Belo Monte e o caos fundiário

Quando foi criado, 20 anos atrás, Brasil Novo recebeu o nome inspirado nos anseios de mudança que se desenhavam para a região amazônica. De uma pequena vila, uma agropólis do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a região foi convertida em município, somando pedaços de cidades vizinhas, no sudoeste do Pará. Hoje, duas décadas depois, Brasil Novo – município vizinho de Belo Monte – não passa de uma caricatura mal feita do projeto que a inspirou, um retrato de velhas mazelas das quais o Brasil já deveria ter se livrado há muito tempo. A reportagem é de André Borges e publicada pelo jornal Valor, 20-06-2011.

De seu território de 6,4 mil quilômetros quadrados, nem mil têm documentação em ordem. O caos fundiário chega a tal ponto que a própria prefeita interina do município, Fátima Rocha (PTB), admite que nem mesmo ela tem a escritura de sua terra. “A situação fundiária aqui é esse absurdo, eu mesma tenho terrenos que não têm nenhum documento. Nós queremos resolver isso de uma vez por todas”, diz Fátima.

Moradora da região há 34 anos, a prefeita de origem baiana conta que chegou ao Pará com a leva de imigrantes insuflada pelo antigo slogan do governo federal, que na década de 70 prometia a entrega de “Terra sem homens, para homens sem terra”.

Nas beiras da rodovia Transamazônica, pequenos vilarejos foram se formando, com a promessa de um dia criar um imenso cordão de integração e desenvolvimento na Amazônia. “Naquela época, a ordem do governo era desmatar. Você ganhava um terreno de cem metros, desde que desmatasse 80 metros. Viemos para cá sob essa condição. Hoje não podemos mais fazer isso e temos que cumprir a legislação ambiental. Mas também não podemos ser simplesmente abandonados”, diz a prefeita.

O desmatamento já varreu cerca de 40% das terras de Brasil Novo. Para chegar à cidade, só por meio da Transamazônica, estrada que continua a ser uma sequência de terra e buracos, com algum asfalto em pequenos trechos. Há 3 mil quilômetros de obras de pavimentação por fazer no município, mas a prefeitura não tem recursos nem equipamentos para isso. Para a segurança de toda Brasil Novo, a polícia local conta com dois carros, nenhum deles com tração, item básico numa região em que o barro simplesmente para tudo em época de chuva.

Em 2008, o governo federal informou que o Sistema de Proteção da Amazônia (Sipam), vinculado ao Ministério da Defesa, daria uma força para monitorar a situação ambiental da região. Uma antena para transmissão de dados seria instalada na cidade. “Fizemos uma fundação de concreto para receber o equipamento. Até hoje essa base está lá, esperando. A antena nunca apareceu”, diz Fernando Rocca de Araújo, que acumula os cargos de secretário da agricultura, mineração, meio ambiente e turismo de Brasil Novo.

Até o dia 30 deste mês, a prefeitura da cidade teria de estar com o seu cadastro ambiental rural concluído, para acelerar a regularização de terras. Há cerca de 2 mil propriedades rurais para serem cadastradas, mas até agora nenhum cadastro foi feito porque, segundo a prefeita Fátima Rocha, o Incra não liberou o sistema de cadastramento. Quando o governo lançou os programas Arco de Fogo e o Arco Verde- ações que têm a missão de desenvolver novos modelos de exploração econômica na região, além de combater o aumento de desmatamento ilegal -, fez um alvoroço na região, diz Fátima. “Depois veio o programa Terra Legal, com a promessa de que iria corrigir os erros do passado. A verdade é que está tudo parado. O Incra também não tem ajudado. Nossa realidade é triste, vivemos numa área esquecida pelo poder público”, diz a prefeita.

Fátima Rocha, que também representa o poder público, estará prefeita de Brasil Novo até o fim deste mês, quando então voltará para a presidência da Câmara Municipal. Os problemas de Brasil Novo, afinal, não se limitam a conflitos fundiários e ambientais. Em 2009, a liderança da Câmara teve de assumir a prefeitura, porque o prefeito e o vice-prefeito da cidade, José Carlos Caetano (PR) e Osias Sperotto (PTB), respectivamente, foram cassados pela Justiça Eleitoral, acusados de compra ilegal de votos. Só neste mês é que uma nova eleição foi realizada, na qual a maioria dos 19 mil habitantes da cidade elegeu o candidato Alexandre Lunelli (PT) para tocar o resto do mandato, até o fim do ano que vem.

A dura realidade fundiária e ambiental de Brasil Novo se alastra por todo o Pará, o segundo maior Estado do país, que nas últimas semanas foi cenário de uma vários assassinatos de ambientalistas e líderes extrativistas. Para tentar dar um rumo à situação, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) informou que foram criados 12 grupos de trabalho para acompanhar projetos socioambientais. No plano ideal, o governo quer ter nas mãos um levantamento ocupacional detalhado da região e um mapeamento georreferenciado das terras ocupadas e públicas. Com isso, quer evitar o aumento de grilagem de terras e definir áreas para novos assentamentos. O Ministério da Justiça informou que colocou a Polícia Federal para investigar os conflitos e encontrar seus autores.

Em meio ao seu dilema fundiário, a população do Pará terá de decidir, em dezembro, se o Pará será mesmo dividido em três, o que criaria os novos Estados de Tapajós eCarajás. O plebiscito, conforme previsto pelo Tribunal Superior Eleitoral, vai ouvir a opinião de mais de 3 milhões de eleitores paraenses. Especialistas que já se debruçaram sobre a proposta alertam que os novos Estados nasceriam gerando mais dívidas que receita, ou seja, teriam de se apoiar em verba federal para vingar.

Apesar das dificuldades, a situação está mudando, diz Shirley Anny Abreu do Nascimento, coordenadora do programa Terra Legal, do MDA. “É preciso reconhecer que passamos quase 30 anos sem um trabalho de regularização fundiária massiva na região amazônica”, comenta ela. “Durante todo esse período, vivemos a lógica da colonização, que criou esse caos fundiário que temos hoje.”

 

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