Conjuntura especial: o Brasil no contexto da crise civilizacional

A análise da conjuntura da semana é uma (re)leitura das ‘Notícias do Dia’ publicadas, diariamente, no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT – com sede em Curitiba, PR, parceiro estratégico do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Hoje, publicamos a análise de conjuntura apresentada no Encontro do Setor de Pastoral Social da Conferência de Provinciais Jesuítas da América Latina – CPAL, no dia 05 de agosto, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU.. A análise foi elaborada em hipertexto a partir das Notícias do Dia e da Revista IHU On-Line publicadas no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Sumário:

I – O mundo está confrontado com uma crise estrutural e não somente conjuntural

Crise Civilizacional e suas manifestações
Crise ecológica
Crise energética
Crise alimentar
Crise econômica
Crise do trabalho

II – O Brasil no contexto da crise civilizacional

O Brasil e a opção pelo neo-desenvolvimentismo
O Estado financiador
O Estado investidor

III – Análise crítica de alguns projetos

Belo Monte
Complexo Madeira
Complexo Tapajós
Transposição do Rio São Francisco
Agrocombustíveis
Programa Nuclear
Pré-Sal

IV – Conjuntura Político-eleitoral

Lula. O grande consenso nacional?
O esvaziamento do movimento social
Eleições 2010. Diferenças menores do que se pensa
PT-PSDB. Mais do que uma disputa por projeto, uma disputa pelo poder
Modelo neo-desenvolvimentista não sofrerá interrupção

V – Conclusão

Eis a análise.

I – O mundo está confrontado com uma crise estrutural e não somente conjuntural

A percepção que orienta essa análise sintetiza-se na formulação de Edgar Morin de que “nossa época de mudanças tornou-se uma mudança de época”, ou ainda na intuição de Gramsci resgatada por Zygmunt Bauman,  de que “a crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não nasceu: neste interregno surge uma grande variedade de sintomas mórbidos”.  O novo está em disputa e é dessa disputa que sobrevirá ou não um projeto emancipatório.

A crise que denominamos de civilizacional ou epocal manifesta-se nas crises econômica, ecológica, alimentar, energética e do trabalho. Acrescente-se ainda que o conjunto dessas crises é também acompanhado por uma crise ético-cultural, ou seja, não se trata apenas de uma crise ancorada nas relações de produção, mas também e sobretudo uma crise do sentido humano que emerge nessa transição de século.

A crise civilizacional exige uma interpretação sistêmica. As crises não estão isoladas e requerem uma abordagem a partir do paradigma da complexidade, como propõe Morin. Trata-se de perceber que “não só a parte está no todo, mas também que o todo está na parte”. Tudo está interligado, entrelaçado, e há uma interdependência entre as crises. Nossos problemas não podem mais ser concebidos como separados uns dos outros.

Sob a perspectiva metodológica, propõe-se aqui uma interpretação da crise a partir do movimento social, sobretudo dos “novos movimentos sociais” – indígena, ambientalista, de gênero, anti-globalização. Esses “novos movimentos”, entre outros, sugerem que no interior da crise já se gestam alternativas que indicam que “outro mundo é possível”. Esses novos movimentos manifestam uma “metamorfose” em curso: “Tudo recomeça por uma inovação, uma nova mensagem desviante, marginal, pequena, muitas vezes invisível para os contemporâneos”, diz Morin.

Os novos movimentos sociais auxiliam ainda na compreensão de que a chave de saída da crise encontra-se, sobretudo, na categoria cultura. Frente ao “sujeito” da primeira modernidade, assiste-se à emergência da “subjetividade”. Frente aos temas da política e da economia, emerge o tema da cultura. Segundo Touraine, hoje “as mudanças são tão profundas que nos levam a afirmar que um novo paradigma está em vias de substituir o paradigma social, assim como este tomou o lugar do paradigma político”.  As categorias sociais da sociedade industrial, da primeira modernidade, tornaram-se insuficientes para a compreensão da sociedade de hoje. A intuição de Touraine, é que hoje as “categorias culturais substituem as categorias sociais, onde as relações de cada um consigo mesmo são tão importantes quanto eram, outrora, a conquista do mundo”.

Com a modernidade, surge o conceito da autonomia, o direito de recusa daquilo que sempre foi considerado como natural e de conceder-se sua própria lei – o primado do individualismo: “a liberdade de cada um imprimir sua exterioridade com o selo de sua individualidade para nela poder reconhecer-se e fazer-se reconhecer”, afirma Monod. A modernidade caracteriza-se pelo protagonismo do sujeito. A novidade agora, na segunda modernidade, ou pós-modernidade, é o fato da subjetividade “substituir” o sujeito. Agora, os interesses próprios, subjetivos, são o que irrigam a maior parte da cultura cotidiana.

Atente-se, porém, que a nova subjetividade apresenta também aspectos emancipatórios. É nessa outra subjetividade que aos poucos vai se constituindo que surgem as novas resistências. Basta pensar aqui nos novos movimentos sociais, nas redes sociais, no movimento ambientalista, nos movimentos de expressão cultural, nos movimentos de gênero, no movimento antiglobalização. A “subjetividade” que substitui o “sujeito” não é necessariamente negativa. Se por um lado, exacerba os imperativos do mercado, por outro, podem também ser resistência a ele. A subjetividade da segunda modernidade pode se traduzir em biopolítica – Foucault.

A biopolítica é uma resposta ao biopoder, àquilo que escapa a imposição da sociedade produtivista-consumista. É a idéia de uma produção de poder a partir do poder que se exerce. Possibilita “uma resposta biopolítica da sociedade: não mais os poderes sobre a vida, mas potência da vida como resposta a esses poderes; em suma, isso abre à insurreição e à proliferação da liberdade, à produção de subjetividade e à invenção de novas formas de luta”, destaca Antonio Negri.

Crise Civilizacional e suas manifestações

Crise ecológica

O planeta Terra dá sinais cada vez mais reiterados e evidentes de esgotamento. Os sistemas físicos e biológicos alteram-se rapidamente como nunca antes aconteceu na história da civilização humana. Desde o relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) de fevereiro de 2007, já não há mais contestação de que o responsável pela evolução acelerada da tragédia ambiental é a ação antropogênica sobre a Terra. À época, o informe dos pesquisadores e cientistas foi categórico e não deixou espaço para dúvidas ao afirmar de forma contundente – o relatório utilizou a expressão “inequívoca” – que o aquecimento global se deve à intervenção humana sobre o planeta.

Destaque-se que para muitos, as previsões do IPCC já estão defasadas. O quadro hoje seria pior do que o alardeado pelos cientistas no relatório de 2007. Estudo recente apresentado por pesquisadores afirma que alguns limites planetários já foram ultrapassados. Segundo o estudo três dos limites já foram transgredidos: os do aquecimento global, a extinção de espécies e o ciclo do nitrogênio. Outros quatro estão próximos: uso da água doce, conversão de florestas em plantações, acidificação dos oceanos e ciclo do fósforo.

Segundo o relatório Planeta vivo 2008, divulgado pelo WWF, nosso consumo dos recursos naturais já excede em 30% a capacidade de o planeta se regenerar. Com outras palavras, a espécie humana já necessita hoje de 1,3 planetas para satisfazer suas necessidades e desejos de consumo. A “pegada ecológica” – indicador da pressão exercida sobre o ambiente está muito forte. A média é 2,2 hectare, mas o espaço disponível para regeneração (biocapacidade) é de apenas 1,8 hectare. Avançamos o sinal. Há quem diga que o estrago já foi feito e ponto de retorno já passou. Na análise do ambientalista James Lovelock, Gaia – o organismo vivo que é a Terra – está com febre e se nada, e urgentemente, for feito esse quadro poderá evoluir para o estado de coma.

