Os sentidos da honra na distinção entre escravos e senhores

O desenraizamento, antes decorrente do tráfico negreiro, corre hoje bem mais rápido. E a desonra é peça estratégica na escravidão contemporânea: presos por dívidas, trabalhadores se “acorrentam” para evitar “sujar” seus nomes

Por Ivan Paganotti*

Violência, desvinculação das raízes e desonra. Desses três fatores fundamentais para o funcionamento da escravidão, já identificados por Orlando Patterson em seu estudo “Slavery and social death“, a questão da honra se desdobra como um elemento mais complexo e mutável do que o chicote e o navio negreiro. Para seguir as transformações por que passou o sentido da honra na sua travessia atlântica de Portugal para o Brasil, o historiador Jackson Fergson Costa de Farias analisou a sua relação direta com a manutenção da escravidão na dissertação de mestrado “Honra e escravidão: um estudo de suas relações na América Portuguesa, séculos XVI-XVIII“.

Inicialmente, “honra” envolvia a posse de um terreno livre da intervenção e dos impostos reais, uma recompensa por feitos militares. Posteriormente, o termo ampliou-se para ser acessível pela burguesia ascendente, passando a significar um reconhecimento social, respeito e reverência no tratamento de indivíduos dignos, virtuosos ou que detinham boa fama devido a cargos ou ações. Mas a honra passou a ter um sentido próprio na América portuguesa, relacionando-se intrinsecamente com a escravidão: o novo continente era visto como uma oportunidade para acumular riqueza e status social e os colonizadores que fugiam da pobreza no Velho Continente podiam aqui se apoiar na força de trabalho dos escravos como alavanca para conseguir riqueza, uma vida digna (sem trabalho) e “honrada”.

Se na casa grande a honra era garantida pela produção da senzala, para os escravos ela era simplesmente inacessível. O escravo era um indivíduo “desonrado” devido a sua total submissão e sua impossível independência: sem estima pública ou nome público a zelar, não podia ser reconhecido pela sociedade que prosperava com seu trabalho.

Após esse primeiro momento, quando a posse de escravos e o enriquecimento com a exploração de seu trabalho garantiam a honra de um senhor, Farias classifica duas etapas seguintes em que o sentido da honra passou por alterações: o bom governo dos escravos passa a ser também um fator determinante para a honra senhorial; e a honra finalmente pode ser reconhecida como uma característica dos próprios escravos.

Nessas fases posteriores, sermões e escritos de jesuítas como o padre Antônio Vieira passaram a defender uma paradoxal salvação dos escravos por meio da escravidão. A conversão ao cristianismo seria a garantia de uma “carta de alforria” espiritual no além-vida, quando o escravo poderia viver com honra no paraíso. Também o padre Manuel Ribeiro Rocha representa a escravidão brasileira como um “resgate” do paganismo africano que condenaria os negros ao inferno cristão. Dessa forma, os escravos convertidos deveriam servir aos seus senhores como se estivessem servindo ao deus católico, garantindo a salvação como recompensa da conversão e do trabalho submisso.

Outros jesuítas, como o italiano Jorge Benci, tentam também controlar os excessos dos senhores, recomendando que a alocação de trabalho e punições seja feita segundo preceitos cristãos: os escravos passam a ser vistos como parte do corpo do senhor e, portanto, alvo de zelo para evitar a desonra. Assim como o servo tinha obrigação de obedecer sem questionar seu senhor, também seu proprietário deveria cuidar de sua alimentação, sua vestimenta, seu tratamento médico e sacramentos católicos.

Porém, a honra ainda era vista como monopólio do senhor – ainda que mais benevolente e consciente dos motivos religiosos, éticos e econômicos do bom cuidado com o escravo. Farias aponta que somente com Manuel Ribeiro Rocha pode também o escravo ser honrado: o padre português recomendava que melhores vestimentas fossem dadas como recompensa ao servo mais digno, e reconhece uma “honrinha” que o escravo teria ante seus iguais ao exigir que o senhor não o ofenda nem use de injúrias durante os castigos, evitando punições coléricas, injustas ou contra inocentes.

A interpretação de Farias sobre esses textos mostra quão limitada é a representação dos escravos como seres totalmente desprovidos de honra durante a colonização brasileira. Se a honra podia ser usada também para garantir cuidados e evitar abusos, como recompensa no além para uma vida de servidão e até era reconhecida uma honra entre os próprios escravos, começava a se semear o terreno para a emancipação dos cativos a partir do reconhecimento de sua honra.

Além disso, um paralelo atual poderia ser traçado entre os três pilares da escravidão colonial, identificados por Patterson, a partir dos novos sentidos para a honra dos escravos, como sugerido por Farias. A violência do chicote agora alcança mais longe e fere mais fundo com as armas de fogo que ameaçam os trabalhadores em condição análoga à escravidão.

O desenraizamento provocado pelo navio negreiro agora corre mais veloz nos rios de asfalto que levam migrantes a se deslocar por centenas de quilômetros fugindo do desemprego. Em busca de uma vida melhor, escravos contemporâneos se veem acorrentados em situações de exploração das quais não podem escapar. E a desonra é uma nova peça estratégica: presos pela dívida contraída nas fazendas, os trabalhadores estão acorrentados pela força de seu nome a zelar.

Mesmo que baseado em um endividamento ilegal (na cobrança de utensílios, moradia e alimentação que devem ser oferecidos pelos empregadores), os trabalhadores continuam na labuta para quitar suas dívidas, na tentativa de reconquistar pelo trabalho uma honra que lhe foi tomada e difamada pelos que enriquecem com seus esforços.

Acesse “Honra e escravidão: um estudo de suas relações na América Portuguesa, séculos XVI-XVIII”, de Jackson de Farias, na Biblioteca Digital da USP

*Jornalista e mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

http://www.reporterbrasil.com.br/exibe.php?id=1852

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