O risco da verdade

É fundamental manter aberto o debate sobre o significado profundo da Comissão da Verdade. E seu sentido profundo está exatamente em ser um espaço capaz de construir uma verdade sobre o período da ditadura civil-militar brasileira e, por outro, em desconstruir algumas das verdades repetidas – nem tão verdadeiras assim – pelos que têm pavor de verdades que não sejam as deles próprios. Se ela for capaz de produzir verdades com base na memória das vítimas, abrirá caminho para que venha também a justiça. O artigo é de Paulo Cesar Carbonari.

Paulo Cesar Carbonari (*)

Verdade é risco. Ela é imprevisível. Não há como saber onde está, mesmo que possa ser incessantemente buscada. Verdade é menos um lugar e mais uma construção. Em sua construção entram em cena vários fatores e condições. Mas, se é construção, também pode ser desconstrução, ou seja, a negação de verdades nem sempre resulta em outras em seu lugar. Nisso consiste a força libertária e libertadora da verdade: verdade e liberdade se aproximam.

Um exemplo clássico disso é o debate renascentista sobre o geocentrismo e sua alternativa, o heliocentrismo: o que por séculos fora tido por verdade passou por uma gradativa desconstrução e pela construção de nova verdade. Observe-se que tanto a construção quanto a desconstrução da verdade podem ser impedidas, enviesadas ou obliteradas. Nisso consiste não a desconstrução, mas a destruição da verdade. Enfim, a verdade não pode ser dada definitivamente por certa e, sequer, por definitiva. É sempre processo, busca.

A memória é um dos componentes e dos condicionantes da verdade. Mas não o único. O fato é que, sem memória, sequer seria possível construir – ou mesmo desconstruir – verdade. Em termos históricos e societais, a memória é constitutiva da verdade, mais do que o contrário. Ou seja, é a memória da história pessoal e coletiva que ajuda a indivíduos, a grupos sociais e à própria sociedade como um todo a construir verdades de suas próprias vivências. Neste sentido, somente as vivências significativas passam a ser parte da memória e, daí, insumos para a verdade histórica.

Memória e verdade são constitutivas da justiça como realização de condições para a efetivação da dignidade humana. A justiça exige o reconhecimento das injustiças e de suas vítimas, aqueles/as que sofreram a injustiça. Sem isso, a justiça é vazia. Por isso, sem que as próprias vítimas possam dizer sua palavra, sua verdade, recorrendo para isso à memória dos fatos que as levaram à situação de vitimização, não há justiça. O querer justiça como memória e verdade das vítimas é um direito das próprias vítimas, mas não só, ele também é de todos os seres humanos, até porque esta é a forma efetiva de engajar a todos/as para que não sejam produzidas novas vítimas.

Por isso, o direito à memória, à verdade e à justiça se constitui num dos direitos humanos mais basilares para a convivência em sociedade. O nunca mais a todo e qualquer tipo de violação de direitos, a todo tipo situação que produz vítimas, a todo tipo de inviabilização do humano, é a expressão positiva do queremos um mundo justo e humanizado para todas as pessoas, indistintamente.

Trabalhar positivamente com esta concepção parece ser o receio dos que têm se manifestado contra a Comissão Nacional da Verdade e, especialmente, daqueles que por muito tempo foram contra e que recentemente têm se manifestado a favor dela. Os setores conservadores representados no Congresso Nacional, historicamente contrários a qualquer verdade que não fosse aquela por eles próprios produzida, sempre opositores a qualquer Comissão da Verdade, os mesmos, ou ao menos vários deles, que no debate sobre o recém-lançado PNDH-3, nos primeiros meses de 2010, vociferavam contra ele, agora votaram a seu favor, na Câmara Federal, no último dia 21/09/2011, e no Senado Federal, no último dia 25/10/2011, em ambos os casos por acordo.

É a posição destes, não a dos que a defenderam sempre e que agora criticam o texto aprovado com razões legítimas e consistentes, que deve ser estranhada: o que os teria tornado tão confiantes numa Comissão que até há pouco lhes soava ameaça? Afinal, o que mudou? Os conservadores já não o são? Ou teriam os que se diziam não-conservadores se tornado mais conservadores, gerando uma pactuação cômoda, aceitável até aos velhos conservadores?

Um pouco de memória pode ajudar. O editorial de um dos porta-vozes do conservadorismo, o jornal O Estado de São Paulo, de 02/10/2011, começava dizendo: “A criação da Comissão Nacional da Verdade, proposta no 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), assinada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em dezembro de 2009 e aprovada pela Câmara dos Deputados no último dia 21 (será votada agora no Senado), tem como objetivo precípuo investigar e divulgar a ‘verdade histórica’ sobre a ditadura militar de 1964/1985 para ‘promover a reconciliação nacional’”. Mais à frente dizia: “O projeto de criação da Comissão da Verdade – que agora tramita no Senado – acabou sendo escoimado de radicalismos unilaterais e se concentra agora na ideia do estabelecimento de um grupo de sete pessoas nomeadas pela Presidência da República que se dedicará, pelo prazo de dois anos, a levantar informações sobre a chamada ‘guerra suja’, visando, principalmente, apurar o paradeiro de brasileiros desaparecidos ou as circunstânciasem que pessoas foram mortas naquele entrevero”.

