Tortura nunca poderá ser considerada crime político

Kátia Rubinstein Tavares

“O que me preocupa não é nem o grito dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética… O que me preocupa é o silêncio dos justos”. (Matir Luther King)

Muito se vem discutindo sobre a abertura dos arquivos militares. Em meio à polêmica, há setores do governo resistindo à criação da Comissão Nacional da Verdade, que deverá apurar a atuação dos que agiram no regime ditatorial e qual seria a correta interpretação jurídica em relação à Lei de Anistia. O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ajuizou Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153, perante o Supremo Tribunal Federal, cujo pedido cuidava de interpretação da Lei de Anistia, para julgamento dos acusados de tortura durante a ditadura militar, buscando-se um posicionamento jurisprudencial a respeito do tema. No julgamento realizado no dia 29 de abril de 2010 ficou decidido, pela maioria dos ministros, que a Lei de Anistia abrangeria também os crimes praticados pelos autores da repressão ditatorial.

A decisão, em resumo, fundamentou-se no entendimento de que a Lei 6.683/79 é compatível com a Constituição Federal de 1988 e a anistia por ela concedida foi ampla e geral, alcançando os crimes de qualquer natureza praticados no período compreendido entre 1964 e 1979, por ter sido sua publicação um acordo político entre a sociedade civil e o governo desse período. Entendeu-se, ainda, que o parágrafo 1º do artigo 1º da Lei de Anistia definiu os crimes conexos como sendo as infrações de qualquer natureza que estivessem relacionadas à prática por motivação política, ou seja, incluindo os delitos comuns.

Após fazer alusão a crimes políticos e conexos existentes na concessão de anistia por vários decretos, observou-se que as expressões delitos conexos e políticos tiveram uma conotação no sentido do momento histórico da lei. Aduziu-se que o legislador realmente teria procurado estender a conexão aos crimes praticados pelos agentes públicos e aos que lutavam contra o governo de exceção.

Portanto, decidiu a maioria dos ministros pelo caráter bilateral da anistia, ampla, geral, e pela abrangência da conexão criminal entre os agentes públicos que praticaram crimes comuns contra os opositores do regime militar. Destacou-se, finalmente, que o Poder Judiciário não estaria autorizado a alterar, a dar outra redação diversa da contemplada no diploma legal, incumbindo ao Supremo Tribunal Federal tão somente apurar a compatibilidade do texto normativo, concessivo de anistia com a Constituição Federal. A revisão da referida legislação, segundo o STF, caberia ao Poder Legislativo.

Entretanto, é preciso esclarecer alguns pontos. Em primeiro lugar, o simples exame da Lei 6.683/79 demonstra que os agentes do governo que cometeram crimes comuns contra presos políticos jamais foram anistiados. Concedeu-se anistia aos que “…cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da administração direta e indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em atos institucionais e complementares…”

Além do texto legal, convém ressaltar o teor da Mensagem 59/79, que encaminhou o projeto de Lei de Anistia ao Congresso pelo presidente da República à época, João Baptista Figueiredo: “O projeto…. contempla quantos tenham sido afastados da atividade política por sentença da Justiça, ou por ato revolucionário.” [1]

Por outro lado, sustentam, equivocadamente, que houve um acordo no Brasil, para que houvesse a anistia. Logo, o crime de tortura seria conexo ao cometido pelo perseguido político, o que tecnicamente isso nunca ocorreu. Basta uma simples consulta aos textos doutrinários para saber que esse tipo de delito praticado de modo algum significa crime conexo à infração praticada por este. Diz-se crime conexo: é aquele que apresenta um liame subjetivo com outro delito cometido para facilitar ou assegurar a execução, a ocultação ou a impunidade ou vantagem de outro crime.

Jamais se estendeu a anistia aos crimes de tortura. A questão versada diz respeito à interpretação da lei. O debate trazido foi para saber se a legislação da anistia se aplicava ou não àqueles que, em nome do Estado, cometeram os já mencionados crimes contra os presos políticos. Portanto, é dispensável qualquer discussão acerca da mudança da Lei de Anistia para retirar o benefício do torturador, conforme entendeu a Suprema Corte.

A Lei 6.683/1979 concedeu anistia estritamente aos delitos praticados com motivação política e, também, àqueles conexos a estes, em nenhum momento mencionando dentre eles os crimes comuns. E tortura nunca poderá ser considerada um crime político.

A tortura, prática repugnante e covarde, constitui crime contra a humanidade. O Brasil é signatário de Convenções e Tratados Internacionais, ratificados pelo Congresso Nacional, como o Pacto de San Jose da Costa Rica, que asseguram o respeito a direitos políticos, civis e humanos, considerando, ainda, as violências praticadas, em razão de perseguições políticas, delitos contra a humanidade, sendo, assim, imprescritíveis. Além disso, a impunidade que se estabeleceu aos torturadores não pode significar isentá-los de responsabilidade criminal pelas barbaridades cometidas.

Aliás, atualmente, o Estado brasileiro encontra-se condenado perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que o determinou a fazer a investigação penal das responsabilidades penais para aplicação das sanções previstas na Lei pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre eles camponeses da região, envolvidos na Guerrilha do Araguaia, no período da ditadura militar. Cabe ao Brasil acatar a referida determinação, uma vez que é membro da OEA e signatário das Convenções Internacionais, podendo vir a sofrer sérias consequências penais e econômicas.

