Delegacia especializada para intolerância

O deputado Átila Nunes, autor da proposta que cria a Decradi no Rio de Janeiro. Foto: Alerj
O deputado Átila Nunes, autor da proposta que cria a Decradi no Rio de Janeiro. Foto: Alerj

 

Por Thiago Ansel

Por 45 votos a dois, a Assembléia Legislativa do Rio (Alerj) aprovou, no último dia 22, a proposta que institui a criação da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi-RJ). A decisão transforma em lei um projeto que antes havia sido vetado pelo governador Sérgio Cabral. A nova especializada do Rio – que já existe em São Paulo desde 2006 – tem entre suas funções registrar, investigar, abrir inquéritos e cuidar de outros procedimentos policiais em casos de intolerância e discriminação. A Decradi também vai colocar à disposição uma linha 0800 para denúncias destes crimes.

O autor da proposta, deputado Átila Nunes (PSL), afirmou que a grande incidência de delitos de intolerância no Rio foi o que motivou a criação da Decradi-RJ. “Sobretudo, os casos de intolerância religiosa no estado atingiram índices alarmantes nos últimos três anos. Os ataques verbais tornaram-se ataques físicos. Os crimes de racismo continuam a ser denunciados. Outros tipos de intolerância vêm surgindo: contra os obesos, o bulling e o cyberbulling, por exemplo”, explica Nunes.

Nunes conta ainda que mesmo diante de tamanha freqüência de crimes de intolerância no Rio, a Decradi só foi instituída no estado cinco anos depois de ter sido criada em São Paulo, por conta de entraves políticos. “Esse projeto foi elaborado há quatro anos e tramitou até hoje, em razão da reação contrária dos deputados evangélicos da Alerj, que repudiam a idéia de uma delegacia que venha punir os fanáticos das seitas eletrônicas que perseguem os seguidores dos cultos afro brasileiros. Tanto é que muitos destes políticos se abstiveram”, revelou o deputado.

Intolerância religiosa

Segundo o relatório da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) enviado à ONU, as autoridades e parlamentares mostram-se inábeis para lidar com o problema. Sobretudo, porque os neopentecostalistas correspondem a uma fatia expressiva do eleitorado. O documento frisa ainda o perigo de institucionalização da discriminação.

A jornalista Rosiane Rodrigues sentiu na pele a intolerância religiosa vinda de uma instituição oficial. Em 2007, a justiça lhe tirou a guarda de um dos filhos, simplesmente, por ela ser candomblecista. “Perdi, temporariamente, a guarda do meu filho caçula por que a III Vara Família de Jacarepaguá entendeu que por eu ter ‘imagens de entidades do candomblé em todos os cômodos da casa’ não tinha condições morais de criá-lo”, conta Rosiane. Para conseguir de volta a guarda de seu filho, a jornalista ainda teve de passar por exames psiquiátricos. “Fui submetida a uma perícia psiquiátrica para comprovar que apesar de candomblecista eu era uma boa mãe e sem nenhuma doença mental”, completa a jornalista.

O coordenador da Rede de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, José Marmo, confirma que os seguidores de religiões de matriz africana são as vítimas preferenciais de violências que vão desde agressões verbais até discriminação no interior de instituições e espaços públicos. “A intolerância religiosa no Rio de Janeiro vem aumentando e atinge mais o povo de santo. Ela se traduz nas agressões físicas e verbais, na depredação dos terreiros, inclusive com a quebra de objetos rituais. Pode também ser percebida nos espaços públicos, como escolas, hospitais e também na mídia como podemos verificar em vários programas de televisão, jornais e revistas que reforçam o estigma e preconceito em relação aos seguidores das religiões afro-brasileiras”, analisa Marmo. “Penso que todas as delegacias deveriam estar preparadas para lidar com os crimes de intolerância, e garantir os direitos de todos os cidadãos e cidadãs”, concluí o ativista pela liberdade religiosa.

Agressões homofóbicas

No Rio, os crimes homofóbicos também são freqüentes. Tanto que, somente entre 2009 e 2010, a soma de todos os tipos de agressão contra homossexuais registradas é de um total de 776. Segundo o professor do departamento de Medicina Social da UERJ e coordenador geral do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (Clam), Sérgio Carrara, a criação de uma delegacia especializada em crimes de intolerância não resolve o problema dos preconceitos reproduzidos por policiais que atuam no atendimento às vítimas e na investigação dos crimes. “A idéia de que, nos delitos contra homossexuais, a vítima contribui para o crime não se extinguirá com o surgimento desta nova delegacia. O importante é a transformação do conteúdo dos currículos das academias de polícia e dos cursos de direito, para que tenhamos melhores investigadores e juízes”, sugere Carrara. O coordenador do Clam ilustra o que diz citando o exemplo da criação das Delegacias de Atendimento às Mulheres (Deams): “Com as Deams também não desfez por si só a idéia de que a violência contra a mulher é espécie de crime de menor importância ou ‘crime de bagatela’, como dizem os operadores do direito”, observa.

Carrara é mais um dos que argumentam que uma delegacia especializada não resolve o problema do preconceito que vai desde os policiais que atendem a vítima, passando pelos que investigam crimes e chega até os magistrados que julgam os casos. “Criando-se um dispositivo especial corre-se o risco de deixar de sensibilizar todas as delegacias para a importância de se coibir tais discriminações”, adverte o estudioso.

Racismo

Na última segunda feira, num quadro de perguntas e respostas do programa “CQC” da Band, o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) foi indagado pela cantora Preta Gil sobre o que faria se um de seus filhos resolvesse namorar uma mulher negra. “Preta, não vou discutir promiscuidade com quer que seja. Eu não corro esse risco, e meus filhos foram muito bem educados e não viveram em um ambiente como, lamentavelmente, é o teu”, respondeu o político. A cantora decidiu processá-lo.

Segundo o ex-ouvidor da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e advogado especialista em relações raciais, Humberto Adami, muitos afirmam que raça não existe, mas, para efeito de discriminação e do ponto de vista jurídico, ela é uma realidade. “O racismo exclui as pessoas, além de proporcionar os pequenos insultos diários que acabam hierarquizando as pessoas com traços diferentes”, argumenta Adami.

Desde 1998, com a nova Constituição Federal, o racismo passou a ser crime inafiançável e imprescritível. Ainda segundo o advogado Humberto Adami, a idéia da Decradi é quase tão antiga quanto o advento da responsabilização criminal por racismo no Brasil. O advogado defende, entretanto, que quando existem injúrias raciais, como no caso de Preta Gil, o acusado deve sentir no bolso a pena: “Prefiro pensar que o melhor caminho é que a repressão venha acompanhada de um caráter econômico. Nos casos de ofensa racial, quem as profere deve ser penalizado financeiramente. Creio que isso faz mais efeito”, afirma.

Hoje, as agressões motivadas por racismo lideram os casos da Decradi de São Paulo, correspondendo a 29,91% dos registros. Já no Rio, segundo o deputado Átila Nunes, denúncias de racismo são registradas a cada 15 dias nas delegacias. Em todo o país, apenas entre os meses de janeiro e março de 2011, foram 424 as denúncias de racismo exclusivamente na iInternet. Este ano, instituído como Ano Internacional dos Afro-descendentes pela ONU, já começa com sinais de que o racismo e as outras faces da intolerância apresentam-se de várias formas, demandando múltiplas estratégias de enfretamento.

http://www.observatoriodefavelas.org.br/observatoriodefavelas/noticias/mostraNoticia.php?Section=5&id_content=1020

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