Privatização da saúde se amplia

Por Raquel Júnia, EPSJV-Fiocruz

Foi à custa de sprays de pimenta e da repressão do batalhão de choque da Polícia Militar, que a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) aprovou, no ultimo dia 13 de setembro, mudança na gestão da saúde do estado, que agora será gerida por Organizações Sociais (OS). Em João Pessoa, na Paraíba, no mesmo dia a tentativa de aprovação das OS no município resultou em três estudantes de medicina feridos na repressão policial aos manifestantes, que conseguiram fazer com que o tema fosse retirado de pauta. Os governos justificam que o atendimento nas unidades geridas por OS continua público e mais eficiente para a população.

Entretanto, pesquisadores, profissionais da saúde, estudantes e militantes de movimentos sociais denunciam que se trata de um processo de privatização e de desmonte do SUS, com várias consequências para os trabalhadores e usuários. De acordo com o Fórum em Defesa do SUS e contra a Privatização, situado em Alagoas e um dos núcleos que se opõem a esses processos, as OS já fazem gestão da saúde nos estado de São Paulo, Pará, Pernambuco, em municípios do estado de Alagoas, da Bahia, na cidade do Rio de Janeiro e agora, no estado do Rio. “É um processo de privatização porque é a introdução de contratos que são da lógica do direito privado no núcleo estratégico de funcionamento do SUS, no coração do sistema. Se fosse uma estratégia isolada para resolver um problema pontual, poderia até ser possível ter que recorrer a esse tipo de dispositivo. Nesse caso, não é disso que se trata; não é um dispositivo para resolver um problema emergencial, é uma substituição da lógica do direito público por uma lógica do direito privado e isso é muito grave”, analisa a professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Ligia Bahia sobre a recente aprovação das OS no estado do Rio de Janeiro.

Ligia explica que, a médio prazo, a eficiência do sistema de saúde é afetada com a administração via OS, ainda que momentaneamente possa haver um injeção de recursos que cause uma melhoria imediata e uma boa impressão na população. “O argumento para contratação das OS é que com essas organizações se conseguirá a eficiência.

Mas a médio prazo o que ocorrerá é uma redução da eficiência do SUS. Porque isso aumenta o chamado custo de transação, que é o custo relacionado com contratos nos quais se embutem riscos de haver quebra das relações de confiança entre contratado e contratante”, diz. A professora exemplifica: “É como você comprar um carro velho sem saber direito que ele já está batido, e, nesses casos dos contratos com as Organizações Sociais, os custos de transação parecem ser muito elevados, porque as empresas que estão sendo contratadas não têm nenhuma experiência na gestão, são empresas que foram formadas para serem OS, a exemplo, aqui no Rio, da Fiotec e do Viva Rio”, define.

Ligia classifica a melhora momentânea que pode haver nas unidades gerenciadas por OS como uma “melhora com um tempo eleitoral”. “Esse não é o tempo necessário para resolver as necessidades de saúde da população, porque elas não necessariamente combinam com os tempos eleitorais, são necessidades para sempre, por isso precisamos ter uma política de Estado e não de governo para a saúde”, defende. “No médio prazo, as OS vão preferir atender pacientes de menor risco para gastar menos e não há nenhum antídoto pensado para resolver esse problema. Isso é uma irresponsabilidade, porque há toda uma experiência internacional que diz que quando do se recorre a esse tipo de dispositivo, de contratar um terceiro, é preciso que no contrato esteja incluído um monte de cláusulas que protejam essa chamada seleção de risco, e não é o caso. Inclusive os contratos nem são transparentes, não estão disponíveis. Na lei aprovada na Alerj, isso não está garantido”, questiona.