É o tipo de desenvolvimento econômico implantado, especialmente, ao longo dos últimos dois séculos, baseado no paradigma do crescimento econômico ilimitado, na idéia de progresso infinito e na concepção de que os recursos naturais seriam inesgotáveis e de que a nossa intervenção sobre a natureza se daria de maneira neutra que se encontra a razão do impasse que vivemos. Na origem da crise ecológica está o consumo desenfreado. O estilo de vida americano e ocidental – reproduzido em grande parte do continente latino-americano – não é compatível com as possibilidades do nosso Planeta.

“Essa crise ambiental não veio do nada. Não foi desastre natural, foi causada por homens”, diz Nicholas Stern. Quando se pensa que uma sociedade sustentável é aquela que satisfaz suas necessidades sem diminuir as perspectivas futuras, como define Lester Brown, percebe-se que o nosso modo de produção e de consumo está comprometendo a vida das futuras gerações, ou seja, estamos decidindo a sorte de quem virá depois de nós, deixando-lhes um mundo árido, poluído e feio. Emerge com intensidade crescente a consciência de que qualquer projeto radicalmente alternativo de sociedade não pode desconsiderar a questão ecológica.

Crise energética

Associada à crise ecológica está imbricada a crise energética. A civilização moderna é insaciável por energia. A voracidade por energia está associada aos padrões sempre crescentes de produção e consumo. A energia impostou-se no centro do desenvolvimento neste início do século XXI. Não há país no mundo hoje que não esteja às voltas com a questão energética, que tem hoje o potencial de estrangular qualquer economia. O mundo necessita sempre mais de petróleo, carvão, gás, eletricidade, energia nuclear e agora biocombustíveis.

As matrizes energéticas, via-de-regra, se produzem a partir de uma lógica concentrada e concentradora, além de serem reféns do gigantismo – basta pensar aqui nas gigantescas estruturas para extração e refino de petróleo, nas hidrelétricas e usinas nucleares.

As matrizes energéticas centralizadoras, poluidoras e devastadoras do meio ambiente – tributárias da sociedade industrial –, apresentam enorme ameaças a biodiversidade e perigos à civilização humana, particularmente no caso da energia nuclear. Cabe alertar que essas matrizes energéticas pertencem cada vez mais ao passado e o século XXI exigirá outras fontes de energia – renováveis e limpas.

Na realidade, em termos energéticos, a humanidade está passando da era do petróleo para uma era em que a produção de energia se dará em escala descentralizada e com impactos menores sobre o ambiente. A nova economia tendo como paradigma a Revolução Informacional, que está deixando para trás a Revolução Industrial, potencializa a gestação de um novo tipo de organização produtiva menos poluidora e com potencial descarbonizador. Essa nova economia potencializa novas matrizes energéticas que podem oportunizar inclusive a criação de outro tipo de empregos.

O pesquisador Jeremy Rifkin nos dá uma ideia do que está por vir: “Estamos no início da terceira revolução industrial: no período dos próximos trinta anos tudo mudará como mudou quando o vapor foi substituído pela eletricidade. Desta vez, quem vencerá será a intergrid, a Internet da energia: uma rede elétrica interativa e descentralizada, que transformará milhões de consumidores em pequenos produtores de energia criando um sistema mais confiável, mais seguro e mais democrático. Os edifícios serão envoltos em fotovoltaicos e, em vez de sugar a energia, produzirão. Os motores dos automóveis poderão, por sua vez, transformarem-se em mini-centrais, os tetos dos pavilhões beberão a energia solar com seus painéis e a restituirão. Uma parte da eletricidade será consumida diretamente no local de produção, reduzindo a dispersão. É uma revolução radical que mudará toda a arquitetura do nosso sistema produtivo. E quem compreender isso primeiro guiará o novo salto industrial”.

Segundo ele, “o século que apenas se iniciou é o século da terceira revolução industrial. O século da Internet e a energia soft que é produzida a partir de baixo, nos bairros, nas casas, se articulando em rede, com entrada e saída, os fluxos de informação e da energia. É um modelo descentrado, democrático, mais confiável tanto do ponto de vista dos custos quanto daquele da independência da produção”.

A nossa civilização centrada no petróleo, e pode-se acrescentar aqui as megas hidrelétricas e usinas nucleares, não se justificam mais, são tributárias de uma sociedade que está ficando para trás.

Neste aspecto, o Brasil em vez de assumir a vanguarda no processo de descarbonização da economia, investe em matrizes superadas – grandes hidrelétricas como as do Rio Madeira e de Belo Monte. Essas grandes obras implicam em grandes inundações de terras, em significativos deslocamentos de pessoas e em devastação ambiental gigantesca e sucessivos apagões. Essa é também a lógica subjacente aos agrocombustíveis que utilizam grandes extensões de terra, produção em larga escala, avançando sobre terras agricultáveis e voltadas para suprir preferencialmente o mercado externo. É nesse mesmo sentido que se deve olhar criticamente o pré-sal.

Crise alimentar

A crise energética, com graves repercussões ao meio ambiente, apresenta implicações também para a crise alimentar. A Agência das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação – FAO afirma que a produção de biocombustíveis priva o mundo de quase 100 milhões de toneladas de cereais, que poderiam ser destinados à alimentação. A opção pela ampliação de áreas cultiváveis para produção de biocombustível rouba áreas da agricultura de subsistência.

O ‘Seminário Internacional Agrocombustíveis como obstáculo à construção da Soberania Alimentar e Energética’ realizado por movimentos sociais denunciou que “o modelo de agricultura industrial, onde se inserem os agrocombustíveis, é intrinsecamente insustentável, pois apenas se viabiliza através da expansão das monoculturas, da concentração de terras, do uso intensivo de agroquímicos, da superexploração dos bens naturais comuns como a biodiversidade, a água e o solo. Os agrocombustíveis representam uma grave ameaça à produção de alimentos”.

O ‘Fórum Mundial sobre Soberania Alimentar’ protagonizado pela Via Campesina realizado em Mali na África passou a denominar os biocombustíveis de agrocombustível. Na análise dos movimentos sociais do campo, o programa de matriz energética a partir do álcool não deve ser chamado de biocombustível e muito menos de biodiesel. Para os movimentos, “a expressão ‘bio’ que relaciona energia à vida, de forma genérica, é uma clara manipulação de um conceito que não existe. Devemos adotar sim, em todos os idiomas, o conceito de agro-combustíveis”.

Os movimentos denunciam que o crescimento da monocultura em países em desenvolvimento e pobres tem como objetivo a manutenção do padrão de consumo american way of life e isso significa em última instância “tanques cheios a custas de barrigas vazias”. A questão de fundo posta pelos movimentos sociais é se as terras do planeta se destinarão preferencialmente a atender aos cerca de 800 milhões de proprietários de automóveis, ou à garantia da segurança alimentar mundial do 1 bilhão de pessoas que passam fome no mundo.

“Já que não saiu a Alca, vamos de álcool”, afirmou Brian Dean, diretor-executivo da Comissão Interamericana de Etanol (CIE) do então governo Bush. Os EUA falam em reduzir o consumo de petróleo em 20% nos próximos dez anos substituindo-o pelo etanol, e querem o Brasil como parceiro preferencial na criação de um mercado hemisférico de etanol. É nessa perspectiva que deve ser compreendida o incentivo do governo brasileiro para que países da América Central, do Caribe e da África passem a produzir etanol para abastecer os países do norte. A lista da América Latina e Caribe tem como países elencados pelos americanos como potenciais produtores de etanol os seguintes países: Peru, Colômbia, El Salvador, Honduras, Guatemala, São Cristóvão e Névis, República Dominicana e Haiti.

Destaque-se ainda que a produção do etanol em larga escala apresenta como consequência  a exploração  do trabalho humano, muitas vezes em condições análogas à escravidão. A cana-de-açúcar traz consigo miséria e condições de trabalho aviltantes para um grande contingente de trabalhadores.

