Mudanças climáticas interferem no saber indígena da Amazônia, diz pajé Dessana

Pajé, curandeiro e líder espiritual indígena Raimundo Dessana diz que alterações estão “descontrolando” observação das constelações

Cacique e pajé Raimundo Dessana, cujo conhecimento sobre as estações da Amazônia recebe influência das constelações

Elaíze Farias

As alterações no planeta estão descontrolando os conhecimentos astronômicos e climáticos dos especialistas indígenas. “Não é como era antes. Tem vez que dá chuva, outro dia dá sol. Tudo está mudado. As pessoas não cuidam direito do mundo e fica assim”, diz o pajé e kisibi-kumu (líder espiritual), Raimundo Vaz Veloso, também cacique da Oca Dessana Saberes do Universo, localizada na comunidade São João, na área da Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Tupé, a 25 quilômetros de Manaus.

Mais conhecido como Raimundo Dessana, cujo sobrenome é referência ao seu povo indígena, o cacique se diz preocupado com os efeitos das mudanças climáticas na observação do céu, das constelações, do ciclo dos rios, do tempo de chuva e de vazante.

“Ano passado o rio secou muito. Ficava difícil de pegar as coisas. De andar no rio. Disseram que este ano seria a mesma coisa. Mas eu falei para eles que não, não seria igual ao ano passado. Que o rio seria normal. Agora o rio está subindo”, relata Raimundo Dessana, relembrando conversa que teve “com um pessoal da Defesa Civil”.

Constelações

A Oca do grupo pertencente ao povo dessana da comunidade São João é o lugar onde a família de Raimundo  estabeleceu desde que o grupo se deslocou de sua aldeia à margem do rio Tiquié, no município de São Gabriel da Cachoeira, desceu o rio e chegou até a zona rural de Manaus.

Junto com a família (a mulher e cinco filhos), Raimundo Dessana, 65 anos, trouxe consigo os ensinamentos dos seus pais e nunca deixa de repassá-los aos seus descendentes e de ressignificar no cotidiano doméstico estes saberes.

“Desde o começo, desde que nasci, meu pai me ensinava as coisas. Ele me ensinou as rezas, as plantas, as cantorias. Eu sei quando vai fazer friagem e quando começa a ajeitar o rio. Olhando o céu e os animais, a gente sabe quando vai ter flores e fartura de frutas. A gente vê pelas estrelas”, diz o kisibi-kumu, uma das mais importantes especializações da sabedoria indígena.

Um destes conhecimentos é a leitura das constelações, cujas equivalências fazem relação com o micro-clima, com a fauna, com a flora e com o ecossistema da Amazônia.

“A forma de cada estrela mostra um bicho. A gente sabe que tem a lagarta, o camarão, o jacundá (peixe), o tatu. Cada um desses bichos  e suas figuras no céu é uma época do ano. Quando eles aparecem a gente sabe quando tem friagem, chuva ou sol”, explica o pajé, com uma ponta de lamento por causa do “descontrole” do tempo.”Às vezes acontece tudo errado”.

Pesquisa

O conhecimento das estrelas de Raimundo Dessana chamou atenção do astrônomo Germano Afonso, do Museu da Amazônia (Musa), que há 20 anos estuda as leituras das constelações sob os olhares dos especialistas indígenas.

Germano Afonso tem no acervo pessoal informações sobre as constelações dos índios guarani, kaiagang e dos tukano, estes também do alto rio Negro. Com os dessana, Afonso trabalha há dois anos.

“Estamos aprendendo e criando um catálogo destas constelações. Vou publicar, mas ainda não sei quando vai ser isso”, conta Germando Afonso, que nesta semana coordenou uma expedição à comunidade dos índios dessana que moram na Oca da comunidade São João, à margem do rio Negro.

Realizada em um barco de recreio (embarcação típica da bacia amazônica) da Secretaria Municipal de Educação (Semed), a expedição teve participação de jornalistas, pesquisadores da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), de um grupo de estudantes indígenas da etnia tikuna e do diretor da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia, representando o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCT&I), Ildeu de Castro Moreira.

Experiência

Na comunidade, os indígenas e pesquisadores tiveram experiência de trocar experiências. O meteorologista Júlio Tota apresentou aos indígenas, especialmente às crianças e adolescentes, uma das estações meteorológicas automáticas da UEA. O objetivo foi mostrar aos presentes como funciona uma medição de temperatura, umidade e pressão.

A bióloga Renata Schmitt fez uma demonstração de leitura do PH da água da comunidade, com análise dos dados coletados.

Rituais, leituras das estrelas, oferta de caxiri (bebida fermentada) e uma festa com muita dança com os visitantes encerraram a expedição.

Turismo

A Oca Saberes do Universo sobrevive basicamente da atividade turística. Quase todos os dias os índios dessana recebem grupos de turistas.

Venda de artesanato e apresentação de rituais é a principal fonte de renda da família de Raimundo Dessana, que comanda um grupo de 90 pessoas, entre família e agregados dessana e de outras etnias, entre elas tukano, barasana, wanano e piratapuia.

O acesso à comunidade leva uma hora e meia em barco de recreio e meia hora em lancha.

http://acritica.uol.com.br/amazonia/Amazonia-Amazonas-Manaus-Mudancas-climaticas-influenciam-indigena-Amazonia_0_576542720.html

 

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