Política indigenista só no papel

Por Lilian Milena, da Agência Dinheiro Vivo

A colonização das Américas foi responsável por uma das grandes tragédias demográficas do planeta. Só no Brasil, do século XVI até 1960 a população indígena foi reduzida de 6 milhões para 70 mil. Hoje, segundo dados da FUNAI, vivem no país apenas 460 mil índios espalhados em 225 povos e representando 0,25% da população brasileira.

Em entrevista, concedida ao Brasilianas.org, Paulo Santilli, antropólogo que participou do grupo de trabalho responsável pela demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, responde que a aplicação e o reconhecimento de direitos territoriais e campanhas de vacinação foram fundamentais para reverter à curva demográfica declinante das populações originárias.

A saída para a melhoria de vida de muitas comunidades brasileiras é simplesmente através da universalização de políticas públicas já existentes. O pesquisador atenta para a influência de empresas mineradoras nas discussões envolvendo políticas desses povos.

Em 2003 o governo federal instituiu a Comissão Nacional de Políticas Indigenistas, um órgão consultivo formado por representantes de povos indígenas e de órgãos governamentais. O problema, explica Santilli, é que o representante mais graduado da CNPI é justamente o Ministério de Minas e Energia, que comanda a cadeira da secretaria geral da comissão.

Hoje, os representantes indígenas pleiteiam a transformação da comissão em Conselho Nacional de Políticas Indigenistas, com poder deliberativo e alternância da presidência entre indígenas e governo.

Acompanhe a íntegra da entrevista.

A demarcação de terras é importante para reduzir os problemas sociais ocorridos nas comunidades indígenas?

Sim, tanto em terras indígenas como não indígenas. Em áreas do país densamente povoadas por índios, quando há regularização o que se observa no entorno é valorização das terras privadas dado à segurança jurídica dessas escrituras.

Para os índios a terra é suporte para sua organização social – muitos dos direitos indígenas podem ser efetivados pela demarcação de terras, por regularizar a liberdade e autonomia sobre seus territórios de origem.

Existem em alguns setores da sociedade preocupações de que a homologação de terras indígenas em todo o país possa prejudicar a soberania do Brasil e que muitas comunidades de índios sejam influenciadas por grupos estrangeiros. Isso ocorre?

Isso é completamente infundado, porque ninguém tem poder de fora, não mais do que em outras regiões do país. Por exemplo, se andarmos pelas grandes cidades veremos a influência estrangeira via indústria, comércio, bancos e grifes. Então, não há porque achar que em terras indígenas e com determinados povos essa influência seja maior do que no restante do país. Segundo, os povos indígenas estão espalhados pelo país em comunidades populacionais pequenas.

Mas, muitas terras indígenas são ricas em recursos naturais, e sabemos de casos de influência, estrangeira a exemplo do que ocorreu em Roraima, rica em diamantes.

No caso de Roraima, onde trabalhei por muito tempo, havia um garimpo fora de qualquer controle e feito sob muita violência – em todos os sentidos, tanto de epidemias e doenças, como de prostituição e violência física. Era um garimpo que extraía outro e diamantes que eram inteiramente contrabandeados para fora do país. Não tínhamos controle sobre a violência que era gerada na região, e destruição ambiental. O ouro e os diamantes eram contrabandeados para fora do país em pequenos aviões.

Até que ano trabalhou de perto em Roraima? Até hoje isso acontece?

Trabalho até hoje, comecei em 1984. Isso terminou, em meados de 1990, quando o Ministério Público Federal instaurou uma ação amparada na ilegalidade do garimpo em terras indígenas e com isso coibiu e parou o garimpo – que era muito antigo, mas que teve seu boom de ouro no final dos anos 1980, quando se descobriram grandes jazidas nas terras Ianomâmi, vizinha da Raposa Serra do Sol.

Até então, essa ação era reprimida de forma espetacular e nada aprofundada. Não sei se lembra, logo nos primeiros dias do governo, Collor fez uma ação desse gênero. Em trajes militares e com a polícia federal e exército, dinamitou trilhas de garimpo em terras Ianomâmis, porque havia denúncias internacionais e a imagem do país estava manchada.

Isso não resultou em nada. Os garimpeiros e todos os atravessadores, simplesmente foram para as terras indígenas vizinhas, incluindo a Raposa Serra do Sol, e permaneciam atuantes ali, inclusive com o apoio de políticos do Estado e de governos locais, até que passasse aquela ação utópica de repressão e se sentissem seguros para retornar às terras Ianomâmi.

Então qual é a saída mais sensata para a exploração de minério em terras indígenas?