A crise alimentar serve ainda de pretexto para uma ofensiva dos defensores de uma nova “revolução verde” a partir dos organismos geneticamente modificados – OGMs. As indústrias de biotecnologia vendem os transgênicos, com a promessa de que a sua produtividade e adaptabilidade é a grande solução para a fome. Esconde-se na maioria das vezes que os transgênicos sequer estão destinados à alimentação humana, e além da exigência de grandes extensões de terra, consomem enorme quantidade de água e demandam uso intensivo de fertilizantes que causam estragos ambientais, muitos deles irreversíveis.

Na realidade, cresce em todo o mundo a desconfiança sobre os transgênicos. “Governos, produtores e consumidores por todo o mundo reconhecem cada vez mais que a engenharia genética não é confiável, nem viável, além de ser perigosa”, afirma Jeremy Tager, do Greenpeace Internacional.

Sobre a fome do mundo, registre-se que sua obscenidade se torna ainda maior quando se sabe que no mundo de hoje há mais comida do que em qualquer outro momento da história da humanidade; temos 6,7 bilhões de habitantes, e produzimos mais de 2 bilhões de toneladas de grãos, o que significa que produzimos quase um quilo de grãos por pessoa e por dia no planeta, amplamente suficiente para alimentar a todos; segundo a FAO o mundo precisaria de US$ 30 bilhões por ano para lutar contra a fome, recursos que significam apenas uma fração do US$ 1,1 trilhão aprovado pelo G20 para lidar com a recessão mundial; 65% dos famintos vivem em somente sete países; no mesmo momento em que 1 bilhão de pessoas estão passando fome, outro 1 bilhão sofre de obesidade por excesso de consumo; uma criança americana consome o equivalente a 50 crianças africanas da região subsaariana.

Muitos pensam que o problema da fome se deve ao excesso da população, de que não há alimentos para todos e se faz necessário o controle da natalidade. Essa tese não se justifica. A FAO há vinte anos afirma que o problema é político. A fome é um problema, sobretudo, de acesso à comida e não de disponibilidade de alimentos, ou seja, a crise alimentar não é uma crise fundamentalmente de produção, mas de distribuição. O problema está no mercado.

A razão para o aumento da fome está ainda associada, entre outros fatores, a crise econômica (leia-se especulação das grandes corporações com os alimentos que chamam de commodities), às mudanças climáticas que provocam em alguns momentos inundações e, em outros, secas terríveis, e ao aumento das controvertidas plantações para produzir combustível, que rouba áreas da agricultura de subsistência.

A crise alimentar está também associada aos escandalosos subsídios concedidos aos fazendeiros dos países ricos. Existe muito dinheiro para subsidiar a agricultura dos que já tem muito e pouco, ou quase nada, para os países pobres que mais precisam. Nas últimas décadas, o livre comércio e as políticas neoliberais favoreceram e incrementaram o agronegócio, em detrimento da agricultura familiar, da reforma agrária, da produção ecológica. A globalização não significou o livre comércio de comida de alguns países para outros. Pelo contrário, ela esmaga os países que podem produzi-la.

Crise econômica

A origem das crises anteriores encontra-se no fato de que economia deixou de ser a “serva” da sociedade para se tornar a sua “senhora”, a “grande transformação” de que nos fala Karl Polanyi. Impulsionada pela ideia de progresso linear e quantitativo assentado sobre o crescimento econômico e recursos naturais ilimitados, a economia, na sociedade industrial, foi se desvencilhando gradativamente da ética e da política e passou a ser orientada e regida tão somente pelo mercado. Ainda mais, para além ruptura da relação entre economia e sociedade, também a ligação entre economia e ambiente foi se desfazendo.

Hoje, portanto, já não podemos mais dar centralidade apenas a economia para depois nos ocupar das outras crises. A questão fulcral diz respeito ao esgotamento do modelo de desenvolvimento criado e incrementado na sociedade industrial baseado em uma visão linear, progressiva, infinita e redutora de desenvolvimento, e que tem no consumo desenfreado a sua mola propulsora.

Por outro lado, a crise econômico-financeira que estalou nos Estados Unidos em agosto de 2007 – que arrastou o mundo para uma recessão levando milhares ao desemprego – apresenta-se com a novidade de que a mesma estourou completamente a dicotomia – ainda cara a muitas esquerdas – de economia real versus economia financeira. “Hoje nossas vidas estão inteiramente no processo de financeirização: quando usamos o cartão de crédito ou o cheque especial, quando recorremos a empréstimos para ter acesso a necessidades fundamentais (casa, formação, mobilidade, e principalmente a saúde), quando uma parte dos salários é paga em stock option (ações) ou as pensões se tornam fundos de investimentos”, destaca Gigi Roggero.

Segundo ele, “para a economia clássica e moderna, a financeirização e a crise intervinham no final do ciclo, após a expansão da economia real ligada à afirmação de um modelo produtivo. Hoje, a financeirização não só recobre o ciclo econômico inteiro, mas põe em discussão a própria categoria de ciclo”. Logo, diz Roggero, “a crise, longe de estar confinada a uma fase descendente do ciclo e de preparar uma nova expansão, tornando-se impulsionadora de uma dinâmica de crescimento, não é mais somente um dado estrutural do desenvolvimento capitalista, mas torna-se seu elemento permanente e insuperável”. De certa forma, foi a obsessão pelo consumo da sociedade americana (imóveis, carros, bens duráveis) que lançou o mundo na crise.

O mesmo afirma Carlo Vercellone para quem a relação entre capital produtivo versus capital financeiro já não existe mais. Segundo ele “insistir nas finanças como se se tratasse de um poder autônomo quase absoluto, tende a fazer esquecer a compenetração entre capital financeiro e capital produtivo e as outras causas socioeconômicas que estão na origem da crise sistêmica do capitalismo contemporâneo”. Esclarecendo melhor, o que agora precisa ser compreendido é que a financeirização não é mais um processo externo à produção, mas constitui, ao contrário, sua forma econômica real.

Nesse sentido, “a financeirização – longe de contrapor-se à economia real – é a forma da economia capitalista apta para exercer o comando sobre o trabalho cognitivo e sobre a produção do saber vivo”, afirma Gigi Roggero; ou seja, a financeirização da economia já se configura como um novo estágio de apropriação do capital pelo trabalho imaterial que se realiza. Aí está o cerne da crise.

Na opinião de Andrea Fumagalli, economista, o que é preciso compreender é que “atualmente os mercados financeiros são o coração pulsante do capitalismo cognitivo. Eles financiam a atividade da acumulação: a liquidez atraída para os mercados financeiros recompensa a reestruturação da produção que visa à exploração do conhecimento e ao controle de espaços externos aos negócios tradicionais”.

Por outro lado, junto com a crise, os mitos econômicos vendidos como verdades irrefutáveis caíram por terra. Tardiamente há um reconhecimento – de algo que há muitos anos vem afirmando o movimento social – de que o mercado precisa ser regulado. A tese liberal do mercado como aquele que se auto-regula se mostrou uma falácia. Os que ousavam criticar a desregulação financeira eram vistos como ‘atrasados’, entretanto, a própria Meca do liberalismo, os EUA, que impuseram as exortações do ‘pensamento único’ ao mundo, reconheceu que o mercado precisa de um mínimo de regulação. A maior potência econômica do mundo, os EUA, reconhece que a sua cruzada em defesa das virtudes do liberalismo esgotou-se. Os anos dourados do neoliberalismo e as orientações do ‘Consenso de Washington’ entraram em crise, ao menos do ponto de vista ideológico.

Ao mesmo tempo, a crise não é apenas de macro teoria, é também de natureza ética. Todo sistema histórico de organização da sociedade necessita de uma base de legitimação moral. Com a crise rompeu-se a ética de um sistema fundado em valores que decorrem da máxima “vícios privados, benefícios públicos”, ou seja, a idéia de Bernard de Mandeville, de que a sorte dos demais é, em última instância, uma manifestação do nosso amor-próprio, do nosso auto-interesse. A tese do egoísmo como virtude exposta por Adam Smith ao destacar que a busca compulsiva do próprio interesse conspiraria para a elevação do bem-estar da sociedade falhou. A cobiça desmedida dos agentes financeiros desatou a crise.

