Belo Horizonte e as famílias desalojadas pelo tráfico

Desalojados
C. se desentendeu com uma vizinha amiga de traficantes e foi obrigada a se mudar de casa
149 já foram expulsas de moradias dadas pelo poder público, em conjuntos onde a violência impera
Renato Fonseca, do Hoje em Dia

“Perdeu! Dá pé”. É assim que bandidos impõem o terror e expulsam famílias de conjuntos habitacionais de Belo Horizonte. Sob o domínio do tráfico e vivendo em meio a disputas entre diferentes facções criminosas, moradores estão vendo o sonho da casa própria se transformar em pesadelo.

Pelo menos 149 famílias foram retiradas à força de apartamentos após ameaças de morte. Destas, 134 acionaram a Polícia Militar e registraram Boletim de Ocorrência. O levantamento foi feito pela Prefeitura de Belo Horizonte (PBH)em março e abril, e faz parte de uma ação conjunta para enfrentar os ataques.

O Plano Integrado de Prevenção a Invasões de Unidades Habitacionais em Belo Horizonte, ao qual o Hoje em Dia teve acesso com exclusividade, mostra que algumas unidades habitacionais da capital são como barris de pólvora prestes a explodir.

Além das expulsões, os moradores convivem com homicídios, estupros, tráfico de drogas, ocupação irregular, venda ilegal dos imóveis e até “toque de recolher”. Em geral, os criminosos são homens jovens de baixa escolaridade e, assim como as demais famílias sem-teto, foram retirados de áreas de risco para morar nos conjuntos.

As áreas de conflito, conforme o plano de ação, estão concentradas em conjuntos do projeto Vila Viva, inaugurados pela PBH no Aglomerado da Serra (Região Centro-Sul) e Vila São José (Noroeste). Outras unidades habitacionais mais antigas, como Granja de Freitas (Leste), Águas Claras e Araguaia (Barreiro), também sofrem com a ação dos bandidos.

C., de 31 anos, e M., de 36, foram expulsos do conjunto habitacional Granja de Freitas depois de sete anos no local. A mulher afirma nem conhecer pessoalmente os traficantes da região. Mas explica que o lar virou alvo dos bandidos após se desentender com uma vizinha que tinha contato com eles.

Os traficantes tentaram arrombar a porta do apartamento e só não conseguiram porque ela tinha um reforço com três cadeados – dois foram danificados. “Eles gritavam que iam matar minha esposa”, conta M., com a voz trêmula só de lembrar do episódio.

Na ocasião, C. estava fora do imóvel. E acabou denunciando as ameaças na delegacia. “Disse aos policiais que eles queriam tirar meu apartamento”. Para voltar à casa em segurança, a mulher foi escoltada pela Polícia Civil. “Cheguei lá e o prédio estava cheio de bandidos à minha espera”.

Como não tinha o título de propriedade do apartamento, C. e M. tiveram que ser realocados em outro conjunto habitacional da prefeitura. O novo endereço é mantido em sigilo e quase não é frequentado pelos próprios moradores. “Lá tem tráfico igual na Granja. Prefiro passar o dia inteiro na casa da minha mãe”, diz C..

Assim como o casal, outras famílias abandonaram apartamentos em todos os quatro conjuntos do Granja de Freitas, diz um líder comunitário da região, que pediu anonimato por medo dos criminosos. Ele conta que moradores são expulsos por diversos motivos. “Pode ser uma rixa, dívida com tráfico ou até para que na moradia seja montado um novo ponto de venda de droga”.

Expulsão por vários motivos

Imóveis tomados de viciados em dívida com traficantes, disputa de território, rixas entre gangues e até discussões banais. Os motivos para a expulsão de famílias das moradias populares variam, mas a brutalidade das retiradas é a mesma.

O líder comunitário de um dos conjuntos da Região Centro-Sul conta que no fim de 2010 uma família foi obrigada a deixar o apartamento por causa de uma dívida de R$ 1 mil contraída por um dos filhos, usuário de droga. “O rapaz comprava cada vez mais pó”, diz o homem, que pediu anonimato por medo de represálias.

Os bandidos teriam dado 48 horas para receber o dinheiro, caso contrário a família perderia a residência. “De madrugada, todos fugiram, levando os poucos pertences que tinham”, lembra.