Concluía dizendo:

”A maneira como a Comissão da Verdade está sendo constituída parece indicar que o bom senso afinal prevalecerá, em benefício do objetivo maior de reconciliação nacional e da construção de um futuro assentado em bases de convivência democrática. A última tentativa de impor essa questão, em nome de uma visão estreita de direitos humanos, um tratamento sectário e unilateral, foi derrotada essa semana na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara. Projeto de autoria da deputada Luiza Erundina (PSB-SP), que previa a revisão da Lei da Anistia e a possibilidade de levar a julgamento agentes do Estado responsáveis por mortes, torturas e desaparecimento de opositores do regime militar, foi rejeitado por expressiva maioria. Por mais dolorosa que seja a memória de episódios da ditadura, a Lei da Anistia colocou um ponto final nessa questão. Resta apenas o trabalho de recompor historicamente esse período de triste memória da vida nacional, até para evitar no futuro a repetição dos mesmos erros. É a missão que caberá à Comissão da Verdade”.

Este mesmo jornal, em Editorial de 10/01/2010, dizia que o PNDH-3, de onde teria sido dado o start para a Comissão da Verdade, era um “roteiro para o autoritarismo”: “O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou em dezembro um roteiro para a implantação de um regime autoritário, com redução do papel do Congresso, desqualificação do Poder Judiciário, anulação do direito de propriedade, controle governamental dos meios de comunicação e sujeição da pesquisa científica e tecnológica a critérios e limites ideológicos”, incluindo, mais adiante: “A apuração das violências cometidas pelos agentes do regime militar e a revogação da Lei da Anistia são apenas uma parte desse programa – a mais divulgada, até agora, por causa da reação dos comandantes militares à redação inicial do decreto”, sendo que vai concluindo: “O governo também deverá incentivar a produção de filmes, vídeos, áudios e similares voltados para a educação sobre direitos humanos e para a reconstrução “da história recente do autoritarismo no Brasil”. Será um autoritarismo cuidando da história de outro. As intenções políticas são claras, embora escritas numa linguagem abstrusa”.

Incrível que a mesma Comissão da Verdade, que antes compunha parte do pacote que constituía o “roteiro para o autoritarismo”, agora se converta em alguma coisa na qual “o bom senso afinal prevalecerá”. Segundo o editorialista, a memória dolorosa dos episódios da ditadura não será tarefa da Comissão, dado que dela foi dado ponto final pela Lei da Anistia, caber-lhe-ia “apenas o trabalho de recompor historicamente esse período de triste memória da vida nacional”. O que seria então papel da Comissão? O que significaria “apenas recompor” e não fazer a “memória de episódios da ditadura”? Será que a Comissão da Verdade recentemente aprovada foi de tal forma bem amarrada que teria conseguido até “redimir” os PNDH-3? O que significaria ter sido derrotada “uma visão estreita de direitos humanos, um tratamento sectário e unilateral”?

A posição do Estadão não é a única nesta linha, infelizmente. O fundamental, todavia, reiteramos, é manter aberto o processo de reflexão sobre o significado profundo da Comissão Nacional da Verdade. E seu sentido profundo está exatamente em ser um espaço capaz de construir uma verdade sobre o período da ditadura civil-militar brasileira e, por outro, em desconstruir algumas das verdades repetidas – nem tão verdadeiras assim – pelos que têm pavor de verdades que não sejam as deles próprios. Ela não terá alcance para fechar o tripé, pois dela não se poderá esperar justiça. Mas, se ela for capaz de produzir verdades com base na memória das vítimas, certamente abrirá caminho para que venha também a justiça.

Até porque, todos quantos lutamos por direitos humanos sabemos desde há muito que uma coisa é a luta por direitos e outra é o que de direitos o status quo reconhece. Lutar por direitos tem sido e continua sendo a tarefa precípua, inclusive no caso da Comissão da Verdade. Somente a luta dos diversos sujeitos de direitos é que fará possível tanto a verdade, quanto a memória e, acima de tudo, a justiça.

A verdade é risco, sim, porque ela põe em movimento a liberdade. A liberdade em movimento destrói a repressão, mesmo que isso demore algum tempo. Correr o risco da verdade se justifica quando se deseja que a justiça, a liberdade e a verdade caminhem juntas. Para isto estivemos, estamos e continuaremos a postos! Este é o risco de quem se propõe a fazer da luta por direitos humanos uma luta permanente. Para estes e estas, a verdade não é um risco, ou é um risco que vale a pena correr!

(*) Doutorando em filosofia (Unisinos), professor de filosofia no Instituto Berthier (IFIBE, Passo Fundo, RS), membro do conselho nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH)

 

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