Nesta perspectiva, assistiu-se ao retorno do protagonismo do Estado que havia sido colocado de lado. O Estado deixou de ser o problema para voltar a ser a solução. O Estado se tornou a tábua de salvação do capitalismo – assistiu-se a um derrame de dinheiro público para salvar bancos e fábricas. O dinheiro que nunca se tem para aplicar na redução da pobreza e da desigualdade no mundo apareceu para resgatar os interesses dos mais poderosos.

O lado positivo da crise encontra-se na possibilidade do fim do unilaterismo e na formação de um mundo multipolar e, sobretudo, no revigoramento das teses do movimento antiglobalização. A necessidade de controle do capital financeiro propugnada pela Attac – que ganhou corpo ao longo das edições do Fórum Social Mundial (FSM) retomou fôlego novamente.

Crise do trabalho

As condições de vulnerabilidade crescente, de grande parte da força de trabalho do planeta, estão associadas a dois grandes movimentos que impactaram o capitalismo mundial a partir do último quartel do século XX e adentraram o século XXI: a substituição do processo produtivo padronizado pelo processo flexível – a radical transformação das forças produtivas e a reorientação do papel do Estado, isto é, sua subordinação ao mercado, sobretudo financeiro.

Essas mutações em curso no capitalismo, e o seu significado, assumem diversas denominações na literatura sociológica: sociedade pós-industrial, pós-fordista (Lazzarato; Negri; Virno; Rulani), capitalismo cognitivo (Vercellone; Corsani; Moulier-Boutang; Cocco), sociedade do conhecimento (Gorz), sociedade informacional (Castells; Lojkine), era do acesso (Rifkin), segunda modernidade (Giddens),  pós-social (Touraine), pós-modernidade (Harvey), novo capitalismo (Sennett), modernidade líquida (Bauman) e sociedade do risco (Beck), são alguns conceitos, entre outros, que não expressam necessariamente uma oposição entre si mas, antes de tudo, formas próximas para dar conta de conteúdo a um mesmo acontecimento: o enfraquecimento do paradigma da sociedade industrial.

A ruptura com a sociedade industrial, provocada pela reorganização das forças produtivas, a erosão do Estado-Nação e o seu (re)direcionamento para desfazer o contrato do bem-estar social, estão na origem da nova Divisão Internacional do Trabalho (DIT) e engendram três “novas” categorias de trabalhadores: os integrados, os semi-integrados e os excluídos. No primeiro grupo, estão os trabalhadores vinculados aos circuitos das redes mundiais de produção – bem pagos, porém em número cada vez mais reduzido; no segundo grupo, estão aqueles que se encontram em situação de ‘risco’ – os que trabalham precariamente de forma intermitente; e ,no terceiro grupo, estão os excluídos – aqueles que estão fora da sociedade salarial, situam-se no mercado informal e descobertos de qualquer rede de proteção social, a não ser as políticas assistencialistas de mitigação da miséria – os “inúteis para o mundo” de que fala Robert Castel.

Uma das alavancas que está na base da nova Divisão Internacional do Trabalho, tem a ver com reorganização das forças produtivas – a Revolução Tecnológica para uns, ou Revolução Informacional para outros. Assiste-se agora a uma revolução das forças produtivas comparável à mesma envergadura produzida pela Revolução Industrial. Assiste-se a mudanças profundas que alteram significativamente o modo produtivo e desorganizam o mundo do trabalho que se conhece. A introdução de novas máquinas-ferramentas, com mais recursos, incorporando tecnologia informacional, é a novidade da Revolução Tecnológica. Sob a perspectiva do processo produtivo, essa revolução assume um caráter profundamente transformador. O caráter inovador da Revolução Tecnológica/Informacional reside no fato de que ela supera o tratamento que era dado à informação pela Revolução Industrial anterior.

A Revolução Tecnológica transformou o processo produtivo e o trabalho. Na sociedade industrial, o trabalho insere-se na esfera da reprodução, dispensa o conhecimento, está preconcebido e atende a um padrão tecnológico e organizacional estruturado de antemão. Agora, com a introdução das Novas Tecnologias da Comunicação e Informação, as mudanças são significativas. Cada vez mais a valorização do trabalho repousa sobre o conhecimento, sobre a capacidade de interação com a máquina, superando a mera subordinação.

Trata-se do que se denomina de “sistema de produção de conhecimentos por conhecimentos”. Na nova forma de se organizar o trabalho e ativá-lo, busca-se a reconquista da parte do trabalho vivo que o desenvolvimento histórico do capitalismo tentou aniquilar. São o conhecimento, a competência lingüística, a cooperação singular, que agregam valor ao processo produtivo ou seja, recursos imateriais, destacam Negri e Hardt.

Em síntese, a sociedade industrial, taylorista-fordista, mobilizou massas enormes de trabalhadores e os empurrou para uma divisão técnica do trabalho que lhes reservava tarefas simples e repetitivas. O operário fordista é duplamente massificado: pela reincidência diuturna a que é submetido, num processo produtivo estandardizado, e pela negação de suas características pessoais, subjetivas. Essa sociedade, entretanto, está em reviravolta.

O agressivo ataque dos interesses econômicos ao mundo do trabalho é  outro fator que reconfigura a realidade do mundo do trabalho. Assiste-se, nas últimas décadas, a uma ofensiva do capital frente ao trabalho, que se manifesta no trinômio flexilibilização, terceirização e precarização. A ordem do capital é desregulamentar. Observa-se um processo de desregulamentação de direitos, que compreende as iniciativas de eliminação de leis ou outras formas de direitos, instituídos nos contratos coletivos, que regulam as condições e as relações de trabalho. Trata-se da eliminação, diminuição ou flexibilização dos direitos existentes. O ataque à ‘normatização’ do trabalho é mundial e está relacionado à nova ordem econômica internacional de corte neoliberal.

Repensar a organização social do trabalho é uma exigência da nova realidade social. Aumenta a percepção de que o desemprego, a informalidade, as situações de precarização do trabalho não é algo meramente conjuntural, mas se tornou estrutural, ou seja, cada vez mais a precarização é central e constitutivo à nova forma de organização do sistema produtivo centrado na revolução tecnológica. O capitalismo do ‘pleno emprego’ se tornou uma quimera.  É preciso construir uma nova noção de trabalho que supere a visão meramente econômica, que divide a sociedade entre os que recebem e os que não recebem. Entre os que têm emprego e os que não o têm. É necessário e urgente discutir os ganhos de produtividade. A crise da sociedade salarial, do emprego, é uma ótima oportunidade para se pensar, debater e avançar em propostas que contribuam para outro paradigma civilizacional que tenha como referência a organização social do trabalho na perspectiva da inclusão social.

II – O Brasil no contexto da crise civilizacional

O que fica evidente tendo como referência a análise da crise civilizacional – manifesta nas crises econômica, ecológica, energética, alimentar e do trabalho – é que o futuro da vida, e especialmente, da vida humana na Terra dependerá do rumo que se der hoje à economia. Por essa razão, a discussão sobre os modos de produção e de consumo torna-se crucial no contexto de uma sociedade ecologicamente sustentável.

Tendo como referência a análise anterior, a questão de fundo que se apresenta é se o Brasil tem consciência que está frente a uma crise epocal que tem no seu âmago a questão ecológica. E ainda mais, se essa consciência se traduz em ações, iniciativas e políticas que contribuem para mitigar o colapso ambiental ou, ao contrário, estamos jogando pela janela a oportunidade epocal de sinalizar para a possibilidade de uma sociedade sustentável e outro padrão de convivência humana.

Propõe-se aqui uma leitura crítica – tendo como referência setores do movimento social – ao atual modelo em curso na sociedade brasileira.

O Brasil e a opção pelo neo-desenvolvimentismo

O modelo atual poderia ser descrito como neo-desenvolvimentista. Ao projeto econômico de corte neoliberal do governo anterior intitulado de ‘inserção subordinada à economia internacional’, o governo atual respondeu com a retomada do modelo econômico ‘nacional-desenvolvimentista’ – política econômica na qual o Estado exerce um forte papel indutor na perspectiva do crescimento econômico –, com significações semelhantes e distintas daquele adotado a partir dos anos 30.

