Direitos Humanos: Onda de estupros assusta o Congo

Prática usada como arma de guerra deixa EUA perturbados. Nações Unidas querem investigar crimes contra a humanidade

Rodrigo Craveiro

Brasília – A República Democrática do Congo é conhecida como “o pior lugar da Terra para as mulheres”. Entre 11 e 13 de junho, 121 delas foram estupradas por homens leais ao coronel Emmanuel Nsengiyumva (um congolês que aderiu à revolução no início de 2010), na província de Kivu do Sul. No país, situado no coração da África, em média quatro sofrem violência sexual a cada cinco minutos. Os crimes são cometidos pelos homens de Nsengiyumva, por rebeldes hutus das Forças Democráticas de Libertação de Ruanda (FLDR) e pelas milícias Mai Mai. Em agosto de 2010, os combatentes invadiram 13 aldeias e estupraram 387 civis, incluindo 300 mulheres, 23 homens, 55 meninas e nove meninos. Também saquearam 923 casas e 42 comércios, e sequestraram 116 moradores. Em relatório divulgado ontem, a Organização das Nações Unidas (ONU) classifica o incidente do ano passado de “crimes contra a humanidade”. “Devido ao fato de que esses ataques foram planejados e empreendidos de forma sistemática e seletiva, os atropelos cometidos poderão constituir crimes contra a humanidade e crimes de guerra”, assinala o informe do Birô Conjunto das Nações Unidas para os Direitos Humanos (BCNUDH).

ABUSOS – O Departamento de Estado norte-americano revelou-se ontem “profundamente perturbado” pelo estupro em massa no país. “Condenamos fortemente esses severos abusos”, disse a porta-voz Victoria Nuland. O fenômeno não é recente. Tia Palermo – professora de medicina preventiva da Universidade do Estado de Nova York, Stony Brook – analisou dados do governo da República Democrática do Congo e constatou que 420 mil mulheres foram violentadas entre 2006 e 2007, no período exato de um ano. “Isso se traduz em aproximadamente 1.152 estupros diários, ou 48 por hora. Quatro mulheres são vitimadas a cada cinco minutos”, afirmou a especialista, coautora da pesquisa publicada em maio pela revista científica American Journal of Public Health. “Outro estudo mostra que a polícia e os soldados do Exército congolês são os principais agressores, seguidos pelas FLDR, por grupos rebeldes apoiados por Ruanda e pelos Mai Mai. Cerca de 3 milhões de mulheres entre 15 e 49 anos já foram estupradas. “O fenômeno está disseminado”, reconhece.

ARMA DE GUERRA – Segundo Tia, o estupro é aplicado no país como uma punição social. “Trata-se um castigo imposto à população, ante a percepção de que ela não respeita as forças do governo nem as milícias”, explica. Mas a violência sexual também costuma ter outras motivações. “Ela é usada como arma de guerra, para aterrorizar comunidades, e como ‘espólio de guerra’, muitas vezes sob a aprovação tácita dos comandantes”, observa. A médica defende a criação de uma política comum focada na reforma das instituições judiciais e de segurança de Kinshasa, além do envio – por parte dos Estados Unidos – de um emissário especial para a região dos Grandes Lagos, com a missão de apoiar as eleições congolesas em novembro. Para ela, o fim da impunidade é condição para pôr fim às agressões sexuais. “O tenente-coronel Kibibi Mutware foi condenado a 20 anos de prisão por ordenar às suas tropas que estuprassem, torturassem e saqueassem os habitantes de Fizi e de Kivu do Sul no réveillon. Isso é um passo na direção certa”, admite.

Porta-voz do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (Ocha), Elisabeth Byrs disse que a ONU exigiu de Kinshasa a investigação e a detenção imediata dos agressores. “A violência sexual, usada como arma de guerra, é insuportável e inaceitável”, comenta. Byrs acredita que a solução do problema requer a eliminação de grupos armados e uma atitude firme da Justiça. “Nos últimos meses, temos visto algum progresso no combate à impunidade. Vários indivíduos, incluindo membros do Exército, foram julgados e condenados por crimes hediondos contra civis, incluindo estupros cometidos em Kivu do Sul. Há julgamentos em andamento na região de Walikale, em Kivu do Norte”, comenta. No entanto, a porta-voz cobra uma ação ainda mais firme do governo. Caso contrário, as mulheres seguirão vistas como alvo fácil de uma guerra sem qualquer escrúpulo.

PALAVRA DE ESPECIALISTA

Pelo fim da impunidade – Tia Palermo – Médica

“Pôr um fim à impunidade em torno do estupro é um passo crítico para encerrar a violência sexual na República Democrática do Congo. As instituições e o sistema judicial do país são fracos. É preciso notar que homens e rapazes também são alvos de violência sexual.”

RELATOS DO TERROR

Lumo Furaha

“Mais de 50 homens levaram a mim e a outra mulher para o mato, onde fomos estupradas seguidamente. Depois, eles nos puxaram como se fôssemos cabras pela estrada principal e nos abandonaram. Fui trazida para o hospital de Goma e submetida a nove cirurgias.”

Eugenie, 27 anos

“Fui estuprada por quatro soldados. Eles me estupraram durante a noite inteira, e não se importavam se eu estava com dor. Quando acordei, havia muito sangue, e a sala cheirava a cerveja. Decidi fugir. Não há como viver em um país que foi esquecido por Deus e onde o demônio governa.”

Lucienne M’Maroyi, 24 anos

“Eles vieram com lanternas. Eu tinha meu bebê nos braços. Tiraram-no de mim e o jogaram para o lado. Foi uma bênção que não tenham estuprado minhas filhas. Quando chegamos ao mato, me estupraram diante de meu irmão. Deram a lanterna para ele segurar.”

ESTADO DE MINAS, 7-7-2011.

 

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