O Brasil é uma economia agrícola subalterna

União Campo, Cidade e Floresta –  Do Jornal Sem Terra

Nesta entrevista ao Jornal Sem Terra de janeiro, o engenheiro agrônomo e cientista social Horácio Martins de Carvalho faz uma profunda análise sobre a organização do agronegócio no mundo hoje e o lugar do Brasil nesse cenário. País com o maior estoque de terras agricultáveis, clima favorável à produção e governos entreguistas, o Brasil se configura, segundo Horácio, como o terceiro país na lista de prioridades dos planos de investimentos das grandes empresas transnacionais, que controlam os mercados de alimentos e agroenergia.

Joana Tavares – Setor de Comunicação do MST

JST – Como se explica o aumento da busca por terras em todo o mundo e quais as consequências no controle estrangeiro sobre as terras agricultáveis?

HC – O Incra estima que 4,34 milhões de hectares em todo o Brasil já estejam em mãos de capitalistas de outros países. Essa é uma estatística modesta devido à camuflagem que a concepção vigente de ‘empresa nacional’ proporciona, ao tolerar servilmente na sua composição societária a participação de mais 90% de capital estrangeiro. O que motiva a apropriação privada de terras agricultáveis pelas empresas transnacionais é a possibilidade efetiva de poucas dessas empresas exercerem o controle mundial sobre a oferta, comercialização e beneficiamento de alimentos e agrocombustíveis, além de se afirmarem como um império setorial sobre um setor fundamental da vida dos povos.

A apropriação privada das terras agricultáveis passou a ser considerada pelas agências multilaterais Banco Mundial, FAO, UNCTAD e FIDA como investimentos agrícolas para o ‘desenvolvimento econômico nacional’. Para acobertar essa ocupação neocolonial das terras agricultáveis no mundo, foi elaborado, pelas agências acima citadas, um Código de Conduta, apresentado em abril de 2010 em Washington, capital dos Estados Unidos, durante a conferência anual de terras do Banco Mundial. O código objetiva a legitimação do mercado mundial de terras agricultáveis pelas grandes empresas transnacionais privadas e estatais. E como o recurso terra é limitado, o seu controle pela apropriação privada e ou pelo arrendamento das terras agricultáveis em todo o mundo se tornou prioridade geopolítica estratégica do agronegócio internacional. O Brasil é o país que possui o maior estoque de terras agricultáveis, um clima favorável à produção agrícola e governos entreguistas. Essa conjugação de fatores tem facilitado a aquisição de terras por estrangeiros e contribuído decisivamente para a negação da soberania alimentar e a nacional, submetendo os destinos do país às estratégias de negócios das grandes empresas nacionais e transnacionais.

JST – Calcula-se que o agronegócio tenha recebido cerca de R$ 90 bilhões de crédito para gerar um PIB de R$ 120 bi em 2010. Como se explica essa pouca produtividade?

HC – A regra na lógica do agronegócio é a reprodução dos interesses privados na agricultura a partir de recursos públicos, na sua maior parte a fundos politicamente perdidos para o contribuinte brasileiro. Isso inclui não apenas o crédito rural subsidiado e constantemente renegociado como as renúncias fiscais, redução de alíquotas e isenções de impostos. Sob essa lógica, ser grande empresário do agronegócio não é difícil, ainda que suas lideranças apregoem ideologicamente o livre mercado, a concorrência e a ausência do Estado na condução dos seus negócios. Não fazem mais do que sempre fizeram as classes dominantes no campo desde o período do Brasil colonial: falar contra a presença do Estado na economia e usufruir dele o máximo possível, sempre em detrimento da maioria da população. Nessas condições se explica, mesmo sendo imoral, que o agronegócio receba cerca de R$ 90 bilhões de crédito para gerar um PIB de R$ 120, de um total do PIB agrícola de R$ 160 bilhões. Não é de se estranhar, portanto, que o Brasil seja o terceiro país na lista de prioridades nos planos de investimentos no exterior das grandes empresas transnacionais.

JST – Por que se favorece o agronegócio quando a pequena agricultura produz mais alimentos para o mercado interno?

HC – O agronegócio se constitui numa fração importante da classe dominante no país: se apropriou privadamente da maior parte do território rural. A ‘modernização e a artificialização’ da agricultura, iniciada na década de 1950, tornou a burguesia agrária no Brasil forte compradora de produtos (insumos agrícolas, máquinas) de outras frações da burguesia. E os principais fornecedores desses insumos têm sido as empresas transnacionais do ramo da indústria química como a Bayer, Basf, Aventis, Dow, Monsanto e Syngenta. Os camponeses produzem mais alimentos do que o agronegócio, representam 84,4% do total de estabelecimentos rurais do país e defendem a soberania alimentar e popular. No entanto, não faz parte da concepção de mundo hegemônica no Brasil a proposta social de soberania alimentar e, menos ainda, de soberania popular. É mais fácil para os governos e para as empresas do agronegócio garantirem a segurança alimentar (não a soberania alimentar) pela importação de alimentos do que destinar recursos públicos para a melhoria da produção e da produtividade dos camponeses. Essa tendência se consolida quando os alimentos básicos como arroz, feijão, mandioca e leite, entre outros, se constituem em mercadorias, com preços definidos nos mercados. Esses produtos, outrora produzidos predominantemente pelos camponeses, passam a se constituir, também, em objeto de cobiça do agronegócio pelas margens de lucro que podem e poderão obter nas condições oligopolistas, tanto no mercado nacional como internacional. Ora, como poderia o governo liberal brasileiro deixar de fornecer acesso facilitado aos recursos públicos para o agronegócio se este é um dos elos fundamentais da cadeia de interesses do complexo mundial da indústria química, de alimentos e de agroenergia? E se no ano de 2010 o Brasil passou a ser o maior consumidor de agrotóxicos do mundo?