O modelo neo-desenvolvimentista atual caracteriza-se por duas vertentes. Por um lado, tem-se o Estado financiador que, utilizando o seu banco estatal, o BNDES e os fundos de pensão, exerce o papel de indutor do crescimento econômico fortalecendo grupos privados em setores estratégicos. Por outro, tem-se o Estado investidor responsável pelo investimento em mega-obras de infra-estrutura que se manifesta no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Porém, diferentemente do nacional-desevolvimentismo da Era Vargas, o Estado não é o proprietário de empresas, mas se torna a principal alavanca para criar gigantes privados que tenham capacidade de disputa no mercado interno e internacional.

Destaque-se ainda que ao lado do Estado financiador e do Estado investidor, tem-se o ‘Estado Social’. Assiste-se à retomada do papel do Estado como provedor de políticas sociais, sobretudo de mitigação da pobreza, dentre as quais o Bolsa Família é a mais emblemática. O governo atual caracteriza-se ainda pelo reposicionamento do Brasil na geopolítica mundial. Se no governo anterior a presença do Brasil no exterior era raquítica, assiste-se agora a elevação do Brasil à condição de potência e sua transformação num global player. O país assumiu definitivamente o papel de nação estratégica – política e econômica – no continente latino-americano e faz-se ouvir nos grandes fóruns internacionais. De mero coadjuvante passou a importante protagonista nos debates de fundo da sociedade mundial.

O Estado financiador

O Estado financiador vem possibilitando a constituição de fortes grupos econômicos, ou ainda, a formação de grandes multinacionais brasileiras com capacidade competitiva no mercado internacional. A formação desses grupos tem no Estado, através do BNDES, a principal alavanca. O BNDES – hoje, o maior banco de fomento do mundo – transformou-se na mais poderosa ferramenta de reestruturação do capitalismo brasileiro.

Nas palavras de Luciano Coutinho, presidente do BNDES, a síntese do novo papel do Estado-financiador: “Empresas brasileiras competentes e competitivas devem merecer o apoio do BNDES para se afirmarem internacionalmente”.

Criado na década de 50 pelo então presidente Getúlio Vargas, o BNDES surgiu para dar apoio à industrialização e planejar o desenvolvimento de longo prazo. Na década de 70, com os militares, o banco orientava-se pela regra da “substituição de importações”. Nos anos 80, o banco se transformou num autêntico hospital, que socorria qualquer empresa em dificuldades. Na década seguinte, a dos anos 90, na Era FHC, o banco se tornou o grande articulador das privatizações, não apenas desenhando o modelo de venda das estatais, como também participando dos consórcios compradores.

Na Era Lula, o BNDES orienta-se pelo conceito de “desenvolvimentismo”. E tem sido o principal agente de grandes fusões sempre com o objetivo de fortalecer o capital nacional privado em condições de competir com o capital transnacional. A principal característica do capitalismo brasileiro hoje é a ativa participação do Estado na constituição de novos ‘global players’ em diferentes ramos da atividade econômica. Com o governo Lula, particularmente em seu segundo mandato, o BNDES vem sendo decisivo para a conformação de alguns grupos econômicos que em comum, na maioria dos casos, têm o Estado como o indutor do negócio, seja através de empréstimos ou compra de ações. Em outros, o Estado é o facilitador ou ainda assume o papel de sócio. Em todos eles, a ação privilegia o fortalecimento do capital nacional frente ao capital transnacional.

Entre alguns casos, destacam-se o da telefonia: fusão da Oi com a Brasil Telecom – nesses dias o governo aportou ainda mais recursos para manter o controle da tele com a entrada do grupo português PT; petroquímica: fortalecimento do grupo Braskem; alimentação: formação da Brasil Foods (fusão da Sadia com a Perdigão) e fortalecimento dos grupos Margrig e Bertin; papel e celulose: formação de fortes grupos privados (fusão entre a Votorantim Celulose e Papel (VCP) e a Aracruz); sucroalcooleiro: fortalecimento do grupo ETH Bioenergia, controlado pela Odebrecht.

O nacional-desenvolvimentismo praticado pelo governo Lula é distinto do praticado na Era Vargas. No período anterior, os investimentos realizados pelo Estado constituíram a formação de um capital produtivo sob controle do próprio Estado. Foi assim que surgiu a CSN, a Companhia Vale do Rio Doce, a Petrobras, a Eletrobrás, o sistema Telebrás. Foram essas empresas que possibilitaram a modernização – conservadora – do país e o alçaram a uma das potências econômicas mundiais.

Hoje, o nacional-desenvolvimentismo mudou de coloração. Ele presta-se antes de tudo ao fortalecimento do capital privado. É dessa forma que se explicam os generosos subsídios não apenas para fusões, mas também para a Vale do Rio Doce e para a Embraer. Atente-se para o fato de que o dinheiro público do BNDES lastreado sobretudo pelo Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) está sendo utilizado em muitos casos para irrigar empresas que foram privatizadas, como é o caso da própria Vale e das empresas de telefonia. Essas mesmas empresas, por ocasião da privatização, receberam transferência de recursos públicos e agora, novamente o banco entra com recursos favorecendo as mesmas empresas, mas em mãos privadas. Trata-se de um capitalismo sem riscos.

O Estado investidor

Ao lado do ‘Estado financiador’ na criação e/ou fortalecimento de grupos de capital privado nacional, o governo aposta em outra vertente do nacional-desenvolvimentismo, através do ‘Estado investidor’. A vertente do ‘Estado investidor’ se manifesta no Programa de Aceleração do Crescimento – PAC.

O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) foi saudado como a retomada do ideário desenvolvimentista. Em síntese, o PAC é de um conjunto de grandes obras de infra-estrutura para alavancar o crescimento econômico do país. Entre as principais, encontra-se a construção de hidrelétricas – Belo Monte, Santo Antônio e Jirau – a transposição do Rio São Francisco, a retomada do programa nuclear,  a construção e/ou duplicação de rodovias, como a polêmica BR 319. Há ainda investimentos em ferrovias, hidrovias, portos, aeroportos, saneamento e habitação popular.

Na visão de setores do movimento social, o PAC é refém de um modelo de desenvolvimento preso ao século XX. Nesse sentido, o PAC coloca-se de costas para a problemática ambiental e reafirma a lógica produtivista da sociedade industrial. Exatamente no momento em que se fala em descarbonizar a economia, o país reafirma um modelo tributário ainda da Revolução Industrial.

No contexto do Estado financiador e do Estado investidor que tem o BNDES como principal alavanca destaque-se o surgimento de uma nova categoria: Os “impactados” – todos aqueles que precisam ser removidos em função de grandes projetos, como hidrelétricas, mineradoras e rodovias, entre outros. O movimento social dos impactados identifica no banco o grande “motor” dos mega-projetos e querem debater o seu papel e sua concepção de desenvolvimento.

Os movimentos sociais querem debater o papel do banco e elaboraram um documento intitulado “Plataforma BNDES” onde constam as proposições para uma reorientação do Banco. Segundo João Roberto Lopes, “as proposições focam na adoção de uma política de informação e ambiental, que preveja critérios sociais e ambientais em seus financiamentos. Além disso, propõe-se o desenvolvimento pelo Banco de políticas setoriais nas áreas da agricultura familiar e campesina, de energia e clima, do desenvolvimento de infraestrutura social, da descentralização do crédito e da integração regional”. Em sua opinião, “discutir o BNDES é discutir o Brasil que queremos”.

Os grandes projetos em curso na sociedade brasileira, portanto, são compreensíveis a partir do da concepção neo-desenvolvimentista que se aplica no país. A análise de alguns desses projetos auxilia na concepção do Brasil que se quer.

