A cartografia insurreccional anti-esclavagista e essencialmente angolana

Simão Souindoula*

Verdadeiro tijolo de 1033 páginas, Tarvísio José Martins acaba de reeditar, no Brasil, a obra “Quilombo do Campo Grande. A História de Minas que se devolve ao povo”, numa versão revista, publicada recentemente pela editora Santa Clara, em Contagem. O estudo do tenaz advogado-historiador, de vénia, meio enciclopédica, se estala numa quinzena de capítulos, nos quais ele sublinha, nomeadamente, com força de detalhes, baseado em fontes de arquivos, mas igualmente bibliográficas, a importância da região depois da descoberta de jazigos de ouro, em 1692, e a grande correria que se seguiu – visão mercantilista obriga! – acompanhada da indispensável colocação de milhares de escravos africanos.

O século XVIII será, portanto, o grande século de Minas Gerais, com um processo de povoamento maioritariamente bantu. Estes constituirão 60 por cento da população da região. Os arquivos da Câmara Vila Rica registaram, entre 1718 e 1720, a chegada de benguelas, congos, angolas, moçambiques e monjolos. Na realidade, donos da Colónia de Angola, os portugueses introduzirão uma mão-de-obra forçada para o Brasil, processo que se intensifica à medida do desenvolvimento da colonização do imenso território. É assim que quase a metade dos 40.000 cativos desembarcados no Rio de Janeiro, entre 1731 e 1735, são angolas. O autor estima, baseando-se em várias fontes, que entre os séculos XVIII e XIX, mais de um milhão de angolas que foram introduzidos no Brasil. Isso terá diversas consequências na sociedade. Os relatórios de campanhas militares indicam a forte implicação dos atu nas sublevações.

Com efeito, o primeiro rebelde apanhado no Quilombo de Campo Grande, em 16 de Setembro de 1759, é António Angola. E um dos prisioneiros ouvidos, depois do assalto final em Sapucai, no dia 22 de Dezembro de 1759, é Pedro, da nação Angola. Os arquivos matrimoniais em Vila Rica do Ouro Preto (?), em 1772, são, a este respeito, eloquentes. Um dos documentos que se encontram aí indica que os felizes casados têm por nomes e origens, Miguel, de “nação” angola, e Maria, de “nação” benguela.

Os originários do Ndongo serão, muitas vezes, intrometidos em projectos de sedição. Em 1720, um dos suspeitos capturados reivindicou, nada mais, nada menos, a sua qualidade de Rei de Angola. Um dos territórios insurreccionais, durante muito tempo, inexpugnável, será o do célebre Calunga, organizado no noroeste de Goiás, e que será atacado entre 1743 e 1746. Os revoltosos edificarão fortificações constituídas de vedações, trincheiras, de abismos e de picadas, os palanques, do bantu, kibaka ou quipaca. Este sistema de protecção foi aplicado nos antigos maquis situados, hoje, no município de Arcos. Eram designados Candongas, Cazanga, Cafunga e Loanda. Aplicar-se-ão, igualmente, nomes de origem bantu a fazendas, provavelmente pertencentes a antigos escravos alforriados. Assim, um mapa de 1760, assinala a quinta de Mutuca. O peso demográfico dos Bantu na zona suscitara a emergência e a cristalização do folclore Congado do Oeste Mineiro e de antropónimos, assim como topónimos tais como Congonhas, São José da Barra Longa e São José da Barra dos Mandembos, Zundu, Catinga ou Caxinga, Samambaia, Angico, Marimbondo, Dumba, Muzambo, Cambina, Cabinda, Cafundo, Mumbuca, Landu, Caconde, Mocambo, Camanducaia, Caturra, Cachambu ou Caxambu, do bantu, kazangu, membranophono.

Um dos grandes espaços, procurando escapar-se do turquês esclavagista, atestado em 1759, é o Quilombo Nova Angola, Casa 90, conhecido também como Morro de Angola ou Nação Angola. Como consequência, reencontra-se hoje o topónimo Angola ou Angolinha em várias localidades, sobretudo no sudeste do Estado de Minas Gerais, em Carmo do Rio Claro, Alpinopolis, São Sebastião do Paraíso, Monte Santo de Minas, Itamoji, Muzambinho, etc. O Google Earth mostra bastante claramente.

Postos na exploração de jazigos, em condições atrozmente primitivas, os escavadores niger engajarão, invariavelmente, até à segunda metade do século XIX, centenas de amotinações, provocando terríveis campanhas de punição. Devia garantir-se, a todo preço, a exploração de jazigos auríferos e diamantíferos. Além dessas acções repressivas, os mercantilistas organizarão a administração deste precioso território, no plano militar, civil e religioso. Acordarão uma atenção particular ao seu desencravamento, abrindo ligações em direcção a, entre outros destinos, Rio de Janeiro, Bahia e Goiás. Tolerarão, no seio da Igreja, a constituição das suspeitas Confrarias dos Pretos e dos Mestiços. Mas a Capitania será obrigada a gerir uma camada social, de raiz subterrânea, constituída de negras comerciantes, proprietárias de quitandas, ou muitas vezes ambulantes, no centro de todos os tráficos. Este movimento de contrabando, que permitia abastecer, em produtos alimentares, os baluartes rebeldes, incluía armas de fogo, a pólvora e o chumbo, que chegavam finalmente aos rebeldes calhambolas.

Nova terra de migrações bantu, o complexo aurífero tornara-se uma área de marcação civilizacional com o uso da língua de Angola ou de Benguela, as suas danças frenéticas e lascivas para evitar o banzo, suicidário, as suas vissungos, através das quais se incita o moleque a chorar e a invocar gongo, perante a sua vida de desgraça e a deixar Quissamba para ir a Cacunda. Tornados meio cristãos, os negros-do-mato continuarão a crer, mais que nunca, a Azambi, Nzambe, Nzame ou Azambe e a rezar Ave-Maria, seguido de Angananzambe-opungo, aio! E calunga ki tom’ossema E calunga ki tom’ Azambi, aio!

O Rei Ambrósio, líder federador das “terras libertas” de Campo Grande, que resistiu durante une vintena de anos, teria dito aos seus algozes, antes de ser barbaramente executado, provavelmente em 1759, que ele era Rei e que os soberanos no seu país de origem eram investidos sob o poder de Zambi. E, por isso, não tinha medo de morrer. Preferia, portanto, a Imortalidade ao colar esclavagista.

A importância de “Quilombo do Campo Grande. A História de Minas que se devolve ao povo” reside no facto de apresentar a evolução dos elombe, no contexto de uma região vital para economia, ferozmente mercantilista, da imensa colónia e da modesta metrópole.

A implacável aferrolhagem administrativa e securitária da zona, sensível, e a cruel repressão que seguia não impediram a constituição imparável de dezenas de ngumbe.

Em suma, esta corajosa acção dos Bantu, deportados no mortífero penitenciário mineiro brasileiro, contribuiu finalmente para a abolição da escravidão e confirmou que a luta pela liberdade era mais forte que a perpetuação de um sistema económico e social, absolutamente inumano.

* Membro do Comité Científico Internacional do Projecto da UNESCO “A Rota dos Escravos” 

http://jornaldeangola.sapo.ao/19/46/a_cartografia_insurreccional_anti-esclavagista_e_essencialmente_angolana

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