Aproveitamento privado dos recursos públicos

Os professores pesquisadores da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Ialê Falleiros e Julio França destacam o quanto esses processos de mudança de gestão representam, na verdade, lucratividade para o setor privado. “O setor privado não entra com os recursos humanos, físicos ou materiais para prestar serviço à população. O Estado subsidia todo o setor privado para oferecer os serviços a partir do contrato de gestão”, explica Julio. Ialê completa: “O setor privado, sem custo nenhum para si, só tem que administrar para o Estado. Em tese, a lei aprovada diz que não pode haver lucro, mas no fluxo da administração o setor privado só tem que dar conta das metas. Como não há licitação para compra de produtos, por exemplo, a chance de haver superfaturamento, irregularidades, é muito grande. Pode, inclusive, haver aplicação na bolsa de valores, não há nada que vete isso”.

Os professores explicam que na lei que cria as OS (9.637/1998) já era permitida essa aplicação na bolsa de valores. E especificamente, a lei recentemente aprovada no estado do Rio, abre brechas para a atuação no mercado financeiro. “Formalmente a lei diz que a entidade não pode ter finalidade lucrativa e deve obrigatoriamente investir os excedentes financeiros no desenvolvimento das próprias atividades, vedada a distribuição entre os sócios, diretores, fundadores, então, ela não pode distribuir o lucro entre a sua diretoria. Entretanto, isso não impede que esse dinheiro seja aplicado no mercado financeiro, até porque o recurso que o Estado repassa para a instituição é depositado numa conta bancária. Logo, é possível, a partir da conta bancária, aplicar em outros ativos aquele dinheiro enquanto ele não vai sendo utilizado. E a OS pode justificar que vai usar o excedente que irá lucrar no mercado financeiro para reaplicar nas atividades da saúde”, diz Julio.

Um problema que agrava o quadro, segundo os pesquisadores, é a dificuldade do Estado de controlar e supervisionar essas OS. “A lógica é de que o privado tem mais capacidade de execução do que o próprio Estado. A partir desse novo modelo não é mais papel do Estado executar esses serviços, que são considerados não exclusivos do Estado, que são públicos, porém considerados não estatais. Mas qual é o custo de o Estado cuidar das compras sem licitação, das aplicações na bolsa, das contratações sem concurso?”, questiona Ialê. Os pesquisadores alertam ainda para o risco de as OS gerirem também instituições de ensino e pesquisa na saúde, já que a lei aprovada na Alerj inclui as áreas de assistência, ensino e pesquisa como objetos da OS. “Com o ensino e a pesquisa executados pelo setor privado, qual é a capacidade do poder público de direcionar esses serviços e essas atividades para os interesses públicos? É muito pequena”, destacam.

Ilustrativo do processo de privatização que as OS iniciam é o caso de São Paulo. No final do ano passado, a Assembleia Legislativa do estado aprovou uma lei que permitia a reserva de 25% dos leitos dos hospitais do estado geridos por OS para convênios e planos de saúde. O Ministério Público de São Paulo questionou a lei e no ultimo dia 31 de agosto, a Justiça determinou por meio de uma liminar, a suspensão do decreto 57.108/2011, que regulamentou a lei estadual. “Se a medida for implementada haverá uma situação aflitiva na saúde pública do estado, uma vez que os dependentes do SUS perderão 25% dos leitos públicos dos hospitais estaduais de alta complexidade, que já são, notoriamente, insuficientes para o atendimento da demanda de nossa população”, declarou, no processo, o MP de São Paulo. A justiça determinou multa diária de R$ 10 mil “a ser arcada pessoalmente pelos agentes públicos” caso a decisão fosse descumprida.