III – Análise crítica de alguns projetos

Belo Monte

A maior obra de infraestrutura já realizada no país desde Itaipu e o terceiro maior empreendimento hidrelétrico do planeta, atrás apenas do projeto chinês de Três Gargantas e da própria Itaipu caracteriza a usina hidrelétrica de Belo Monte. O projeto impactará 11 municípios, nove territórios indígenas, desalojará milhares de pessoas e desmatará grandes áreas de floresta e secará parte do rio Xingu.

O governo afirma que a hidrelétrica é absolutamente indispensável para suprir a crescente demanda por energia; já na análise do movimento social, de ambientalistas e especialistas, Belo Monte configura-se como um projeto economicamente perdulário, socialmente desastroso e ambientalmente devastador. Nas palavras de Dom Erwin Kräutler, uma das principais vozes de resistência ao projeto, Belo Monte a usina é “projeto faraônico e gerador de morte, uma monstruosidade apocalíptica”. Os movimentos acusam ainda que o empreendimento atende especialmente aos interesses do grande capital.

Com a usina, a fauna, a flora e parte da natureza intocável e de rara beleza serão destruídas. Haverá comprometimento da navegabilidade, da pesca e da agricultura. Animais serão extintos e os modos de vida locais se perderão em definitivo; grandes áreas de bosques serão inundadas. Cem quilômetros do rio Xingu, um afluente do Amazonas – com largas cachoeiras e fortes corredeiras, arquipélagos, florestas, canais naturais rochosos – se tornarão secos ou serão reduzidos a um filete de água.

Belo Monte é realmente necessária? O governo diz que sim, o movimento social contesta. Na avaliação dos movimentos contrários a obra, a mesma gerará pouca energia e produzirá muitos danos. Segundo especialistas a grande oscilação entre cheias e secas do rio Xingu vai transformar a hidrelétrica de Belo Monte numa imensa usina “vaga-lume”. Análises ainda dão conta que a hidrelétrica foi concebida para atender os grandes consumidores de energia. Segundo dom Erwin, “Belo Monte estará a serviço dos ‘gringos’”.

O governo, por sua vez, afirma que a hidrelétrica é fundamental para garantir a oferta de energia para a expansão da economia brasileira. Belo Monte, pensada sob a perspectiva da lógica imediata e pragmática encontra argumentos justificáveis e favoráveis; pensada, entretanto, a partir do princípio da “ecologia da ação” se torna questionável, ou seja, Belo Monte desejável nesse momento pode ser lamentada mais tarde.

Complexo Madeira

Somada à construção de Belo Monte, projeta-se a construção de duas hidrelétricas – Santo Antônio (já em andamento) e Jirau – no Rio Madeira, o maior afluente do Amazonas. As obras constam do PAC e não se resumem apenas às hidrelétricas, mas constituem-se em um complexo – que vai contar com hidrelétricas, eclusas, hidrovias e uma linha de transmissão que irá de Porto Velho até São Paulo.

A estimativa é de que o projeto vai inundar uma área de mais de 500 quilômetros quadrados e deslocar mais de 10 mil pessoas que vivem na região. Ao se colocar contra a construção do complexo, o movimento social questiona a quem o projeto irá beneficiar.  Segundo Gilberto Cervisnki do Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, “construir as usinas no Madeira representa a abertura para construção de dezenas de outras hidrelétricas dentro da Amazônia, sem sequer discutir uma questão que entendemos ser fundamental: energia para quê? E para quem?”.  Segundo ele, o discurso do risco de apagão é utilizado para impor os aumentos nas tarifas de energia e o financiamento desses empreendimentos, mas que no final acabam beneficiando poucos.

Na opinião de Marco Antonio Trierveile, também do MAB, “os grandes grupos econômicos estão interessados em aumentar sua exploração na Amazônia e em toda América Latina (recursos naturais, energia, minérios, madeira, terra, biodiversidade – principalmente para indústria financeira). Para que essas indústrias possam se instalar no País, elas precisam criar uma rede de infra-estrutura básica (energia, portos, hidrovias, redes de transmissão de energia, estradas, ferrovias), o que possibilitará a elas transportar mercadorias para fora do país”. É nesse contexto que ele situa o Complexo Madeira. Os grandes beneficiados pela construção das usinas hidrelétrica do Rio Madeira serão grupos de grande porte, como Votorantim, Vale do Rio Doce, CSN, Alcoa e Gerdau.

Os problemas que virão são destacados por Gustavo Pimentel,da organização Amigos da Terra:  “aumento do desmatamento, da grilagem, perda de biodiversidade, explosão demográfica e favelização em Porto Velho, aumento da malária e outras doenças, contaminação de peixes e da população por mercúrio, entre outros problemas”. A barragem de Santo Antonio fica distante apenas 7 Km de Porto Velho.

Segundo o movimento Rio Madeira Vivo, “o rio Madeira e suas margens deixarão de atender ribeirinhos, indígenas e a população de Porto Velho com água, peixes, sedimentos e vida para se tornar um rio-mercadoria. Um rio morto, estéril, com águas podres, contaminado por mercúrio, multiplicador da malária. Um rio a serviço das indústrias eletrointensivas e do agronegócio, imprestável para o povo, para a pesca artesanal, para o lazer e para as culturas de várzea”.

Complexo Tapajós

A construção de um complexo de usinas na bacia do rio Tapajós, entre os Estados do Amazonas e do Pará, vem sendo arquitetada desde a década de 1980. O projeto prevê a construção de cinco usinas hidrelétricas – São Luiz de Tapajós, Jatobá, Cachoeira dos Patos, Jamanxim e Cachoeira do Caí – com potência instalada de 10.680 MW (potência acumulada pouco abaixo de Belo Monte e pouco acima do Complexo Madeira).

“Nenhum rio, no Brasil e no mundo, pode suportar a construção de cinco hidrelétricas, ou até menos, em sequência. Hidrelétricas causam prejuízos imensuráveis à biodiversidade, imagine cinco e em sequência. Neste caso se criariam cinco grandes lagos na região da bacia do Rio Tapajós em sequência. Isto transformaria esses rios em uma espécie de sistema lacustre”, alerta Telma Monteiro.

A promessa do governo é de que as hidrelétricas seguirão um conceito inovador: o de usinas-plataformas, projeto inspirado na logística utilizada pela Petrobrás em suas operações na Bacia de Campos. Segundo o governo, esse conceito elimina a necessidade de construção de vilas no entorno das usinas, o que reduz o risco de desmatamento. Os funcionários serão levados de helicóptero para o trabalho, onde ficarão por períodos mais longos.

“Estão tão embriagadas com essa orgia energética que ficaram criativos. Esse folhetim da Eletrobrás apresenta uma chamada inovação na construção de hidrelétricas na Amazônia. O tom é de ufanismo, tipo, ‘hidrelétricas do bem’ ou ‘desmatamento cirúrgico’ (inspirado no Bush) ou ainda ‘reflorestamento radical’”, critica Telma Monteiro.

O anúncio do Complexo Tapajós deu origem ao Movimento “Aliança Tapajós Vivo”, cujo objetivo “é empatar a construção de qualquer hidroelétrica na bacia do Tapajós, sem diálogo real com as comunidades e os movimentos sociais”.

Quem se opõe de forma contundente ao projeto são os povos indígenas Munduruku. Perguntam eles sobre a hidrelétrica: “Para quem vai servir? Será que o governo quer acabar todas as populações da bacia do Rio Tapajós? Se apenas a barragem de São Luis for construída vai inundar mais de 730 Km². E daí? Onde vamos morar? No fundo do rio ou em cima da árvore? Aximãyu’gu oceju tibibe ocedop am. Nem wasuyu, taweyu’gu dak taypa jeje ocedop am (não somos peixes para morar no fundo do rio, nem pássaros, nem macacos para morar nos galhos das árvores. Nos deixem em paz. Não façam essas coisas ruins. Essas barragens vão trazer destruição e morte, desrespeito e crime ambiental, por isso não aceitamos a construção das barragens. Se o governo não desistir do seu plano de barragens, já estamos unidos e preparados com mais de 1.000 (mil) guerreiros, incluindo as várias etnias e não índios”, afirmam eles.