Uma ex-moradora do Granja de Freitas, e que hoje vive em outro conjunto habitacional de BH, afirma que o clima de apreensão é constante. Segundo ela, até quem não tem envolvimento com o tráfico pode ser alvo dos bandidos. “Basta alguém não ir com a sua cara”, diz. A mulher conta que pessoas que conhecem o rival de um traficante ou que simplesmente moram perto de um deles estão sujeitas a retaliações.

Em alguns casos, os criminosos usam os apartamentos de inocentes para guardar armas e drogas, formando uma nova boca de fumo. Em outros, o tráfico funciona quase como uma imobiliária. O bandido invade o apartamento para depois vendê-lo.

O plano de ação elaborado pela prefeitura mostra que entre as unidades habitacionais irregulares, 70 moradias, 32% do total, estão com ações instruídas e encaminhadas à Procuradoria do Município. Destas, 30 têm decisão judicial para reintegração de posse.

Prédios coloridos em cenário de bangue-bangue

O tráfico de drogas é onipresente em praticamente todos os conjuntos habitacionais de Belo Horizonte. O plano de prevenção às invasões identifica a relação dos assentamentos com os locais de maior concentração de homicídios e comércio ilegal de entorpecentes na capital.

O mapa da criminalidade que consta do plano mostra que a venda de substâncias ilícitas, principalmente no varejo, é a raiz tanto dos homicídios quanto dos pequenos roubos, praticados para sustentar o consumo de drogas. De acordo com o estudo, a maioria dos assassinatos ocorre por dívidas e disputa de território.

“O tráfico está em todo lugar. Desde a entrada do conjunto, passando pelos blocos e subindo as escadas, até os apartamentos. É lá que a bandidagem guarda as mercadorias”, conta, com detalhes, a dona de casa S.S., de 49 anos. Ela era uma das mais antigas moradoras do Granja de Freitas, na Região Leste de BH, mas precisou sair de lá escoltada pela polícia após denunciar um homicídio.

Com naturalidade e sem esboçar nenhuma apreensão, S.S. conta que presenciou pelo menos seis assassinatos no conjunto, durante os nove anos em que viveu no local. Ao recordar um deles, a mulher conta a covardia dos bandidos.

“Um rapaz devia dinheiro da droga. Como não pagou, juntaram outros cinco para bater nele até ele praticamente desmaiar de tanta dor. Em seguida, o líder do grupo atirou três vezes, à queima-roupa, para ‘terminar o serviço’”.

Em 2009, um novo homicídio foi a gota d’ água para que S.S. procurasse a polícia, mesmo preocupada com a segurança da família – os dois filhos e a mãe dela moravam no conjunto. O rapaz morto a tiros, por conta de uma dívida, era filho de uma amiga. “Fui à polícia e contei tudo. Não só sobre os assassinatos, mas também das constantes brigas pelo tráfico de drogas”, diz.

Após as denúncias, ela começou a ser ameaçada e, com a ajuda do Ministério Público Estadual, conseguiu nova moradia. A mulher e os parentes foram levados para um conjunto em outra região da cidade. Os endereços são mantidos em sigilo por questões de segurança.

As disputas entre gangues denunciadas pela moradora são constantes também em outros conjuntos habitacionais. A demonstração de poder paralelo foi deixada nas paredes de um dos prédios da Vila São José, na Região Noroeste da capital.

O fogo cruzado entre bandidos de diferentes facções, ocorrido há seis meses, terminou com várias marcas de bala de pistolas e revólveres calibre 38 nas laterais do bloco de apartamentos. Após o conflito, a Polícia Militar diz ter tomado providências para reestabelecer a ordem no local.

Situação em BH remete ao Rio de Janeiro

As invasões em conjuntos habitacionais da prefeitura acontecem há pelo menos seis anos, afirma o professor de Ciências Sociais e especialista em criminalidade Luiz Flávio Sapori. “Só que ninguém imaginava que ia chegar a grandes proporções”, diz.

Para ele, não houve omissão por parte do Executivo. Segundo Sapori, setores da prefeitura planejavam desarticular o tráfico com a urbanização das favelas. “Mas o problema vai muito além da degradação urbana”, analisa.

Já o sociólogo Ignacio Cano, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), lembra que os conjuntos habitacionais foram planejados para democratizar o acesso à moradia, oferecendo condições mais dignas às famílias sem-teto e a pessoas retiradas de áreas de risco. Mas, para ele, a política habitacional ainda peca na ressocialização do espaço.

Segundo Ignacio, a situação em BH remete ao que ocorreu em conjuntos habitacionais do Rio de Janeiro, onde traficantes também espalharam o terror entre os moradores. Ele alerta que ameaças, expulsões, tráfico e homicídios tendem a crescer a cada demonstração de ineficiência das forças de segurança pública.

