuação do coletivo, são eles: a) Cultura Ancestral – realiza oficinas de dança afro, construção de tambores, formação do Bloco Firme; b) Cultura Afro Contemporânea – contempla a cultura hip hop e eventos culturais; c) Cultura Digital – incentiva a apropriação tecnológica a partir do conhecimento de softwares livres; d) Formação Política – atua com diferentes metodologias em comunidades urbanas e rurais para difusão, construção e desenvolvimento pautado em modelos de colaboração comunitária, com contornos de filosofia afro quilombola; e) Empreendimentos Solidários – busca a criação da microempresa “NEGOOCIO” que oferecerá serviços de desenvolvimento na web (sites, e-comerce, blogs e outros), e a articulação da Rota de Escambo Baobá.

Don Perna que é o oficineiro para a construção de instrumentos e de percussão, acredita que a partir das oficinas, exibição de filmes e debates, troca de experiências com parceiros locais e de outros estados é possível provocar a reflexão sobre a identidade cultural dos jovens. Ele acredita que a prática experimental pode levar a uma compreensão e valorização dos ritmos e danças que fazem parte da alma antropofágica da diversidade cultural do país. E a partir daí estimular uma nova abordagem crítica sobre a história e a consciência do indivíduo dentro da comunidade.

As oficinas ocorrem por cerca de duas horas, duas vezes por semana. Sempre no início das noites de terça e quinta, e aglutinam uns 15 jovens, entre 12 a 22 anos. Yasmin Minami soma 18 anos, faz o curso médio na escola pública Mário Barbosa. Tem feição indígena. É uma das meninas que tocam a alfaia, um instrumento típico do maracatu de Pernambuco. A adolescente lembra que reconheceu em si outras culturas, outras pessoas que não imaginaria. “O projeto ajuda a estimular os valores culturais da pessoa que sou. Passei a reconhecer o espaço em que nasci e vivo de outra maneira,” avalia a jovem. No mês de abril ela e mais duas adolescentes participaram de um encontro cultural em Minas Gerais. Foi a primeira vez que viajaram de avião.

O Polo São Pedro cede espaço para as oficinas do Casa Preta. Nele ocorrem desde 2006, um cipoal de atividades culturais que visam incrementar a autoestima da juventude do bairro. Tem o status de ponto de cultura onde são realizadas agendas culturais no campo do teatro, canto coral, violão, flauta, percussão e dança. Um dos grupos surgidos foi o Sementes da Terra.

O casal Odiléia e Edson Lima é responsável pelos projetos do polo, que demoraram cerca de seis meses para serem formatados. Ele buscava, via cultura, uma forma diferente de evangelizar e debater a cidadania num território marcado pela violência e tráfico de drogas. Os oito oficineiros são voluntários. No ano de 2011 as experiências chegaram a mobilizar perto de 300 pessoas.

Mas, no ano de 2012 as atividades ainda não foram iniciadas. Odiléia Lima informa que o Ponto de Cultura deveria ter recursos para três anos. No entanto, o polo recebeu somente durante um ano. A coordenação ainda aguarda recursos do governo federal e pleiteia, via projetos, colaboração em outras fontes.

Boi Marronzinho – Na lavoura cultural da terra firme existem terreiros de umbanda, blocos de carnaval, reggae, quadrilha de São João, boi bumbá e institutos de cultura. Um dos mais antigos é o Boi Marronzinho. Soma perto de 20 anos.

Como outras iniciativas, surgiu como ferramenta para enfrentar a violência e ampliar a cidadania. Emergiu na passagem Brasília, da inquietação de um senhor conhecido como Cici e da dona Nazaré. Casal radicado no lugar há mais de 50 anos. Ao cabo da viagem, parece que um rio de gente que busca dignidade corre no bairro da Terra Firme.

* Daniel Leite Jr é estudante do 3º período de Jornalismo da Universidade da Amazônia (Unama) e bolsista da Agência Unama pelo Direito da Criança e do Adolescente (Agência Unama). Rogério Almeida é professor da Unama e coordena o projeto de extensão Agência Unama.

(Carta Maior)

http://mercadoetico.terra.com.br/arquivo/terra-firme-um-quilombo-urbano-em-belem/

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