Em carta aberta às autoridades e à população brasileira, os povos da bacia do Tapajós,  denunciaram: “Temos clareza de que os impactos ambientais, econômicos, sociais e culturais, na bacia do Rio Tapajós comprometem a vida humana, animal e vegetal, sem respeitar fronteiras geopolíticas, nem acordos governamentais.  Assim, denunciamos a conivência passiva e ativa do governo e seus órgãos, diante dos crimes cometidos pelas empresas construtoras de barragens (Andrade Gutierrez, Odebrecht, Camargo Corrêa, etc.) e empresas eletro-intensivas (Albras, Alunorte, VALE, Pará Pigmento, Alcoa, Itacimpasa, Imerys Rio Capim Caulim, etc.) que consomem muita energia, geram pouco emprego, saqueiam nossos recursos naturais, contaminam nossos rios, terra, floresta, ar e destroem e violam os direitos das comunidades locais e comunidades indígenas”.

Transposição do rio São Francisco

A transposição do Rio São Francisco está entre as mais importantes obras do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC. O argumento do governo é de que obra garantirá a segurança hídrica na região semi-árida a 12 milhões de pessoas. O movimento social, contrapondo-se aos dados do governo afirma que apenas 4% das águas retiradas da vazão do rio serão usadas para atender o consumo da população difusa, 26% irão para o abastecimento urbano e industrial e os 70% restantes para irrigação. Os dados a partir de estudo do WWF afirmam que “é simplista e utópico imaginar que grandes obras de engenharia podem resolver os problemas de escassez de água, sem impactos ambientais e sociais bastante significativos”.

Na opinião do movimento social a obra irá beneficiar sobretudo os interesses do agro e do hidronegócio. Roberto Malvezzi da Comissão Pastoral da Terra – CPT, afirma que há propostas melhores para o semi-árido brasileiro do que a transposição e acusa o projeto de beneficiar os interesses do grande capital. “Nós temos tentado dizer à sociedade brasileira que o projeto, que aparece como que para acabar com a sede do povo tem por trás o interesse poderoso da agroindústria, do complexo siderúrgico e de uma elite que irá se beneficiar com essa água. Isto significa que a transposição não tem a finalidade de saciar a sede das pessoas mais necessitadas”, diz Malvezzi.

O bispo D. Luis Cappio que se tornou um símbolo na luta contra a transposição há muito tempo insiste na tese de que o rio S.Francisco está numa UTI e que “um anêmico não pode doar sangue”. Cappio e o movimento social defendem a revitalização do rio. “Antes de exigir que o rio seja utilizado para o multiuso, é preciso revitalizá-lo. O governo precisa dar condições de vida ao anêmico para depois tirar seu sangue”, diz ele, e acrescenta que “dos 5.400 km de margens do rio, apenas 5% das matas ciliares estão preservadas”.

Além da revitalização do rio, o movimento social defende para o meio rural obras que têm a lógica da chamada convivência com o semi-árido – a captação da água de chuva do meio rural tanto para beber quanto para produzir e para o meio urbano a implementação da obras do Atlas do Nordeste. A transposição do rio S.Francisco encerra em si mais do que um debate sobre a sua viabilidade técnica. O projeto coloca em discussão o modelo de desenvolvimento que se deseja para a região e para o país.

Agrocombustíveis

O tema dos biocombustíveis entrou na agenda mundial a partir da crescente consciência planetária de que a crise ambiental é grave e ameaça o planeta. Desde então, os biocombustíveis se tornaram um tema mundialmente importante como matriz alternativa às matrizes fósseis e poluidores, particularmente o carvão e o petróleo. A produção de energia alternativa a partir de oleaginosas – vinculado a um programa de incentivo a pequenos agricultores – transitou, porém rapidamente para a produção em larga escala do etanol a partir da monocultura da cana-de-açúcar.

No Brasil, o tema ganhou projeção a partir da visita do então presidente norte-americano George Bush em março de 2007 ao país. Na oportunidade o presidente americano destacou projeto do EUA em que até 2025 um quarto da frota americana de veículos deverá rodar utilizando biocombustível.

O Brasil viu nessa possibilidade a chance de se tornar competitivo no mercado internacional numa área em que tem experiência. O Brasil, junto com os Estados Unidos, produz hoje 72% do etanol produzido no mundo, entretanto o etanol brasileiro é mais competitivo uma vez que é extraído da cana-de-açúcar. A cana gera 7.300 litros de álcool por hectare, enquanto o milho não produz mais do que 3.000 litros. Tamanha produtividade ajuda a entender a corrida de investidores estrangeiros por terras e usinas no Brasil.

O agronegócio é um dos filões de maior apoio do BNDES. Particularmente no financiamento de usinas para a produção do etanol, o banco vem investindo pesadamente. Para 2010, o BNDES identificou 89 projetos de novas unidades, das quais 51 já estão em andamento.

A opção em privilegiar o etanol transformado em commoditie de exportação vinculado aos interesses de grandes grupos – o próprio presidente Lula transformou-se numa espécie de caixeiro-viajante do etanol brasileiro e chegou a chamar os usineiros de heróis e personalidades internacionais – fez com que o movimento social – Via Campesina – passasse a denominar os biocombustíves de agrocombustíves. Para os movimentos: o etanol tem como objetivo a manutenção do padrão de consumo american way of life e isso significa em última instância “tanques cheios a custas de barrigas vazias”.

Corroborando análises do movimento social, a ONU em um relatório intitulado “Bioenergia Sustentável” alerta que se for mal implementada, a tecnologia que promete ao mesmo tempo combater o efeito estufa e liberar o mundo do petróleo acabaria causando fome e destruição de habitats. A preocupação do movimento social com a perda da soberania alimentar nos países pobres e em desenvolvimento é corroborada por um crescente número de especialistas  que alertam para o impacto sobre os preços dos alimentos e regiões do planeta em que a proteção ambiental é muito frágil.

Ainda na perspectiva de questionamentos à produção do etanol em larga escala emergiu com força no debate as conseqüências da monocultura da cana relacionada à exploração  do trabalho humano. A cana-de-açúcar traz consigo miséria e condições de trabalho aviltantes para um contingente ainda grande de trabalhadores no campo – os cortadores de cana. A pesquisadora Maria Aparecida de Moraes Silva, uma das maiores autoridades brasileira no estudo do impacto da monocultura da cana na exploração da mão-de-obra destaca que de 2004 a 2007 ocorreram 21 mortes, supostamente por excesso de esforço durante o corte da cana.

Do ponto de vista econômico, a aposta no etanol significa na realidade uma reprimarização da pauta de exportação brasileira, ou seja, uma volta ao passado, ao açúcar, à borracha. Na opinião do economista Reinaldo Gonçalves, “o Brasil caminha para o que chamamos de especialização retrógrada, que envolve a fragilização do aparelho produtivo brasileiro”.

O etanol é ainda uma ameaça constante aos biomas da Amazônia, Cerrado e Pantanal. Apenas recentemente o presidente Lula anunciou a Lei do Zoneamento Agroecológico da Cana. Com a medida adotada pelo governo, o cultivo da cana-de-açúcar fica proibido na Amazônia e no Pantanal. Entretanto, a lei proíbe apenas novos empreendimentos nessas regiões. Dessa maneira, as usinas que já operam na Amazônia e na área do entorno do Pantanal mato-grossense, têm sua permanência e produção garantidas. O projeto estimulará novas plantações de cana em áreas de pastagens degradadas.

Ressalte-se que a referida lei não surgiu tanto da vontade de preservação do governo, mas da pressão do mercado internacional, que poderia boicotar o etanol brasileiro. Revela-se, pois uma tentativa mais de “esverdear” o biocombustível brasileiro, e dar uma resposta aos críticos internacionais e fazer passar uma imagem de um país preocupado com o ambiente.

