Documento da Fiocruz marca posição do setor Saúde na Rio + 20

Marina Lemle*

Não se faz desenvolvimento sem seres humanos saudáveis. Parece óbvio, mas se o “rascunho zero” (draft zero) do documento oficial das Nações Unidas para a Conferência sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20) não traz qualquer referência à saúde humana, o óbvio precisa ser dito e enfatizado para garantir espaço no mundo real. Por isso, a Fiocruz elaborou cinco parágrafos que ressaltam a relevância dos determinantes sociais e ambientais da saúde para o desenvolvimento sustentável e encaminhou ao Ministério da Saúde, que, por sua vez, levou ao Ministério das Relações Exteriores para ser remetido à ONU, na expectativa de que a questão conste na próxima versão do documento oficial.

Paralelamente, a pedido do Ministério da Saúde, a Fiocruz prepara um extenso documento para marcar a posição do setor na Rio+20. Após receber contribuições da equipe técnica do Ministério, o conteúdo será discutido em seminário na Fundação em 11 de abril, irá à consulta pública no site Saúde na Rio+20 (www.sauderio20.fiocruz.br) e, em 15 e 16 de maio, será debatido num seminário nacional em Brasília. As contribuições oriundas da consulta pública e dos seminários serão organizadas e integradas ao documento, que será entregue oficialmente na Conferência.

A Fundação está promovendo também uma série de eventos, publicações e atividades relacionadas à tríade saúde, ambiente e desenvolvimento, organizadas através de um escritório montado especialmente para mobilizar ações para a Rio+20. O trabalho de articulação vem sendo conduzido em grande parte pelo coordenador do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz) e ex-presidente da Fundação, Paulo Buss, que, ao lado do atual presidente da Fiocruz, Paulo Gadelha, revelam suas expectativas em relação à conferência e falam do papel da instituição nesse contexto.Confira a entrevista.

Como os senhores avaliam o processo em torno da Rio+20?

Paulo Gadelha: Esse processo está muito aquém das perspectivas de se obter uma transformação mais profunda. Há vinte anos vem-se anunciando que os princípios da Rio 92 não foram adotados no sentido pleno, nem os seus encaminhamentos produziram os efeitos esperados de avanço no sentido de um desenvolvimento sustentável. Por outro lado, é uma oportunidade ímpar, porque permite a reaglutinação de reflexões, de alianças, de forças e capacidades para se produzirem alternativas mais favoráveis que podem ter na Rio+20 um espaço para influenciar nos resultados oficiais, que serão a formulação dos governos.

É também uma oportunidade de participarmos fortemente do processo da Cúpula dos Povos, que vai reunir os movimentos da sociedade civil numa produção que impacta fortemente a articulação da sociedade. Temos a oportunidade de ter aqui presente um corpo extremamente qualificado e capaz de produzir transformações.

Além disso, pelo fato de o Brasil ser o anfitrião, a Rio+20 deve produzir uma série de efeitos sobre a responsabilidade do país de aplicar, dentro do modelo de desenvolvimento e das relações entre ambiente, saúde e desenvolvimento sustentável, todos aqueles princípios e teses que nós estamos formalmente adotando e propugnando enquanto governo. E, finalmente, a mesma coisa vale sobre o campo de atuação da Fiocruz.

Paulo Buss: Na versão zero do documento da Rio+20 – draft zero – não há uma única menção à saúde humana. Então, imediatamente nós alertamos o governo e o Ministério da Saúde fez um comunicado ao Ministério das Relações Exteriores. O embaixador Patriota e os demais negociadores concordaram com a reivindicação e sugerimos cinco parágrafos para a introdução do tema. Agora, no final de março, quando for feita uma nova versão do documento, estimamos que a saúde estará presente e esperamos que bem colocada, como nós sugerimos, e não naquelas versões parcializadas como muitas vezes aparece.

Por que a saúde deve estar na pauta do evento?