Ademais, a Constituição de 1988 absolutamente não estende a anistia aos torturadores. Ao contrário, o artigo 5º, inciso XLIII de nossa Carta Magna proíbe que a Lei conceda anistia, graça ou indulto para a prática de tortura e no inciso XXXV, do mesmo artigo, impede que a lei exclua da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito.

Assim, os episódios ocorridos podem ainda ser apreciados pela Justiça, iniciando o exame, nos casos de sequestros, quando ou não seguidos de homicídios, enquanto a vítima estiver em cativeiro ou seu corpo não for encontrado, já que, segundo já decidiu o próprio Supremo Tribunal Federal, tais delitos têm o caráter permanente, prolongando-se no tempo sua consumação. Por isso, fica inviabilizado o início da contagem do prazo prescricional.

A decisão da ADPF 153 pela Suprema Corte, rejeitando o pedido da Ordem dos Advogados do Brasil, para a punição dos torturadores durante o regime militar teve péssima repercussão externa, principalmente na ONU, diante da situação jurídica adotada por outros países latino-americanos os quais revisaram suas Leis de Anistia e puniram àqueles que cometeram crimes durante suas ditaduras. Assim, os governantes que lá se impuseram pelo regime de exceção, a partir dos anos 70 no século passado, submeteram-se ao devido processo legal, e muitos deles já se encontram condenados.

Na Argentina, por exemplo, os julgamentos dos acusados de tortura durante a ditadura militar foram retomados a partir 2005, depois da revogação das Leis do Perdão (Ponto Final e Obediência devida), aprovadas na década de 1980. A Corte Suprema revogou há alguns anos as Leis de Anistia que protegiam ex-oficiais de serem julgados por violações de direitos humanos, dando início às ações em diversas instâncias movidas por familiares e vítimas da ditadura. Isso permitiu que os Tribunais argentinos impusessem duras penas a ex-militares e policiais condenados por sequestros, torturas e homicídios. Nesse contexto, o ex-presidente Néstor Kirchner afirmou que, em sociedades autenticamente democráticas, não se admitiam Constituições que contemplem tutelas fardadas sobre o Estado Democrático de Direito e os poderes conferidos à República.

Ressalte-se, em 1983, a sociedade civil argentina reagiu de forma absolutamente contrária à Lei de Anistia, que o regime militar acabara de proclamar. Várias organizações de Direitos Humanos mantiveram centenas de pessoas nas ruas, durante anos, pedindo a aparição com vida dos desaparecidos e a punição dos responsáveis pelos crimes de lesa-humanidade praticados pelos ditadores militares argentinos. Como no Brasil, não se poderiam investigar o destino das vítimas e sequer punir os envolvidos no desaparecimento dos militantes políticos. A Lei de Anistia beneficiava, fundamentalmente, os autores de “todos os fatos de natureza penal realizados na ocasião ou por motivos de ações dirigidas a prevenir, conjurar, ou acabar com as atividades terroristas, qualquer que seja o bem jurídico lesado”, compreendendo “os delitos comuns conexos e os delitos militares conexos”. Determinava, ainda, que ninguém poderia ser “interrogado, investigado, convocado a depor ou inquirido” sobre aqueles fatos.

Não fosse a persistência e o inconformismo da sociedade argentina, este dispositivo legal impossibilitaria às famílias dos desaparecidos saberem por que estes foram presos ou mortos e, em última análise, que se buscassem o surgimento da verdade, para recuperação das memórias autoritariamente colocadas no esquecimento. Por isso, a resistência democrática na Argentina sustentou seus princípios, preservando a Justiça ao rejeitar um diploma legal que não se coadunava com os Direitos Humanos e com a sua realidade política. Foi o passo decisivo e histórico para a consolidação de uma cultura democrática, elegendo os direitos humanos sua política de Estado no país.

A decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a interpretação da abrangência da Lei de Anistia aos torturadores no Brasil não significa um posicionamento definitivo, ou seja, que foi colocado ponto final, encerrando essa história. A Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, a qual o país está subordinado por Convenções Internacionais já conseguiu a anulação de Leis de Anistia do Peru e do Chile, que isentavam o Estado e seus subordinados de responsabilidades criminais pelo cometimento de tortura ocorrido em suas ditaduras.

Portanto, o entendimento do STF acerca da Lei da Anistia poderá ser revisto brevemente. Seremos um país democrático quando aprendermos com a lição dada pelos argentinos. Essa luta não é apenas de um de grupo de direitos humanos ou de alguns membros do governo, mas de toda a sociedade. É preciso que o gigante adormecido em berço esplêndido se torne um país maduro, como tantos outros que chegaram a apurar, bem como a punir os genocídios cometidos por eles, assumindo, também, os seus erros durante o regime ditatorial. Por isso, é necessário abrir os arquivos militares, pois lembrar é combater, reprovar, ao passo que esquecer é permitir, tolerar e aceitar a prática da tortura. No dizer do insuperável mestre Piero Calamandei: “O esforço despendido por aquele que procura a justiça não é nunca infrutífero, ainda que a sua sede fique por saciar: Bem-aventurados aqueles que têm fome e sede de Justiça!”[2]

[1] Discurso proferido por Humerto Jansen, como Orador Oficial do Instituto dos Advogados Brasileiros, em 13.08.2008.

[2] Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados.

http://www.conjur.com.br/2011-jan-11/decisao-stf-lei-anistia-nao-coloca-ponto-final

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