Mulheres defendem direitos em favelas pacificadas

A paz forçada em que vivem mais de 200 mil habitantes do conjunto de favelas do Complexo do Alemão, ocupado pelas forças armadas no Rio de Janeiro, abre caminho para reconhecer os direitos mais básicos. Enquanto o tráfico de drogas e os grupos armados são o problema com o qual mais se identificam essas comunidades, a violência contra as mulheres se mantinha até agora velada, embora muito frequente, e pouco atendida pelas autoridades. A reportagem é de Fabíola Ortiz, da IPS e publicada pela Agência Envolverde, 01-03-2011.

“As mulheres não podiam abrir a boca e não tinham a quem recorrer. Era muita agressão. Maridos violentos existem em qualquer sociedade, mas por ser uma comunidade fechada às leis e à proteção, tudo se torna mais vulnerável”, disse à IPS Sheila Santos de Andrade, de 34 anos.

A delegada de polícia Célia Silva Rosa, encarregada de atender as mulheres vítimas de agressão ou abusos, disse à IPS que “antes da pacificação eram poucas as queixas de vítimas das comunidades pobres. Muitas tinham medo de sofrer represálias do tráfico de drogas. Os autores dos crimes ameaçavam denunciá-las ao chefe local do tráfico”. Em dezembro, uma equipe policial permaneceu uma semana no Complexo para registrar denúncias.

A maior parte delas era sobre lesões físicas e ameaças, disse Célia. “Na semana em que estivemos nas favelas, foram denunciados muitos desses casos. Inclusive duas pessoas foram presas em flagrante por agressão. As mulheres começam a reclamar seus direitos”, destacou a delegada.

Sheila preside uma associação de mulheres do Complexo do Alemão que quer dar continuidade a um projeto feito em conjunto com o Ministério da Justiça, conhecido como Mulheres da Paz. “Aqui as pessoas pensam que estão impunes, e a agressão passava despercebida. Prevalecia o pensamento de que, se sou agredida e estou em uma favela, é difícil denunciar”, contou.

Esta mulher viveu a violência dentro de casa. Sua filha de 13 anos foi baleada durante um tiroteio de rua em 2007, quando a polícia fez uma grande operação no local. Os projéteis atravessaram as paredes de sua casa e feriram a menina. Na ocasião morreram 19 homens, segundo dados da polícia, desmentidos por organizações de direitos humanos. “Fui vítima da guerra e tive minha filha ferida a bala. Isso me marcou”, contou. Seu sonho é que um dia todos tenham uma “meta” construtiva e que não seja mais necessário o exército vigiar as ruas.

A chamada Força de Pacificação, com 1.700 soldados, ocupa há quase três meses o Complexo do Alemão de favelas próximas no norte do Rio de Janeiro. A cada duas horas, todos os dias, patrulhas militares percorrem as ruas a pé ou de carro. “Todos acreditam que esta é uma paz forçada. Queremos a paz sem ações policiais. É um sonho que talvez um dia aconteça”, disse Sheila. Se o exército “for embora agora, não posso garantir que não voltaríamos à violência”, reconheceu. “Com a educação desta nova geração, as crianças vão aprendendo a conviver em paz”, acrescentou.

Há muitas semelhanças entre a estrutura e as táticas utilizadas desde 2004 pelas tropas brasileiras na Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti e as que aplicam nas favelas. A atuação nas favelas cariocas “tem semelhanças”, admitiu o porta-voz da Força de Pacificação, Fabiano de Carvalho. A previsão é que os militares permanecerão ali até outubro, quando deverão ser substituídos pelas Unidades de Polícia Pacificadora (UPP).

Como Sheila, Anatália dos Santos e Elaine Moreno também são Mulheres da Paz, consideradas as grandes mães da comunidade. Todas têm em comum um passado com momentos de violência, perdas e dificuldades. “Somos líderes na comunidade, abraçamos e levamos aos jovens vulneráveis um curso profissionalizante. As Mulheres da Paz os acompanham para que compreendam que vale a pena estudar”, contou Anatália, que pede mais atenção para a juventude desempregada. Ela é uma das 150 mulheres nesta favela que integram o Programa Nacional de Segurança com Cidadania, do Ministério da Justiça.

As Mulheres da Paz têm a tarefa de identificar jovens entre 15 e 29 anos que estejam em situação de risco e enviá-los a cursos de formação profissional, acompanhando-os em todo o processo. “No começo havia o medo de como a comunidade nos veria trabalhando em um projeto social do governo. Eu tinha medo de andar pelas ruas”, confessou Anatália, que assumiu este trabalho social em 2008, antes das ações de pacificação.

O receio das mães era serem confundidas com informantes da polícia. “Estou muito feliz de poder ajudar. Sempre quis trabalhar com um projeto social, resgatar as pessoas e fazer com que conheçam seus direitos e queiram mudar de vida”, afirmou. O Complexo do Alemão concentrava quase 40% dos crimes cometidos no Rio de Janeiro e era conhecido como “Faixa de Gaza” carioca, em alusão ao violento território palestino ocupado por Israel.

Aqui acontecem muitas outras coisas. A gravidez precoce, por exemplo, é um problema muito comum para grande número de adolescentes. Elaine Moreno vive há mais de 20 anos na Fazendinha, uma das favelas do Complexo, e confirma a dificuldade de conseguir consultas ginecológicas. “Faltam médicos. Não é fácil conseguir uma consulta no posto de saúde nem informação sobre planejamento familiar”, afirmou.

Para ela é gratificante atender alguém que “não sabe o que fazer e lhe mostrar o caminho”. Em sua opinião, a população local já não vive com a tensão de antes e agora pode exigir seus direitos. “Com a presença da lei, as crianças crescem sem ver os traficantes de drogas bebendo e fumando. Vivem com segurança. Ninguém pode se acostumar com o que acontecia antes”, assegurou Elaine.

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