Finda a tarde do dia 13 de julho de 2011, RS-040, Km 60, município de Capivari, RS. Os Guarani Mbya, que vivem às margens daquela rodovia, recebem o corpo sem vida deAmilta, de apenas quatro anos de idade. A pequena Mbya não resistiu a uma pneumonia e faleceu às 11 horas da manhã do dia 12. O relato é de Roberto Antonio Liebgott, vice-Presidente do Cimi e integrante da Equipe Porto Alegre, 15-07-2011.
Os pais de Amilta, Rafael e Yolanda, não tendo uma Opy (casa de reza) para realizar os rituais sagrados do povo, levaram o corpo da filha para ser velado em um barraco improvisado, coberto com lona preta. Lá passaram toda a noite. O frio e a chuva foram companhias permanentes. As lonas, em estado precário, deixavam passar o vento e alguns pingos de chuva.
Não havia no acampamento velas e nem pety (fumo) para o petynguá (cachimbo) que são fundamentais em rituais fúnebres. Na manhã do dia 14, um carro funerário deveria fazer o translado do corpo da menina para a aldeia da Estiva, área do povo Guarani, com apenas sete hectares, que apesar de diminuta possui um cemitério.
Mas como fazer o enterro se os rituais não foram realizados? A comunidade decidiu que o enterro somente aconteceria no dia seguinte. Através da doação de pessoas solidárias, o fumo e as velas foram levados até o acampamento e a comunidade pôde iniciar os rituais para a pequena Amilta.
Vivem no acampamento Capivari, à beira da rodovia, 10 famílias do povo Guarani Mbya. Não dispõem de água potável, energia elétrica, muito menos saneamento básico. Raramente recebem visita de equipes de saúde da Sesai (Secretaria Especial de Atenção à Saúde Indígena). Alegam falta de recursos e de combustível para prestar atendimento à comunidade. O acampamento situa-se a menos de 80 Km de Porto Alegre (capital do estado onde está localizada a sede da Sesai). Apesar da facilidade de acesso e geograficamente bem localizada, a comunidade é totalmente esquecido pelos órgãos de assistência.
Terra reivindicada, mas não demarcada
O cacique da comunidade, Sr. Augusto, mora em Capivari há mais de 25 anos e afirma que a Funai conhece a história do acampamento e tem conhecimento das reivindicações da comunidade, mas nunca fez nada, além de promessas. Com uma fisionomia abatida, disse não acreditar mais nos juruá (brancos), porque eles apenas lançam as palavras, mas não cumprem com aquilo que prometem.
A terra reivindicada já foi, por diversas vezes, objeto de estudos de antropólogos que comprovaram a tradicionalidade da ocupação Guarani na região. A Funai, ciente destes estudos, nunca realizou os encaminhamentos devidos, porque do outro lado da cerca está situada uma grande fazenda onde se cria gado e se cultiva arroz. Com essa atitude, os representantes do órgão indigenista continuam a manter na indigência as famílias Guarani.
No Brasil, há décadas se denuncia a realidade de abandono dos povos indígenas e se reivindica urgência nas demarcações de terra, para assegurar, assim, a saúde, a dignidade, a sobrevivência destas populações. Mas apenas quando a situação se agrava, beirando o caos, é que o Poder Público se volta para as comunidades afetadas, com apenas medidas emergenciais que nunca se estabelecem como verdadeiras políticas duradouras em defesa da vida dos povos indígenas. Não há uma atuação planejada e contínua, capaz de dar solução aos graves problemas enfrentados pelos indígenas que vivem nos mais diversos estados brasileiros.
Acampamentos indígenas à beira de BRs
É cada vez mais evidente, no sul do país, a realidade de abandono e de omissão do Poder Público, e a situação das comunidades agrava-se a cada ano. A imagem de famílias indígenas acampadas à beira de rodovias já se tornou comum, e parece não surpreender. Vale ressaltar que existem no Rio Grande do Sul gerações inteiras de Guarani que não conheceram outra realidade a não ser a vida em acampamentos “provisórios”. Registra-se, por exemplo, a existência de acampamentos que já existem há três décadas, sem que a Funai e os órgãos responsáveis tomem providências para resolver definitivamente o problema: a efetiva demarcação das terras tradicionais reivindicadas por este povo.
A situação vivida pelos Guarani no estado do Rio Grande do Sul, assemelha-se à passagem bíblica da luta de Davi contra Golias. De um lado, um povo indígena que tem o direito, assegurado no texto constitucional, de viver em suas terras, cuja tradicionalidade é incontestável e, de outro, os supostos “proprietários” dessas mesmas terras, representantes de um poder econômico privilegiado, o do agronegócio. Neste contexto, a posição do Poder Público tem sido a de proteger os interesses daqueles que são considerados “produtivos” e desejáveis para o desenvolvimento do estado e do país.