Já Sapori sugere duas ações a curto prazo para minimizar o problema na capital mineira, considerado por ele “de caráter complexo”.

De imediato, o especialista recomenda a prisão dos traficantes que têm comandado as expulsões. Também reforça a necessidade da presença da PM, 24 horas, nas unidades habitacionais. Ele considera até a instalação, nos locais, do Grupo Especializado de Policiamento em Áreas de Riscos (Gepar).

Território livre para venda de droga

Um cigarro de maconha passando de mão em mão e até mesmo papelotes de cocaína sendo comercializados nos arredores dos blocos. Bastaram apenas duas horas, durante uma tarde, em um dos conjuntos habitacionais de Belo Horizonte, para constatar que crianças, adolescentes e adultos convivem com o consumo irrestrito de entorpecentes e, claro, com a violência. Nem a presença de repórteres inibe os viciados. “A gente fuma de boa e não incomoda ninguém”, alega um dos usuários.

Para coibir o uso de tóxicos nas moradias, prática que fomenta o tráfico, o diagnóstico da prefeitura sugere várias medidas a serem tomadas. Um comitê foi criado e algumas reuniões feitas para traçar ações imediatas.

Projetos sociais, como o programa estadual Fica Vivo, serão estendidos. O comitê também pretende reforçar o policiamento, estimular as denúncias por meio do Disque 181 e manter o cadastro atualizado e compartilhado das informações.

Neste primeiro momento, serão priorizadas ações nos conjuntos Vitória (Nordeste de BH), Granja de Freitas (Leste), França e Alpes I e II (Oeste) e Araguaia e Águas Claras (Barreiro).

Discurso correto, mas pouco eficaz

A falta de segurança nos conjuntos habitacionais de BH despertou a atenção da Câmara Municipal. No início do mês, uma audiência pública debateu o assunto. Com um discurso politicamente correto, mas ainda difícil de ser colocado em prática, o vereador Daniel Nepomuceno (PSB) cobrou a adoção de medidas específicas para esses locais. “É necessária a presença das polícias nos conjuntos habitacionais de forma constante para, assim, estabelecer um combate efetivo ao crime organizado”, disse o parlamentar.

Durante a audiência pública, o adjunto da Secretaria de Estado de Defesa Social (Seds), Genilson Zeferino, admitiu que Minas não tem um plano específico para essas localidades, mas se colocou à disposição para o diálogo.

Procurada, a Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte (Urbel), um dos órgãos responsáveis pela Política Municipal de Habitação Popular, informou que a prefeitura não iria se pronunciar sobre o plano neste momento.

Uma fonte ligada à Secretaria Municipal de Segurança Urbana e Patrimonial afirmou, no entanto, que a prefeitura “não tem medido esforços para enfrentar o problema”. O primeiro passo teria sido a elaboração do plano de prevenção às invasões.

Bandido perdeu o respeito pela polícia, diz morador

Moradores reclamam que criminosos perderam o medo e o respeito pelas autoridades. Famílias de vários conjuntos afirmam que os bandidos até chegam a ser presos. Mas acabam soltos, voltando a aterrorizar a comunidade.

Em dezembro de 2010, a Polícia Civil de Belo Horizonte prendeu quatro pessoas suspeitas de integrar a “Gangue dos Predinhos”. A quadrilha estaria expulsando famílias de apartamentos na Vila São José.

Na época, a corporação informou que os bandidos ameaçavam e agrediam os moradores e depois invadiam os imóveis para guardar armas e drogas. As expulsões também teriam como pano de fundo o tráfico e vinganças.

Segundo a Seds, nenhum dos suspeitos continua atrás das grades. Marlon Camilo de Oliveira Santos, de 21 anos, o “Toco”, conseguiu alvará de soltura em agosto deste ano. Na mesma época, Amilton Jesus Borges dos Santos, de 27, Douglas Pires Domingues, de 18, e Pedro Henrique de Paula Cadete, de 22, obtiveram liberdade provisória.

Questionados se os suspeitos têm frequentado o bairro, moradores não confirmaram a informação, mas também não negaram. Todos preferiram o silêncio.


*Colaborou Daniela Garcia

http://www.hojeemdia.com.br/minas/belo-horizonte-e-as-familias-desalojadas-pelo-trafico-1.362523#.Tq1hCkKShRw.gmail

Enviada por José Carlos.

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