Por enquanto está proibida pela Constituição até que seja regulamentada – existem muitos projetos de lei em discussão. Essa questão é muito complexa para falar agora de uma receita de como a exploração deve ser realizada, mas, certamente, a pior é fazer sem uma discussão ampla com a sociedade. Porque daí, sim, prevalece o interesse das mineradoras. Essas corporações costumam se subdividir em empresas pequenas para pleitear permissão de pesquisa e exploração de jazidas transvestidas com diferentes inscrições jurídicas.

Houve uma iniciativa, meio que ‘a toque de caixa’, há cerca de três anos. A Câmara dos Deputados formou uma comissão e visitou algumas terras indígenas propagandeando os benefícios da exploração mineral. Chegaram a ventilar qual seria a porcentagem sobre os lucros de exploração que os povos indígenas deveriam ter, se de 3% ou 5%.

Felizmente os constituintes tiveram a sabedoria de pararem rapidamente a comissão e deixar isso para um segundo momento.

Mas uma hora terá que ser discutido, não?

Sim. A União tem esse interesse. Inclusive, deu para notar isso quando o último governo instituiu a Comissão Nacional de Política Indigenista. Mas, se formos reparar nessa comissão – paritária e que tem representantes de povos indígenas e de órgãos governamentais – veremos que seu representante mais graduado é justamente o Ministério de Minas e Energia, que comanda a cadeira da secretaria geral da comissão. Todos os outros ministérios são representados por técnicos, posicionados numa escala decisória inferior.

Isso demonstra que há interesse de grupos de parlamentares instigados por companhias do setor de mineração. A Comissão foi por muito tempo reivindicada pelos índios, mas hoje os representantes indígenas pleiteiam pela transformação da Comissão Nacional de Políticas Indígenas em Conselho Nacional de Políticas Indigenistas.

A proposta do Conselho, que tramita no Congresso Nacional há dois anos, e que vem do Executivo, é para criar um grupo maior que o Conselho de agora, com maior representação indígena e ministerial. Esse terá poder deliberativo e sua presidência será alternada entre indígenas e governo. Atualmente o Conselho é presidido só pelo governo.

Qual seria a situação legal dos índios hoje?

Não existe mais a ideia de tutela. Antes a FUNAI falava em nome dos índios juridicamente. Isso foi revogado pela Constituição em 1988, e agora os índios têm pleno direito e responsabilidade, assim como os demais cidadãos brasileiros.

Com relação à exploração de minério, pela Constituição todas as riquezas do subsolo pertencem ao Estado, independente das terras serem indígenas ou não, a exploração de minérios precisa da aprovação do estado maior.

Perfeitamente. O proprietário do subsolo é a União.

Nesse sentido, existem muitos grupos indígenas que querem o total direto de exploração ou isso geralmente é um incentivo que vem de fora?

Não, ninguém cogita a mudança dessa definição constitucional, de que o subsolo e as riquezas são propriedade da União. Acontece que no Brasil as terras indígenas são da União. Os índios têm usofruto das riquezas das terras, mas a propriedade é da União, assim como as riquezas do subsolo.

A ideia das comissões criadas no Congresso Nacional era instituir porcentagens dos lucros das explorações para os índios, como ocorre em acordos que já existem, a exemplo das terras dos Kayapós. Essa comunidade detém uma das minas de ouro mais antigas do continente. Mas sua exploração trouxe conseqüências, pela entrada e saída de mineiros, técnicos e equipamentos. Num certo momento os índios interditaram a companhia de mineração e só depois de muita discussão chegou-se a um entendimento de compensação das mineradoras aos índios pelo transtorno causado.

Esse é um exemplo de acordos localizados. O problema é que isso começou a ser discutido apressadamente, sem amplitude, envolvendo apenas alguns grupos indígenas com interesses imediatos.

Existe, então, situações pontuais de grupos de índios que acabam tendo interesse, como você falou, momentâneos? Isso aconteceu inclusive durante o processo de homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol.

Assim como nós, os índios possuem relações com várias instâncias e setores da população. Nessa região tinham índios que mantinham relações históricas já construídas com órgãos governamentais, missionários e pesquisadores, e tinham aqueles que mantinham relações com políticos, comerciantes e produtores.

Quando os arrozeiros chegaram as terras já haviam sido demarcadas. Mesmo assim contrataram índios Macuxi do lado da Guiana para trabalharem como jagunços das fazendas e intimidar os índios das aldeias mais próximas.

Portanto é claro que essas relações são diversificadas. Mas é importante não caracterizar as populações indígenas, como muitas vezes se faz, como se fossem facilmente manipulados por organizações internacionais para extraírem minério em troca de bebida ou bugigangas.

Desde o início da colonização vemos essa imagem oscilar – ou são ferozes canibais ou são os bons selvagens. Mais adiante, no século XIX, foram vistos ou como preguiçosos avessos ao trabalho, ou aqueles heróis romanceados por Gonçalves Dias. E hoje ou são os inocentes úteis ou são os ecologistas.