Paulo Gadelha: A saúde é um dos maiores indicadores de que estamos caminhando ou não para o desenvolvimento sustentável no seu sentido mais amplo. Os efeitos do aquecimento global, da perda de biodiversidade, das agressões mais profundas ao meio ambiente, seja ele no campo ou na cidade, se fazem sentir diretamente sobre a qualidade de vida. Saúde é qualidade de vida. Esses efeitos podem ser tanto diretos, como o aquecimento global, em relação ao agravamento das doenças respiratórias, quanto indiretos, como a perda da biodiversidade, que leva à redução da possibilidade de haver circuitos de vetores e agentes patogênicos num meio natural mais completo, aumentando a chance de eclosão de novas doenças advindas de zoonoses. Saúde e ambiente são quase questões simbióticas, e elas têm um tratamento ainda muito pouco sistemático e profundo dentro do movimento oficial da Rio+20.

Uma questão que nos preocupou profundamente foi o fato de que o documento zero que serviu de referência para a constituição do debate do ponto de vista dos governos não tinha uma linha sequer sobre a questão da saúde. Houve uma mobilização intensa da Fiocruz, do Ministério da Saúde e do governo brasileiro, e propusemos, articulando com a própria Organização Mundial da Saúde, que essa lacuna fosse preenchida. Estamos aguardando agora uma decisão que ocorrerá no final de março, esperando que o documento um traga esse primeiro avanço, incorporando a saúde como um tema.

Paulo Buss: Por um lado, porque somos uma espécie cuja população soma 7 bilhões no planeta e, por outro, porque a Rio+20 não é uma conferência só sobre o ambiente, mas também sobre o desenvolvimento sustentável, e só haverá desenvolvimento com uma população saudável. Uma população doente não produzirá desenvolvimento. Se o desenvolvimento não visar ao bem-estar e à qualidade de vida dos seres humanos, não faz sentido. Desenvolvimento para quê? Ele só tem sentido quando, respeitando as possibilidades do planeta, os recursos naturais, todas as espécies vivas e a própria preservação do planeta como estrutura geofísica, implicar melhor qualidade de vida para as pessoas, que são parte desse grande ambiente planetário. Por isso, a saúde, tal como esteve presente na Rio 92, no capítulo 6 da Agenda 21 e na Rio+10, em Johanesburgo, tem que estar presente na Rio+20.

Como será a participação da área da Saúde?

Paulo Buss: No local oficial – o Riocentro – vai se realizar um evento conjunto entre o Ministério da Saúde, a Organização Mundial da Saúde e a Organização Panamericana de Saúde, que é o braço da OMS nas Américas. Será um dia inteiro de discussão que permitirá que os delegados oficiais tomem contato com o tema da saúde, interajam com o pessoal da saúde e compreendam a importância de constar da declaração os parágrafos específicos sobre saúde humana e suas conexões com o ambiente, com o desenvolvimento sustentável e também as questões de governança.

No Aterro e em outros lugares da cidade nós vamos ter aquilo que estamos denominando o Corredor da Saúde – um conjunto de atividades permanentes que vão rodar durante toda a semana com debates, apresentações de vídeos, intercâmbios de experiências em saúde e ambiente, exposições e uma série de iniciativas, procurando chamar a atenção da sociedade civil e dos movimentos sociais para essa conexão entre saúde, ambiente e desenvolvimento sustentável. O corredor também servirá de espaço de intercâmbio entre os vários expositores que estarão ali.

Como a Fiocruz pode enriquecer o debate?

Paulo Gadelha: Essa percepção da centralidade da saúde e do  desenvolvimento é uma das questões caras à Fiocruz, uma instituição que atua no centro dessa interface entre políticas sociais e políticas de desenvolvimento. E é por estar nessa posição e ser um órgão do Ministério da Saúde que ela tem um campo muito especial para exercer o seu protagonismo histórico que se fez presente desde a Rio 92 e que continuará a se fazer presente com todo o nosso esforço para avançar nos debates, nas propostas e da mobilização da sociedade em torno da ideia de um ambiente sustentável que seja de fato amplo e que incorpore a questão da superação da miséria, da inclusão social e da reconsideração do modelo social e de desenvolvimento como condições centrais da sustentabilidade. Outro ponto central nesse processo é repensar o modelo de governança com relação a que organismos e formas o mundo vai estabelecer para os desdobramentos da Rio+20 e a governança das questões ambientais. Ela tem que ser pensada como uma governança mais ampla, dos organismos laterais, dos processos políticos e econômicos, que são de fato os fatores que determinam se se pode ou não dar sustentação a modelos alternativos sustentáveis.

Como fica a saúde no modelo de desenvolvimento atual?

