As escolhas políticas do governo Lula e a causa indígena

Roberto Antonio Liebgott

Vice-Presidente do Cimi

A governança do presidente Lula está com os dias contados. Foram oito anos de grandes investimentos em empreendimentos econômicos e na consolidação de alianças políticas com os mais variados e antagônicos setores das sociedades capitalistas, no Brasil e no exterior. E, contraditoriamente, junto à população mais carente o governo, apesar dos altos índices de popularidade, manteve uma relação assistencialista, tornando-a quase exclusivamente dependente da caridade do poder público. Soma-se, neste contexto, o tratamento dado aos povos indígenas, para os quais se fez promessas de novos rumos e discursos de que seriam asseguradas ações que outros governos não realizaram. Mas, objetivamente, se estruturou uma política fragmentada em esboços de assistência. No cômputo geral, os oito anos foram de omissão e negligência em relação às demandas e aos direitos indígenas.

Tendo como ponto de partida esta caracterização dos dois mandatos do presidente Lula é importante refletir sobre algumas escolhas políticas que o conduziram, durante este período, a uma lógica de governar tendo como opção preferencial as grandes alianças econômicas ao invés de ações programáticas e duradouras para todos. Portanto, foram mantidas e aprofundadas as opções pela tão falada governabilidade, com as mesmas características e dinâmicas dos governos anteriores que, conforme se imaginava, seriam superadas pela extraordinária força popular, eleitoral e ideológica desse governo.

No tocante às escolhas do governo Lula, pode-se dizer que o foco principal foi pela continuidade da política econômica de FHC: prioridade para o setor financeiro, fazendo com que os bancos lucrassem cifras estratosféricas (nunca antes vistas, na história desse país); taxas de juros em patamares elevados; câmbio sempre flexível; financiamentos a juros módicos, através do BNDES, aos grandes grupos econômicos nacionais e transnacionais; dívida interna superando R$   1 trilhão; manutenção de uma das maiores cargas tributárias do mundo; investimentos rurais privilegiando abertamente a agricultura de grande porte, que tem por base o monocultivo e a transgenia; prioridade à produção de agrocombustíveis, em detrimento dos alimentos; liberação de vultosos recursos para implementação de projetos megalomaníacos, com o da transposição do São Francisco e Belo Monte, sem a realização de procedimentos imprescindíveis para resguardar a participação e o envolvimento da população afetada; desmonte da legislação ambiental e reestruturação do IBAMA para tornar-se uma espécie de “carimbador” de licenças para grandes obras. Neste último aspecto, vale lembrar que as mudanças em setores estratégicos do governo justificaram-se no desejo do presidente de “remover penduricalhos” e obstáculos aos grandes projetos de infra-estrutura previstos em seu governo.

A partir das escolhas políticas e econômicas na governança do país, aqueles que mais precisavam de um governo com espírito e proposições de cunho social receberam uma atenção difusa, através de discursos bem formulados, e de ações de assistência e de caráter paliativo, a exemplo da distribuição de bolsas. Com essa política o governo manteve sua popularidade em alta, de um lado porque os pobres e os milhões de famílias em situação de miséria precisam dessa atenção emergencial e, de outro, porque contemplou interesses de certos setores econômicos e de elites dominantes. O presidente recebeu, ao longo de seus dois mandatos, um extraordinário e quase irrestrito apoio da grande mídia, visto que, com roupagens populares e discursos de mudança, o governo manteve todas as coisas no seus devidos lugares: os pobres com a pobreza, os sem terra longe dela, os indígenas dependentes de ações pontuais e em confronto com os segmentos que fazem oposição aos seus direitos, de modo especial o direito à terra.

Adentrando numa análise indigenista, que é a intenção dessa breve abordagem conjuntural, se percebe com mais precisão o quanto as prioridades governamentais têm endereçamento certo, qual seja, o apoio a setores antiindígenas, a oligarquias e a segmentos empresariais implicados com a geração de lucro e de um suposto desenvolvimento nacional. Vejamos:

Apesar de ser uma obrigação constitucional do governo federal, os processos demarcatórios encontram-se paralisados. Um dado expressivo é o de que, até o mês de agosto do corrente ano, o governo Lula não identificou nenhuma das 327 terras indígenas que se encontram sem providências. Ao contrário disso, o governo vem suspendendo algumas portarias declaratórias, assinadas em anos anteriores, com o pretexto de cumprir determinações judiciais, ao invés de recorrer de tais decisões e efetivamente assegurar o procedimento de demarcação, conforme estabelece a Constituição. Ao que parece, a suspensão de portarias declaratórias em pleno processo eleitoral pretende agradar segmentos políticos, em regiões do país em que há conflitos de interesse sobre as terras. Em Mato Grosso do Sul, por exemplo, a Funai desrespeitou um Termo de Ajustamento de Conduta, assinado com o Ministério Público Federal, para realizar estudos de identificação de possíveis áreas a serem demarcadas.