E a estratégia principal, colocada em curso há décadas, tem sido o descaso para com as reivindicações indígenas, a morosidade nos procedimentos de identificação e de demarcação de terras, a substituição de políticas de atenção à vida por ações emergências e assistencialistas. O que se verifica, nestas circunstâncias, é que o texto constitucional e os direitos nele resguardados ficam reféns de jogos de poder político e de interesses que ecoam nas esferas decisórias do governo federal.
O resultado disso é a inaceitável morte de crianças como Amilta, uma entre tantas outras vidas ceifadas prematuramente, uma entre tantas outras vítimas da omissão do Estado, da inoperância da Funai e do desrespeito aos direitos indígenas.
As responsabilidades e a omissão em números
A responsabilidade pelo luto vivido pelas famílias Guarani que choram a morte de Amilta, e pela violência cotidiana imposta a este povo, é do governo federal – na figura de sua representante maior, a presidenta Dilma Rousseff e do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que responde pelo ministério ao qual a Fundação Nacional do Índio está subordinada. Não há, por parte do governo, qualquer manifestação de compromisso concreto com os Guarani e nem qualquer tipo de ação que possa solucionar os graves problemas vividos no seu dia a dia. Aliás, o que se verifica é um injustificável descuido para com a causa indígena, e um exemplo concreto e incontestável são os dados da execução do Orçamento Geral da União relativos ao ano de 2011.
Examinando os dados disponíveis no portal do Senado Federal, pode-se verificar que não procede a alegação de falta de recursos para a demarcação das terras indígenas, uma vez que o Congresso Nacional autorizou a utilização de mais de R$ 21 milhões, dos quais o governo gastou menos de 28% até o momento. Sem falar em itens diretamente implicados com a proteção e promoção da saúde indígena, nos quais também se verifica uma execução orçamentária incompatível com o previsto. Na ação Proteção Social dos Povos Indígenas, o governo aplicou até o momento apenas 11,4% do montante autorizado; no item Estruturação de Unidades de Saúde foram aplicados irrisórios 0,14% dos recursos disponíveis; no item Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Indígenas, os recursos utilizados não chegam a 1% do previsto (0,82%); no item Promoção, Vigilância, Proteção e Recuperação da Saúde Indígena, somente 9,84% foram liquidados e, pior ainda, no item Saneamento Básico, nenhum centavo foi gasto até o momento.
Mais uma vez a objetividade dos dados quantitativos – que mostram o contingenciamento dos já escassos recursos destinados aos povos indígenas, não deixam margem a dúvidas: o governo coloca em curso uma política indigenista deficitária, que não parece ser resultado da incompetência de quem realiza a gestão, e sim resultado de uma intencional e deliberada política de privilegiar setores antiindígenas, especialmente aqueles ligados a obras desenvolvimentistas.
A cruel realidade vivida pelos Guarani, no Rio Grande do Sul, está diretamente relacionada à não demarcação de seus territórios, agravada pelo fato de que sequer dispõem de pequenas porções de terra, como ocorre com povos de outras regiões do Brasil. Os Guarani são submetidos à desumana condição de acampados, tornando-se vítimas de doenças, com alto índice de mortalidade infantil, como também sofrem ameaças e violências diversas.
Os acampamentos, as lonas, a falta de água potável, a falta de saneamento básico, a falta de vontade política e de coragem para garantir os direitos destes povos, marcam a atuação do governo brasileiro. Só podemos caracterizar este quadro, como uma prática de genocídio.
Amilta morreu sem ter pisado sua terra. As terras do povo Guarani e de outros povos indígenas país afora, estão delimitadas por cercas, espaço de vida para o gado, para plantações de transgênicos, para plantações de cana-açúcar que enriquecem alguns poucos “heróis nacionais”.
Em seus quatro anos, a pequena Mbya experimentou a escassez de alimentos, o frio das noites debaixo de lonas pretas, pisou a terra fria e úmida da beira da estrada, muitas vezes alagada pelas chuvas. Isso foi o que esteve ao seu alcance, em sua curta vida. Que a morte dessa pequena Kuñai (menina) Guarani não seja apenas mais um número, na estatística da mortalidade infantil indígena. Que em memória dela, e de tantas outras crianças, sejam levados adiante os procedimentos de demarcação que podem assegurar uma terra mãe acolhedora para resguardar a vida deste Grande Povo!
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