Paulo Buss: Estudando o tema da economia verde, da governança, a gente vai concluindo o quanto as questões do desenvolvimento, do ambiente e da saúde são profundamente influenciadas pelo modo de produção e consumo vigentes – inclusão, exclusão, pobreza. Existe uma escola de economistas afirmando, com toda razão, que, no paradigma do crescimento econômico tal como ele vem se desenvolvendo, não será possível o mundo suportar esse modelo, que é gerador de problemas de saúde. A mudança climática decorrente dele, a perda da biodiversidade, as inundações e secas, a crise alimentar que se estabelece, a utilização dos agrotóxicos, a poluição do ar, a falta de água, saneamento básico, tudo isso é ecoagressivo e nocivo para a saúde humana. Quero fortalecer muito essa visão, porque não são palavras apenas. Temos estudos e mais estudos demonstrando as relações entre a forma e as consequências da produção e do consumo sobre a situação de saúde de bilhões de pessoas no mundo. Para que nós, como espécie, consigamos sobreviver com qualidade de vida, precisamos mudar definitivamente essa forma com que o mundo opera a sua produção e o seu consumo.

Como a Rio+20 pode contribuir para a Fiocruz?

Paulo Gadelha: Ela já está contribuindo, primeiro com uma grande conclamação para que a Fiocruz pense de maneira integrada, com toda a sua inteligência e a participação de todas as suas unidades, e faça esse esforço de transcender cada vez mais os seus limites no sentido de exercer o seu protagonismo e o seu papel na Rio+20. A segunda questão é fazer com que a Fiocruz pense também sobre a sua responsabilidade no conjunto das suas atividades, no cotidiano dos seus servidores, na relação que ela estabelece com a sociedade mais ampla, mas também com as comunidades do seu entorno, para exercer, em todos os sentidos, na sua prática institucional, os princípios da sustentabilidade.

A Rio+20 também é uma oportunidade para a Fiocruz se repensar. Pensando no projeto nacional, atuamos e somos uma das âncoras para que o complexo econômico do sistema da saúde venha a atender as políticas sociais e a sustentabilidade do SUS. Muita gente não se dá conta de que a área da saúde, no que conceituamos como complexo produtivo da saúde, mobiliza cerca de 9% do PIB brasileiro. Isso é mais ainda do que o setor agrário. Ora, se 9% do PIB brasileiro passa a se comprometer com a sustentabilidade – e isso significa as indústrias envolvidas nessa área de vacinas, medicamentos, hospitais com selo verde serem capazes de não jogar no ambiente toda uma gama de produtos nocivos, como antibióticos, produtos ligados à área endocrinológica; se pensarmos também como o Saúde da Família e toda a rede de atenção do SUS podem ser um lugar fundamental do processo educativo e de antecipação de questões sérias, como a questão dos agrotóxicos, um dos temas centrais com que estamos lidando no caso da Rio+20 –, percebemos que a Fiocruz tem um papel fundamental que deve ser desempenhado se nós queremos de fato ter densidade, capacidade política, alianças e forças para mudar no sentido da defesa da vida.

Qual o objetivo do documento que a Fiocruz está preparando para a Conferência?

Paulo Buss: A Fiocruz, desde a sua fundação, produz e organiza conhecimentos novos para embasar a tomada de decisões políticas tecnicamente consistentes por parte do Ministério da Saúde. O documento que preparamos a pedido do Ministério toma os dois aspectos principais que estão na pauta da Rio+20: a economia verde no contexto do desenvolvimento sustentável e da erradicação da pobreza e a governança do desenvolvimento, ao que nós acrescentamos “do ambiente e da saúde”. Ou seja, como se estrutura a combinação de ações do governo e da sociedade civil para termos desenvolvimento, ambiente sustentável e saúde humana adequada. O documento tem três dimensões: é muito informativo sobre os vários relatórios, para quem quiser se profundar num tema ou outro, e é também analítico e propositivo. Ele serviu de base para os parágrafos sugeridos para a introdução do tema da Saúde no documento da Nações Unidas e ajudará os negociadores brasileiros na Conferência. Além disso, circulará entre os países da América do Sul para sustentar posicionamentos comuns da Unasul e, eventualmente, de outras organizações subregionais.

*Marina Lemle é jornalista da Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da Fiocruz.

http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/materia/detalhe/29876

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