A economia verde e os mercados da água

Por André Abreu, da fundação France Libertés

Quando o Rascunho Zero da Conferência da ONU sobre Desenvolvimento Sustentável, chamada Rio+20, foi publicado em janeiro, recebemos com satisfação e esperança o paragrafo 67, passagem mais importante neste texto para todos aqueles que defendem e trabalham para o reconhecimento do direito universal à água potável.

Claro que sabíamos que este primeiro texto deveria ser revisto, e palavras e conceitos removidos ou corrigidos pelos Estados-membros. No entanto, as organizações sociais mobilizadas para o tema não poderiam imaginar que os governos liberais e os mercadores da água preparavam uma tal ofensiva para deletar e limitar toda menção ao direito à água no texto base para a declaração da Rio+20.

Presentes em Nova York em março para a penúltima rodada de negociações oficiais na ONU, os grupos da sociedade civil envolvidos nas negociações puderam comprovar que alguns poucos países – pressionados pelos defensores de seus interesses financeiros – vêm trabalhando sistematicamente para apagar ou contornar qualquer menção sobre o direito à água do texto da Rio+20. Mais amplamente, esse mesmo grupo de países se empenha também em atacar outras referências aos direitos humanos e sociais, como o direito à soberania alimentar, os direitos das mulheres e os direitos dos povos indígenas.

Os argumentos daqueles que estão se opondo ao direito à água – União Europeia, Reino Unido, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Israel e Nova Zelândia, assim como dos grupo empresariais que tem cadeira nos Major Groups – é que a Rio+20 é uma oportunidade para fazer avançar a chamada ‘economia verde’ e, portanto, não é o lugar para falarmos sobre direitos ou proteção do meio ambiente, mas sobre financiamento e investimentos, através da valorização do ‘capital natural’ e da criação de novas oportunidades para o mercado.

Três anos após o colapso do banco Lehman Brothers e do caso Madoff, quando pudemos ver mais de perto os excessos e derivas do mercado financeiro desregulado, é no minimo curioso ver os Estados se lançarem com tal apetite sobre as soluções para o acesso à água baseadas em mecanismos de mercado. As organizações da sociedade civil mobilizadas para a Cúpula dos Povos por justiça social e ambiental na Rio+20 – assim como a maioria das organizações sociais presentes nas negociações em Nova York – se opõem e condenam esse ataque frontal contra o direito à água – um principio legal aprovado em julho de 2010 pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Denunciamos também de forma mais abrangente o ataque sistemático contra os direitos humanos e sociais que testemunhamos nas negociações em março na ONU, sob argumento de que precisamos avançar “concretamente” e que para isso temos que remover as barreiras e as regulações que impedem o avanço do livre comercio e do mercado ‘verde’.

Para entender melhor o que se esconde por trás desta ainda obscura e já polêmica “economia verde”, transcrevo abaixo trechos de um recente discurso de Willem Buiter, diretor do setor financeiro do Citigroup, publicado no Financial Times:

“Espero ver em breve uma expansão maciça do investimento no setor da água, incluindo a produção de água potável de várias fontes diferentes como purificação e dessalinização, assim como o armazenamento e o transporte de água. Espero ver sistemas de aquedutos que excedam a capacidade de transporte de petróleo e gás dos dias de hoje (…) Vejo frotas de petroleiros e instalações de armazenamento muito além dos que temos atualmente para o petróleo, gás natural e GNL. Vejo sistemas de tubulação e redes para o transporte de água, com a ambição e a escala dos que estão atualmente em curso na China, ligando o Rio Yangtze, no sul do Rio Amarelo, ao norte árido da China. (…)

Espero ver um mercado mundial integrado de água potável nos próximos 25 a 30 anos.(…) Pois uma vez que os mercados de água serão integrados, produtos financeiros e outros derivativos indexados sobre a água vão seguir – swaps, derivativos, fundos de ações – tanto negociados na bolsa tradicional como em mercados futuros. Haverá diferentes qualidades e tipos de água doce, exatamente como temos petróleo “light sweet crude” e  “heavy”.  A água como“asset”de ativos financeiros será, na minha opinião, base para os produtos financeiros mais importantes, superando o petróleo, o cobre, as commodities agrícolas e os metais preciosos.”

No minimo preocupante, senão assustadora, a visão cínica dos grandes especuladores que perderam com a quebra da bolha imobiliária e financeira e que agora querem avançar sobre o chamado ‘Capital natural’. Para isso, precisamos dar preço aos «serviços» da água como um primeiro passo, afastando o fantasma dos direitos humanos e da regulação dos estados e logo criar nos próximos anos o que Mr. Buiter chama de ‘mercado unificado da água’.

A historia do grande financista do Citi seria anedótica se fosse isolada, mas infelizmente estamos vendo grandes bancos e corporações transnacionais se lançando muito seriamente nesta empreitada. No ultimo Fórum Mundial da Água em Marselha, foi igualmente radical o discurso do Presidente da Nestlé, Peter Brabeck. Segundo ele, somente as grandes corporações podem garantir o financiamento para o acesso à água, e por isso devem ter total liberdade e apoio dos estados e da ONU para decidir como fazê-lo.

Mesmo se naturalmente aprovamos a transição ecológica em direção a uma economia de baixo carbono e ambientalmente menos agressiva, e sabemos que para isso teremos que contar com a responsabilidade e participação do setor privado, não podemos aceitar que a Rio+20 entre para a historia como a consagração do domínio dos mercados financeiros e do setor privado sobre os bens comuns essenciais à vida.

Como declarava a hoje saudosa Danielle Mitterrand, o tempo vai dizer quais foram os homens políticos que tomaram as decisões que estão levando a humanidade para um beco sem saída. Diante da visão fatalista dos mercados financeiros, temos que agir com urgência para construirmos um espaço politico e social que promova uma outra visão do nosso elemento vital: a água como principio da vida, como bem comum da humanidade que deve permanecer livre de interesses privados e gerenciado para o beneficio geral.  Esperamos que o tempo não seja curto demais para que nossa sociedade e nossos lideres compreendam que alguns poderosos interesses financeiros se escondem por trás do belo conceito de economia verde.

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