Com relação aos direitos constitucionais dos povos indígenas se percebe que eles são tratados, pelo poder público federal, como entraves permanentes. Tanto é assim que sistematicamente o presidente da República se refere a essa questão como se fosse um absurdo ter que demarcar as terras indígenas, embora a Constituição assim determine. Exemplos evidentes são seus discursos propondo a compra de terras ao invés da realização de estudos para a identificação e demarcação, ou quando achincalha a legislação ambiental e/ou indigenista que, segundo ele, atrapalham suas pretensões desenvolvimentistas, pois impedem a construção de grandes obras com a pressa que o mercado de investimentos impõe.

A execução do orçamento indigenista, ou melhor, a falta de execução deste, é outro exemplo das escolhas governamentais, que nada tem a ver com as necessidades e direitos dos povos indígenas. Quando há recursos aprovados, estes são contingenciados ou não são executados conforme previsto. Vejamos alguns exemplos que confirmam isto: apenas 35% do total de mais de R$   780 milhões previstos para a questão indígena foi gasto até este mês de agosto. Da rubrica Demarcação de terras a Funai utilizou até o momento apenas 8,41% dos R$   30 milhões disponíveis; para a saúde indígena, na rubrica Estruturação de unidades de saúde foram gastos apenas 3% do montante de mais de R$   46 milhões; na ação, promoção, vigilância, proteção e recuperação da saúde indígena foram utilizados 34,04% dos mais de R$   300 milhões enquanto que, saneamento básico, fundamental para prevenção e controle de doenças, foram gastos 1,66% dos mais de R$   50 milhões destinados no orçamento.

Por outro lado, o governo federal tem liberado com rapidez e urgência somas vultosas de recursos para financiar empreendimentos privados, tais como o do milionário Eike Batista. Somente a reforma do Hotel Glória, no Rio de Janeiro, do qual este empresário é o proprietário, o BNDES reservou recursos no montante de R$   146,5 milhões. Na mesma linha, o setor energético, que é comandado por empreiteiras, recebeu aportes de R$   6,050 bilhões. Até mesmo o Palácio do Planalto foi beneficiado com R$   111 milhões para uma mega-reforma, enquanto toda a Esplanada dos Ministérios sofre o risco de ser interditada pelo Corpo de Bombeiros devido ao estado precário de suas instalações elétricas e hidráulicas.

No âmbito da política de saúde indígena há ainda a promessa de que será criada a Secretaria de Atenção Especial. Embora tenha sido aprovada uma medida provisória para esse fim, na prática o governo ainda não estabeleceu as condições necessárias para que a política passe a ser implementada. Diante disso, geram-se incertezas quanto à continuidade dos serviços aos povos indígenas e estes acompanham as notícias com impaciência e justificada preocupação. Se a saúde indígena fosse realmente uma prioridade o governo teria posto em andamento uma política de transição, até que o novo modelo pudesse dar conta de todas as demandas. No entanto, na vacância de um projeto de transição, a Funasa permanece como a executora dos serviços, mas sem um programa de trabalho, ficando a mercê das contingências e das circunstâncias e foca a sua ação em planos e estratégias emergenciais.

Já o órgão indigenista, a Funai, permanece como que “congelado” ou adormecido, em decorrência de uma reestruturação que não agradou aos povos indígenas e os seus servidores. Planejam agora a publicação do Regimento Interno, reformulado para atender as regras estabelecidas pelo Decreto 7056/2009. No entanto, apesar de promessas de ampla discussão sobre tal regimento, os indígenas que compõem a CNPI tiveram de pressionar a Funai para que esta tornasse pública uma minuta da proposta regimental. Vale destacar que a sede do órgão indigenista permanece com a vigilância e proteção da Força Nacional de Segurança, embora sob protestos da CNPI e dos povos indígenas.

A megalomaníaca obra de Belo Monte segue sendo enfiada “goela abaixo” pelo governo Lula, apesar de todas as manifestações contrárias e de todos os estudos indicarem sua inviabilidade econômica e seus custos sociais. A urgência em assegurar lucratividade de empresas e setores específicos e de honrar compromissos assumidos levou o governo a arriscar as fontes de vida de uma grande população, a desrespeitar leis ambientais, a alterar procedimentos administrativos para acelerar a assinatura da concessão da obra, ocorrida a em agosto deste ano.

Um rápido olhar para a questão indígena mostra, de modo incontestável, o desenrolar de uma política que prioriza segmentos que já são, historicamente, privilegiados. O bônus desse conjunto de ações de caráter desenvolvimentista vai para as empresas, para os bancos, para produtores rurais que se dedicam ao monocultivo, para aqueles setores considerados “produtivos” e viáveis, que representa uma pequena parcela da população brasileira. Já o ônus é distribuído “democraticamente” entre os trabalhadores, os segmentos mais empobrecidos, os povos indígenas, os pequenos produtores, todos aqueles que, num governo focado apenas em aspectos econômicos, são tidos como improdutivos e, portanto, sem relevância no cenário das decisões e dos rumos nacionais.

Porto Alegre (RS), 31 de agosto de 2010.
http://www.cimi.org.br/?system=news&action=read&id=4933&eid=259

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