JST – Quais os principais impactos do elevado consumo de agrotóxicos? Por que o Brasil se sujeita a aceitar venenos em sua agricultura proibidos em outros países?

HC – Os principais impactos do elevado uso de agrotóxicos são a contaminação e degradação do meio ambiente, o comprometimento da saúde dos trabalhadores rurais e dos camponeses e a redução da biodiversidade. Esses impactos resultam em um modelo tecnológico onde somente o lucro comanda a lógica da produção. E não é o Brasil que se sujeita a aceitar venenos para a sua agricultura proibidos em outros países. São parcelas do empresariado do agronegócio que, movidos por uma constante ganância incontida, buscam as formas mais infames de obter tais produtos. Os cinco cultivos que mais consumiram agrotóxicos em 2008 foram soja, milho, cana-de-açúcar, algodão e citros, representando 87,21% do total comercializado no país nesse ano. E esses cultivos são os de maior presença no Valor Bruto da Produção (VBP) agrícola nacional. As sementes híbridas e os organismos geneticamente modificados (OGMs) são os principais responsáveis pela demanda de agrotóxicos. As grandes empresas transnacionais como a Dupont, Aventis, AstraZenec e Monsanto têm nos

OGMs parte importante de suas estratégias comerciais para vender agrotóxicos. As maiores empresas produtores desses venenos são Syngenta, Bayer, Monsanto, Basf, Dow, DuPont e Nufarm, as quais lucraram nos seus negócios mundiais em 2008 cerca de 40 bilhões de dólares.

JST – Qual o papel da agricultura brasileira no jogo de forças internacional?

HC – A estrutura da produção agropecuária e florestal dos médios e grandes estabelecimentos rurais no Brasil sempre se moldou de forma a atender aos interesses da burguesia agroexportadora, assim como à demanda mundial de produtos do setor primário. E essa tendência se torna cada vez mais acentuada na medida direta que as grandes empresas transnacionais dominam a oferta interna de sementes, insumos, máquinas e a agroindustrialização, assim como o comércio internacional de commodities. Isso significa que essas empresas transnacionais possuem o controle estratégico da produção agropecuária e florestal no país. Essa situação é agravada pela incipiente agregação de valor aos produtos da produção agropecuária e florestal que são exportados. A agricultura brasileira se reafirma na divisão internacional da produção social como produtora de matérias-primas para a agroindústria. A partir da racionalidade do agronegócio, se confirma como um ramo da indústria. Portanto, uma economia agrícola subalterna.

JST – Segundo o anuário do agronegócio referente a 2010, os ativos das 50 maiores empresas atingiram R$ 189 bilhões. Como se explica o poder do capital financeiro sobre a agricultura e qual a perspectiva para 2011?

HC – A agricultura do agronegócio, ao se tornar efetivamente um ramo da indústria, proporcionou condições mais efetivas para o domínio dos grandes conglomerados de empresas transnacionais da indústria química sobre a produção de alimentos, fibras e a agroenergia. A oligopolização desses mercados foi uma consequência esperada sob a concepção neoliberal de sociedade. A terra, a água doce, as florestas, o litoral, enfim, os recursos naturais, amplo senso, tornaram-se mercadorias, portanto, objeto de lucro e de negociação nas bolsas. Vivenciamos, há algumas décadas, uma transição fundamental na economia mundial provocada pela hegemonia do capital financeiro: todas as dimensões da vida se tornaram mercadoria e o lucro, a única referência na gestão das sociedades.

JST – Quais são as perspectivas políticas para o próximo período em relação à agricultura?

HC – A não ser que os movimentos sociais e sindicais populares no campo superem o abestalhamento a que foram reduzidos devido aos processos já crônicos de reivindicação, protesto e dependência financeira dos governos, tudo leva a crer que a expansão capitalista no campo, com a consequente concentração e centralização da renda e da riqueza, irá se ampliar. A luta de classes se tornou “luta com classe”. A desagregação do campesinato e dos pequenos e médios produtores rurais se dará sob diversas maneiras, desde aquelas tradicionais movidas pela truculência física e econômica da criadagem do grande capital, até a cooptação pelos contratos de produção com as agroindústrias. A proliferação dos contratos de produção com amplas parcelas do campesinato evidencia que as empresas capitalistas desejam controlar não apenas os recursos naturais e, em especial, a terra, mas também a oferta dos produtos que compõem a dieta básica da população. A correlação de forças para a adoção e implantação de políticas públicas que sejam favoráveis à soberania alimentar é bastante desfavorável no contexto atual devido, em especial, às disposições governamentais favoráveis ao agronegócio e ao capital transnacional. Porém, será a natureza imperialista da transferência de tecnologia agropecuária por setores governamentais do país, em consonância com os interesses das empresas transnacionais de insumos agrícolas e das agências multilaterais, que marcará a presença indesejável do Brasil nos países do Hemisfério Sul. A Via Campesina do Brasil e o MST poderão marcar presença não apenas pela sua militância crítica, mas, sobretudo, se forem capazes de concretizar uma aliança social popular no campo, munida tanto de uma crítica social radical ao projeto capitalista hegemônico, como de uma proposta para um novo marco civilizatório no campo.

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