Tempo vazio e contemplação

Ao criar instrumentos tecnológicos para mediar sua relação com o outro, o homem contemporâneo está perdendo a dimensão do devaneio e do sonho

Mozahir Salomão Bruck*

“Quanto mais tentamos fazer render o nosso tempo, mais temos a sensação de que o perdemos.” Foi com essa frase que Maria Rita Kehl encerrou a conversa que tivemos no percurso entre o hotel em que dormira na rápida estadia na capital mineira e o já hoje nem tão distante aeroporto de Confins. A psicanalista veio a Belo Horizonte para falar a estudantes de comunicação social da PUC Minas. Abordou aspectos da mídia e seus impactos na sociedade e o que considera ser uma grande e quase cega “fé” nos meios de comunicação e nos dispositivos de interação em geral.

No trajeto até o aeroporto, onde a escritora embarcaria de volta para casa, em São Paulo, nossa conversa privilegiou, no entanto, outro tema: as análises que Maria Rita Kehl, mais recentemente, tem se dedicado a fazer sobre como, na contemporaneidade, o homem tem abruptamente alterado sua percepção do tempo. Parte dessas análises, a psicanalista tornou pública no ano passado, quando lançou O tempo e o cão – a atualidade das depressões, pela Editora Boitempo. Segundo ela, a aceleração da nossa experiência de tempo pode estar provocando o aumento e intensificação das depressões.

Maria Rita Kehl buscou no pensador Antonio Candido a repulsa à ideia do tempo apenas como meio e modo de realização e obtenção das coisas, especialmente as materiais. Candido escreveu há alguns anos que o capitalismo é o senhor do tempo, mas que tempo não é dinheiro. Kehl disse ter considerado muito singela e muito precisa a observação do professor, desfazendo, na verdade, o mote quase publicitário de que “tempo é dinheiro”. Com sua reflexão, Antonio Candido nos alerta, diz a psicanalista, para o fato de que aceitar isso seria uma barbaridade, uma brutalidade, pois o tempo é o tecido de nossas vidas.

O tempo, enfatiza, é tudo que nós temos, pois nossa vida é composta de tempo e de nada mais além dele, sendo que cada um o preenche ao seu modo. Para a escritora, quando começamos a fazer com que ele renda, apenas tendo em vista o quanto pode nos proporcionar materialmente – “para nós ou para o outro, porque normalmente quem enriquece não é a gente”, ironiza –, é o valor da vida que se perde. Kehl chama ainda a atenção para o fato de que quanto mais se tenta preencher a vida com muitas atividades, tentando fazer com que o tempo renda mais e mais (muitas coisas na agenda em um dia só, alimentando essa sensação de que o aproveitamos bem), mais se tem a sensação de que não vivemos nada, de que nada aconteceu.

O que Maria Rita Kehl denomina de novo modo de percepção do tempo tem ainda outros ingredientes, entre eles a intensa colagem do homem aos chamados dispositivos hodiernos, leiam-se aqui smartphones, netbooks, tablets e readers em geral – também, por assim dizer, sintoma dessa contemporaneidade acelerada. A psicanalista conta que certa vez estava em um local público, onde havia inúmeros jovens. Ela reparou que, em uma das mesas, alguns rapazes e moças quase não conversavam entre si. Estavam falando, por meio de seus aparelhos, com outros que não estavam ali. Ficavam fotografando e enviando mensagens e imagens para os ausentes. “É estranho”, pondera a escritora. “Eu não sei dizer ainda o que isso implica, mas você observa que, de fato, as pessoas estavam ali, face a face, mas em vez de conversar, preferiam estar ocupadas nos seus aparelhinhos para falar com quem estava longe”.

Mas, mesmo para a análise dessa cultura marcada pela excessiva mediatização, Maria Rita Khel opta por valer-se da categoria tempo. Para a psicanalista, esses “aparelhinhos que nós acreditamos que precisamos dele para poupar tempo acabam por ocupar o nosso tempo. Ocorre então o contrário, pois eles nos escravizam”. A escritora salienta ainda que a pessoa pode, todo o tempo, receber notícias, mensagens, fotos e vídeos de todo mundo que não está do seu lado. E, quando fica sem fazê-lo, tem a sensação de que está perdendo alguma coisa. “Tem a ver”, destaca, “com o funcionamento do superego, isto é, se você pode, você deve. O fato é que as pessoas ficam muito menos disponíveis para conversar, para se relacionar… mais ainda, não tomam para si um tempo para ficarem quietas, para observar a paisagem.”

Sob tensão Pessimista em relação ao modo como o homem contemporâneo vem vivenciando e instituindo sua percepção sobre o tempo, a psicanalista diz acreditar que “o tempo vazio vai desaparecer da face da Terra”. De acordo com ela, as pessoas parecem ter simplesmente desaprendido a sentir o tempo passar, a relaxar. “Uma das coisas que eu gosto muito”, conta, “em uma viagem de ônibus, já que eu não estou dirigindo, é de ficar olhando pela janela. Gosto disso desde quando era criança. Ao olhar a paisagem, passa muita coisa na cabeça da gente, mas não é aquele pensamento consciente, que você tem que resolver um problema… mas o que Walter Benjamin chama de devaneio. Pois isso está cada vez mais difícil. Os ônibus e até os táxis já estão cheios de telas para você ocupar seu tempo, assistindo coisas que não pediu para ver”.

Certamente, muito mais do que um jogo de palavras, a psicanalista nos alerta para o fato de que é esse horror ao vazio que nos esvazia. “Esse horror ao vazio e todos os dispositivos que temos para não deixarem nenhum tempo vazio significam para nós muito mais um risco de esvaziamento do que de nos preencher… Esse horror ao vazio é o que nos esvazia.”

Kehl lembra que o que preenche a vida, principalmente, é o trabalho psíquico, é o trabalho da imaginação, do pensamento, do devaneio e do sonho. “A questão aí é que as coisas da vida chegam cada vez mais para nós elaboradas pela mídia, pela publicidade e por toda a tecnologia”, pondera. “E já com a contemplação, bem, a contemplação não tem finalidade. É um fim em si mesma. Ela tem um prazer, ela é cheia, vamos dizer assim. Por outro lado, o tempo usado como meio para outra coisa é vazio. Ele é só meio. Quanto mais as pessoas fazem render o seu tempo, mais ficam com a sensação de que o perderam, que o desperdiçaram. Enfim, elas se fizeram instrumento de alguma coisa que não sabem exatamente o que é”, conclui.

—-
*Mozahir Salomão Bruck é professor da PUC Minas.

Estado de Minas, Caderno Pensar, 17-9-2011

Enviada por José Carlos.

 

 

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.