Na ocasião da aprovação da reserva de leitos em São Paulo, o pesquisador do departamento de medicina preventiva da faculdade de medicina da Universidade de São Paulo Mario Scheffer comentou sobre o porquê dessa nova tentativa de privatização. Ele ressaltou que quando a lei das OS foi aprovada no estado, em 2005, os hospitais geridos por elas receberam momentaneamente muitos recursos, mas que atualmente, esse montante diferenciado já não está mais disponível para essas organizações. “Esses hospitais tinham grandes privilégios, receberam um financiamento extraordinário, receberam todo equipamento, não tiveram que colocar recursos de custeio, ou seja, foi criada uma vitrine assistencial. Só que passados dez anos, estes hospitais começam a precisar de reformas, de mais equipamentos, de mais pessoal. E os recursos não são suficientes, porque foram investidos recursos muito privilegiados, que as próprias unidades do SUS não tiveram à disposição. Então, o que aprovaram é uma lei também no sentido de salvar essa vitrine assistencial do estado de São Paulo”, afirmou.

Reforma do Estado

Julio explica que desde a reforma do Estado de 1995, proposta por Bresser Pereira, foi construída uma imagem da ineficiência do setor público, para poder, assim, garantir a passagem de um modelo burocrático de administração pública, para um modelo gerencial, visando aumentar a eficiência. “É uma contradição porque o Estado é considerado eficiente para regular o setor privado cuidando do público. Se o setor público é tão ineficiente assim, como ele poderia regular o setor privado? Mas essa é a nova lógica da administração pública na qual é preciso reunir esforços para apostar em um Estado que seja capaz de fazer esse controle”, complementa Ialê.

Para Ligia Bahia, embora as OS não sejam a solução, é preciso pensar em uma mudança nas regras da administração pública. “Essas regras foram elaboradas pelo regime militar para contratar exatamente empresas privadas, elas não atendem as nossas necessidades, mas as necessidades de compra de serviços, o que não é o nosso caso. Então, precisamos de mudanças radicais nas regras da administração pública brasileira dentro da lógica do contrato público e não fazendo um contorno. Precisamos ter uma reforma do Estado, de maneira que este Estado seja transparente, que as compras sejam claramente voltadas para resolver as atividades finalísticas. Aí sim poderíamos ter metas, com transparência. Porque as OS propõem metas, mas que metas serão essas? Quem é que controla esses contratos? O problema é que hoje nem é possível controlar a gestão no setor público. E não será possível controlar contratando alguém privado”, diz.

Batalha judicial

O Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Democrático Trabalhista (PDT) são autores de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin 1923/1998) que questiona a lei de criação das OS. A Adin já entrou na pauta de julgamentos do Supremo Tribunal Federal (STF) algumas vezes, mas ainda não foi julgada. Contraditoriamente, na votação das OS no Rio, quatro dos seis deputados do PT e seis dos onze deputados do PDT foram favoráveis ao PL. No final do ano passado, os fóruns populares de saúde do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Rio Grande do Norte e Alagoas, além de sindicatos e trabalhadores da saúde de Minas Gerais, Pará, Pernambuco, Rio Grande do Sul e Bahia se reuniram no Rio para participarem do Seminário da Frente Nacional contra a privatização da saúde. Na abertura do evento, que tinha o tema ‘20 anos do SUS: lutas sociais contra a privatização e em defesa da saúde pública estatal’, a juíza federal Salete Macaloz afirmou que as privatizações tendiam a continuar. “O capital é diabólico. Eles querem um lucro mais livre, portanto não interessa, por exemplo, privatizar o equipamento do hospital, mas sim o recurso público”, afirmou.

Ialê Falleiros comenta que o que há hoje não é um modelo no qual o Estado se opõe ao setor privado. Para ela, é preciso que as pessoas que defendem o Estado público reconheçam que estão perdendo essa briga e somem esforços para organizar as estratégias de contraposição. “Estamos diante de uma situação que não é o Estado versus o setor privado. Mas sim o Eestado fomentando esse modelo de ingerência privada do SUS. Há contradições, há grupos no interior desse Estado defendendo outro projeto, mas é importante perceber que a correlação de forças dentro desse Estado está levando para esse direcionamento de maior participação do setor privado na administração desses serviços”, observa.

http://www.fazendomedia.com/privatizacao-da-saude-se-amplia/

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