Resistência: trajetória negra no extremo Sul é exemplo para organização no país

Diony Maria*

Desde que foram trazidos para o extremo Sul no final do século 18 (1780) para trabalharem como escravos nas indústrias do charque, os negros passaram a representar cerca de 30% do total da população da região. Pesquisas extra-oficiais realizadas recentemente apontam, no entanto, que este percentual cresceu para significativos 50% de pardos e pretos. Basta andar pelas ruas dos municípios de Pelotas ou de Rio Grande para constatar o expressivo contingente de pessoas pretas ainda não atingidas pela miscigenação.

Em Pelotas, durante todo o período da escravidão, os negros resistiram bravamente por intermédio de fugas, que avolumavam-se durante a safra das charqueadas. Muitos dos que fugiram foram para o Uruguai, país que aboliu a escravidão em 1841.

O quilombo mais famoso de Pelotas localizava-se na Serra dos Tapes, ficou conhecido como o Quilombo do Manuel Padeiro e foi extinto em 1848. Com o crescimento urbano, a partir de 1870, os quilombolas escondiam-se dentro do próprio espaço urbano. 

ARTESÃOS

Provavelmente as condições extremamente adversas estimularam a resistência coletiva e organizada dos negros em Pelotas. Só para se ter uma idéia, em 1880, 40 artesãos negros e livres criaram uma entidade de classe. Em 1882, foi criada a sociedade Deus, Fé e Caridade, uma confraria religiosa leiga organizada por negros libertos com o objetivo de libertar escravos por intermédio da compra e da alforria. Antes disso, os negros congregavam-se nas irmandades católicas Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Esta última fundou, em 1901, um asilo para crianças negras sustentado, durante anos, totalmente pela comunidade negra.

Em 1888 (ano da abolição), o orador do Centro Cooperador dos Fabricantes de Calçados era um artesão negro, uma prova do peso político dos negros na diretoria da entidade.

Já a entidade negra Feliz Esperança aceitava escravos como associados e contribuía para libertação destes. A Feliz Esperança era uma espécie de loteria particular que oferecia aulas noturnas e biblioteca para os seus sócios, durou quase 40 anos e auxiliou na organização dos operários da cidade.

Entre as sociedades recreativas e teatrais negras destacaram-se, ainda no final do século 19, a Recreio dos Operários e a Satélites do Progresso. Em 7 de setembro de 1896, nasceu a Banda Musical União Democrata que atuou ininterruptamente até 1977, parou por uns anos e, recentemente, retomou às atividades.

A REFERÊNCIA DA IMPRENSA NEGRA DO PAÍS

Iniciada ainda durante a escravidão, a organização dos negros em Pelotas teve o seu ápice nas duas primeiras décadas do século 20 por intermédio de iniciativas que tornaram-se referência nacional. Nesta época, as entidades negras proliferaram sob a forma de várias associações recreativas, promotoras de bailes, carnavalescas, esportivas, de representação política e de comunicação social (jornais).

Em 5 de maio de 1907, foi fundado o jornal A Alvorada, o mais duradouro jornal da imprensa negra no Brasil. O A Alvorada, que circulou até 1965, era um semanário com uma média de oito páginas. Na década de 40 do século 20, a tiragem semanal chegou a três mil exemplares. O jornal mantinha-se com assinaturas pagas, que garantiam a entrega domiciliar, e com a venda direta em pontos estratégicos da cidade, incluindo o Mercado Público, bancas de jornais e barbearias. O A Alvorada circulava ainda por vários municípios da região Sul do estado e também em Porto Alegre.

CLUBES SOCIAIS

Entre os clubes sociais negros mais significativos fundados no início do século passado destacam-se o Depois da Chuva (1916), o Chove Não Molha (1921), o Fica Aí Para Ir dizendo (1921), e o Quem Ri de Nós Tem Paixão (1921). Durante décadas, estes clubes sediaram incontáveis reuniões e atividades esportivas e sociais (bailes de debutantes, recepções de casamento, festas de aniversário) frequentadas exclusivamente pela população negra da cidade. Também durante anos circulou um comentário de que cada um destes clubes negros corresponderia a um segmento social (elite, classe média, trabalhadores). Uma análise mais criteriosa, no entanto, aponta que, pelo menos até há bem pouco tempo atrás, não havia em Pelotas uma elite negra nos moldes econômicos dominantes.

Aqueles considerados negros da elite eram na realidade trabalhadores incluídos na sociedade, assalariados, operários ou artesãos, moradores em modestas residências na periferia do centro da cidade ou em bairros populares. Neste sentido, a lenda apenas contribuiu para a desunião, ainda que festiva, dos negros. O Chove Não Molha e o Fica Aí Para Ir dizendo vão muito bem, obrigado e continuam em plena atividade.

FRENTE NEGRA

Já a década de 30 do século 20 colocou novamente os negros pelotenses em sintonia com a vanguarda nacional. Isso aconteceu em 1932 com a fundação da Frente Negra Pelotense, uma organização negra de caráter político voltada para a luta contra a discriminação racial e a busca da ascensão social dos negros, prioritariamente por intermédio da educação.

A Frente Negra Pelotense, que estava sintonizada com a Frente Negra Brasileira fundada em 16 de setembro de 1931, em São Paulo, atuou até 1935 e chegou a enviar representante para o I Congresso Afro-Brasileiro, realizado em Recife.

*Jornalista, especialista em Antropologia Social e mestranda em Educação (Universidade Federal de Pelotas).

Enviada por  Rubinei Silva Machado para a lista CEDEFES.

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