A ditadura que nos habita

Cartaz do Movimento Feminino pela Anistia, dos anos 1970: tempo que não pode ser esquecido

João Paulo

O dia 31 de março deste ano foi diferente. Nos últimos tempos, havia uma operação de silêncio em torno da data, como se o melhor a fazer fosse esquecer. Não lembrar é um sintoma marcante da vontade de não pensar. Para muitos brasileiros, o melhor a fazer, quando se trata da ditadura civil-militar que violentou o Brasil de 1964 a 1985 (oficialmente), é esquecer. A própria concepção de anistia que foi defendida – e ainda é – entre nós faz questão sempre de sepultar a memória, sem denunciar sequer que se trata de uma anistia dada pelo próprio Estado de exceção que instituiu os crimes hediondos contra as pessoas e a nação.

Este ano houve outros sinais. E o curioso é que vieram dos dois lados. De tanto esquecer, os responsáveis pela violência que marcou nossa história recente se acharam no direito de sair à luz em defesa de um revisionismo reativo, que busca recuperar a figura de ditadores, como Médici, com livros e estudos que fazem uma indecente alquimia histórica, tornando os anos de chumbo em anos de ouro do desenvolvimento. Do outro lado, jovens que não viveram aquele período despertam para as marcas ainda presentes em nosso tecido social, em mobilização e movimentos que convocam ao julgamento e punição de torturadores que hoje arrastam chinelos e argumentos no porão da história.

A situação ecoa outro debate que vem se repetindo nos últimos anos em razão da criação da Comissão da Verdade, que teria como tarefa recuperar a história dos crimes de Estado e punir os autores de delitos contra os direitos humanos e a liberdade no Brasil da ditadura. Para os críticos da comissão, a anistia encerrou o período com um ato unilateral que perdoou os dois lados, como se se tratasse de crimes a serem esquecidos. Torturar é crime. Por outro lado, toda ação contra o Estado ilegal se torna legal.

Os crimes não se equivalem porque de um lado há crime e de outro há reação à ilegalidade. Entre os direitos mais inalienáveis do homem está o de rebelião contra a ausência de liberdade. Além disso, apenas no Brasil, entre os países da América Latina, os militares não fizeram mea culpa sobre seus atos nem foram punidos os envolvidos em tortura, mortes e ocultação de cadáveres.

A situação, que novamente aflora, talvez esteja mostrando uma vontade de rememorar que aponta a ampliação de consciência histórica. Talvez a via política, tão em baixa numa quadra de pacificação fetichista e tocada a consumo, necessite de auxílio da psicologia para ser mais bem decifrada. Nossa vontade de esquecimento das violências, que nos constituem desde os tempos da formação da nacionalidade, podem exigir mais Freud que Marx algumas vezes.

Se sabemos que somos um país desigual, atravessado pela miséria e autoritarismo, com uma Justiça que privilegia os ricos e um cenário político desprestigiado de antemão, ou seja, se em nenhum dos canais civilizados de expressão coletiva somos suficientemente maduros, quem sabe no fundo da alma não sejamos habitados por uma simpatia, ainda que neurótica, pela ditadura?

Sadismo

Em um ensaio publicado em 2010 no livro O que resta da ditadura (Editora Boitempo), o psicanalista Tales Ab’Sáber propõe que, finda a ditadura civil-militar, tudo permanece, menos a ditadura. O texto “Brasil, a ausência significante política (uma comunicação)” mostra que, mais que uma formulação de efeito, a afirmativa se desdobra sobre o comportamento habitual do brasileiro, que parece ter incorporado uma flexibilidade moral que lhe permite conviver com nossos desvios de civilização. O psicanalista se pergunta por que, frente ao óbvio imperativo de punir os torturadores brasileiros, esse mandamento ético não aparece como necessário.

Para Ab’Sáber, há nesse comportamento fraco um sintoma de desmobilização social complacente e “portadora de um momento de sadismo”. Ao demonstrar uma atuação política marcada pela incapacidade de reação e perpassada por uma inconsequência que tem raízes interessadas, o que se caracteriza é “nossa simpatia prática para com as ditaduras e os ditadores”. Por isso, ao mesmo tempo que arrogamos certa pretensão de universalidade (na defesa de grandes ideias como democracia e liberdade), manifestamos comportamentos condescendentes com toda a quebra daqueles mesmos valores, em nome de um jeito de ser, de uma cordialidade, de uma “exceção civilizatória”.

Por isso vivemos com a consciência tranquila mesmo sabendo que temos a polícia que mais mata no mundo, que os pobres são tratados como lixo, que o crescimento econômico não se traduz em melhoria das condições de vida da maioria dos cidadãos, que a terra se mantém concentrada em nome de um modelo inviável de produção agrícola, que os professores ganham pouco e a educação é sempre prioridade adiada, que os torturadores de ontem saem à luz sem constrangimento e sem punição. O único valor passa a ser o consumo e a ideologia pacificadora do esquecimento social. Assim como as histéricas de Freud adoeciam por não poder incorporar a sexualidade em suas vidas, nossos “saudáveis” cidadãos parecem se encontrar num mundo sem lugar para o pensamento. A histeria de ontem é a alienação de hoje.

No mesmo livro, outra psicanalista, Maria Rita Kehl, em “Tortura e sintoma social”, lembra que o “esquecimento” da tortura é um sintoma social que pode gerar a naturalização da violência. Para a psicanálise, essa forma de amnésia social não é da ordem da perda circunstancial da memória pré-consciente, mas do recalque. A pseudoanistia brasileira recalcou a consciência de que somos responsáveis por acabar com a tortura. Mais do que isso, esquecemos que é possível viver sem ela: “A tortura resiste como sintoma social de nossa displicência histórica”.

Memória

Se Freud explica, nem por isso nos libera de lutar contra as determinações que instauram a aceitação do horror na barra dos nossos dias. Há um conceito, pouco claro na psicologia, que parece se adequar à situação de desmemória que insistimos em cultivar. É a noção de ressentimento. Para muitos, o ideal do perdão nivela todos, como se passar por cima de feridas tão graves não gerasse danos morais profundos. Um país que aceita esquecer crimes contra a humanidade não é magnânimo, mas covarde.

O diagnóstico de ressentimento é muitas vezes assacado contra aqueles que não querem deixar para lá, os que teimam em fazer justiça e exigir punição. No entanto, são estes os únicos não ressentidos nessa história. Aqueles que sofrem e preferem, por fraqueza, abandonar a luta contra as causas do mal passam a vida a culpar as circunstâncias e os outros, como se fossem vítimas de uma injustiça cósmica ou contra a qual se sentem apequenados. Quem reage não se ressente.

A movimentação em torno do 31 de março é um aviso: não esqueceremos. Só o ato político da memória é capaz de garantir no futuro que não venham a recontar a história com outro enredo para em seguida pedir que olvidemos as violências e abusos. Antes de preparar o futuro, há uma dívida com o passado que precisa ser saldada. Talvez seja a hora, depois da intervenção de Freud, de chamar Marx novamente à cena para ajudar a resgatar as esperanças não cumpridas do passado.

Enviada por José Carlos.

http://impresso.em.com.br/app/noticia/toda-semana/pensar/2012/04/07/interna_pensar,31019/a-ditadura-que-nos-habita.shtml

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