Eles não são uma coisa nem outra. Em geral esses estereótipos são produzidos e se prestam a outros interesses que incidem sobre as terras, e acabam ganhando força. Se são ecologistas? De certa forma, sim. Se visualizarmos fotos aéreas do país perceberemos que as terras indígenas tem a cobertura vegetal melhor preservada do que nas Unidades de Conservação, mas isso, porque os índios têm seus próprios interesses culturais em manter aquela biodiversidade.

O senhor participou do processo de demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol. Como é feita a identificação de terras indígenas?

O artigo 234 da Constituição Federal, e a Portaria 14, assinada, em 1996, pelo então Ministro da Justiça Nelson Jobim, definem o receituário legal para definir uma terra indígena. Cabe a FUNAI a realização desses estudos. Ela institui um grupo de trabalho que segue os procedimentos definidos por lei, que são de caráter antropológico, etnográfico, lingüístico e ambiental. Esse levantamento também leva em conta a forma de ocupação tradicional daquele povo que pode ser entendido tanto a partir do tempo quando a partir da relação social daquela tribo com o meio ambiente.

O grupo de estudo faz um relatório, submetido à aprovação da FUNAI. Em seguida a proposta passa por um longo processo de discussão que culmina num decreto do presidente da república declarando essa área de posse de determinado grupo ou povo.

Quando populações indígenas são retiradas de seus territórios de origem há uma perda de referência difícil de ser recuperada num novo assentamento?

No caso do Mato Grosso do Sul, o que chama mais atenção é o caso dos Guaranis. É um povo muito dinâmico, são conhecidos também por terem sofrido um dos maiores processos de desterritorialização no país. Hoje você os encontra no Morro do Jaraguá, em São Paulo, no litoral paulista, no Paraguai, no Mato Grosso, ou seja, eles têm uma plasticidade social muito diversa em que as aldeias e as relações e forma de produção se adaptam ou se articulam em diversos contextos.

Logo, não é correto, em termos antropológicos, falar de perda de referência. Claro que é possível falar de violência, de coisas que são impostas, como o desterro. As culturas são vivas, é natural que mudem. Ou seja, independente de serem ou não privados de seus territórios tradicionais de ocupação, vão sofrer mudanças culturais.

Como deveriam ser feitas as medidas compensatórias às ações que culminaram na condição social vivida por muitas tribos de alta taxa de mortalidade infantil, desnutrição e violência?

Entre os séculos XVI e XX tivemos uma curva declinante da população indígena considerada uma das grandes tragédias demográficas do planeta, iniciada pela colonização da América. Nesse período as populações originárias passaram de 6 milhões para 70 mil índios no Brasil,

Nos anos de 1970 e 1980 a linha demográfica passa a ser ascendente, e segue assim até hoje. Atualmente, essa população cresce a numa taxa média de 4% a 5% no país, acima da média nacional, entre 1% e 2%. [Segundo dados da FUNAI, no Brasil vivem hoje 460 mil índios, representando 0,25% da população brasileria]

Essa mudança se deve a medidas básicas de políticas públicas como reconhecimento de direitos territoriais, principalmente, e campanhas de vacinação para ajudá-los a criar resistência a vários tipos de epidemias.

Para produzir políticas públicas, se entrarmos na questão, abolida na antropologia, mas abordada entre os movimentos sociais, de raça e não de etnia, estaremos num tema bem complexo e polêmico, ou no limite das questões das cotas. Isso é um retrocesso para nós. Por isso, a saída para os problemas sociais indígenas está na universalização das políticas públicas já existentes.

Tem acompanhado as discussões com relação ao Estatuto dos Povos Indígenas?

Temos centenas de povos diferentes, o que está se buscando é regrar uma relação deles com o Estado. O que tínhamos então, a Lei 6.000, conhecida como Estatuto do Índio, caducou em relação à Constituição, como por exemplo, na questão de tutela.

Basicamente, o que existe hoje é uma discussão entre aqueles que acham que deve haver uma atualização minimalista – de que aqueles pontos que não vão contra a Constituição devem permanecer, e os contrários serem discutidos e alterados – e entre os que acham que se deve fazer uma coisa inteiramente nova.

Existe também a avaliação de que a composição do Congresso Nacional é bem diferente da composição que realizou a Constituição de 1988, no sentido de hoje prevalecer uma tendência de interesses contrários a dos índios, em especial ao ponto nevrálgico da questão indígena: mineração.

A entrevista abaixo, com o antropólogo Paulo Santilli, foi publicada no blog do jornalista Luis Nassif, no endereço http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/as-criticas-a-politica-indigena#more. Enviada por Pablo para a lista do CEDEFES.

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