A lógica “modernizadora” do campo brasileiro levado a cabo pelo agronegócio desconsidera as populações nativas locais e o meio ambiente. Porém, também é importante destacar que os povos indígenas travam uma forte resistência a essa lógica, como também o sem terra são testemunhas do escândalo da concentração da terra e contra ela lutam.

Programa Nuclear

O Brasil retomou o programa de energia nuclear com o projeto de construção de oito usinas nucleares até 2030. O argumento do governo para retomar os investimentos em energia nuclear é a necessidade de diversificar a matriz energética e de que se trata de uma energia limpa. A primeira etapa do programa nuclear já começou com construção de Angra 3 a um custo superior a 7 bilhões e previsão de funcionamento em 2013. Suspensa em 1986, Angra 3 está contemplada no Plano de Aceleração do Crescimento – PAC.

Os que se opõe à energia nuclear afirmam que se trata de uma energia perigosa, além do problema do armazenamento dos rejeitos nucleares – rejeitos emitem radiação por milhares de anos –, uma das grandes questões não resolvidas até hoje. Ao mesmo tempo há argumentos que afirmam que a usina nuclear pode ser tão poluente quanto a termelétrica.

Segundo o Greenpeace as emissões se produzem em todas as etapas de produção da energia nuclear – da extração do urânio ao transporte dos resíduos radioativos, passando pelas obras civis da usina em si e pela transformação do minério em combustível.

Considerando-se que energia nuclear é contraproducente por várias razões, por que o governo a está ressuscitando? Três razões se apresentam: a mais difundida refere-se à crise energética. Angra 3 atenuaria a falta de energia que se aguarda para daqui a alguns anos. Outra diz respeito à tentativa do governo de diversificar as matrizes energéticas. O projeto do governo é elevar a participação da energia atômica de 2% para 5%. A razão, mais velada, seria que os militares têm interesse na continuação das pesquisas nucleares. As usinas nucleares seriam um pretexto para seguir adiante na pesquisa nessa área.

Pré-Sal

Relacionado e inserido no debate da crise energética, encontra-se a fabulosa riqueza recém anunciada pelo Brasil: a descoberta das mega-jazidas de pré-sal. O pré-sal olhado a partir das crises climática, econômica, alimentar e energética é uma porta de saída ou se constitui num agravamento da totalidade da crise, ou ao menos em parte dela?

Em novembro de 2007 o governo anunciou a descoberta de uma mega-jazida de petróleo na Bacia de Santos batizada de Tupi. Esse megacampo é conhecido como pré-sal, uma vez que o petróleo está aprisionado a sete mil metros abaixo da superfície nas entranhas rochosas. Tido como de alta qualidade, o petróleo está enterrado sob dois quilômetros de água, mais dois quilômetros de rocha e, para completar, outros dois quilômetros de crosta de sal – por isso denominado de pré-sal.

Com a descoberta dessas mega-jazidas que podem estar interligada num único campo e envolve algo entre 70 bilhões a 100 bilhões de barris de óleo, o país que atualmente ocupa o 24º lugar entre as maiores reservas petrolíferas do mundo, poderia passar para o oitavo ou nono lugar, posições hoje ocupadas por Venezuela e Nigéria.

O presidente, lembrando os tempos da campanha ‘O petróleo é nosso’ afirmou que o “Petróleo não pode ficar na mão de meia dúzia” e vem afirmando que os lucros com a exploração do petróleo nas reservas recém-descobertas devem ser usados para “resolver definitivamente os problemas da educação”. O pré-sal é o “passaporte para o futuro”,  declarou Lula na cerimônia de lançamento do marco regulatório de exploração do petróleo da camada pré-sal.

Especialistas em energia e meio ambiente levantam dúvidas sobre a escolha do governo brasileiro de investir maciças somas de dinheiro no desenvolvimento de uma fonte energética suja e finita, num momento em que o mundo se esforça para ampliar o uso de fontes limpas e renováveis. Dessa maneira, pode-se lançar mão do trocadilho: “o pré-sal é nosso, mas a sua poluição também”, como destacou o Greenpeace.

Com a descoberta e a possibilidade de exploração de mais energia fóssil não renovável, a tentação de frear os investimentos em energias mais limpas e renováveis não pode ser descartada. “O processo de exploração poderá abafar o nosso comprometimento com a busca e o aprimoramento de energias alternativas, que dependem inteiramente de alta tecnologia. Essa nova realidade influenciará as mais variadas esferas, mas, principalmente, a cabeça de nossos representantes políticos”, analisa o geólogo Jules Marcelo Rosa Soto.

A palavra “contradição” expressa bem o pré-sal. “Esse paradoxo está colocado com muita força. O velho e o novo se digladiam. Existe uma dificuldade de assumir novas posturas e perceber que o século XXI está trazendo demandas importantes, graves, que exigem de gestores públicos, privados e do cidadão a devida atenção, porque são escolhas que precisamos fazer rápido. Estamos promovendo uma escalada de depredação dos recursos naturais que tem custado caro, estamos fazendo do Planeta um lugar hostil”, alerta o ambientalista André Trigueiro.

Por conta disso, o pré-sal pode ser uma bênção ou uma maldição para o Brasil. Pode ajudar a diminuir as desigualdades sociais ou aprofundá-las. Pode representar um impulso para jogar o país no século XXI de energia limpa, ou generalizar ainda mais a matriz energética altamente poluente.

IV – Conjuntura Político-eleitoral 2010

Lula. O grande consenso nacional?

Impressiona a todos os analistas políticos, os altos índices de popularidade de Lula. Os índices de aprovação ótimo/bom do seu governo beira aos 80% em todos os segmentos sociais, econômicos e geográficos do país.

A performance arrebatadora de Lula é em parte o que explica a candidatura competitiva de Dilma Rousseff – ninguém dúvida de que Lula vem conseguindo algo difícil no mundo da política: a transferência de votos.

Lula se tornou para muitos, principalmente para organismos como o Banco Mundial e o FMI, uma referência de governo, capaz de unir o que antes era impensável: o mercado com o social. Por um lado, preservam-se os interesses da banca financeira, e por outro, atende-se os pobres com o Bolsa-Família – um vigoroso programa social que distribui renda para mais de 12 milhões de famílias brasileiras. A síntese dessa singularidade é manifesta pelo livre trânsito de Lula no Fórum Social Mundial e no Fórum Econômico Mundial. Em ambos, Lula é aplaudido.

O próprio presidente assume que desempenha a função de “conciliador de classes”: “Tenho a graça de Deus de transitar bem de uma reunião com banqueiros para uma de catadores de lixo”, disse Lula, em entrevista ao jornal argentino Clarín.

Na opinião do jornalista, Fernando de Barros e Silva, “Lula é nosso esperanto social, a encarnação do “&” que conecta e separa Casa Grande e Senzala. Ele é a expressão máxima da democracia brasileira. E talvez de seus limites”. Algo semelhante afirma Luis Nassif: “O que Lula propõe é uma construção política sofisticadíssima, de ser a síntese do Brasil moderno, do novo Brasil que surge e do Brasil arcaico”.

O próprio Lula reafirma-se como o condutor do tertius da luta de classes ao afirmar que “quando fui candidato a presidente pela primeira vez, os empresários tinham medo de mim como o diabo tem medo da cruz. Uma parte das pessoas pobres deste país também tinha medo de mim. Hoje tenho certeza de que os empresários não têm mais medo do Lula”.

Na análise do sociólogo Werneck Vianna, Lula evoca o Estado Novo do período getulista. “Qual foi a operação que o Estado Novo getuliano fez? Exatamente esta: tudo o que era vivo na sociedade ele trouxe para si. Tal como agora. Trouxe para si e, de cima, formula políticas para a sociedade”, diz ele. Segundo o sociólogo, “um governo que absorve as representações corporativas de trabalhadores e empresários, com um chefe de Executivo carismático a mediar interesses conflitantes, fortalecido pela crescente centralização do Estado”. “Ele [Lula] tem força, carisma, para segurar essa colcha e essa federação é boa para todos”.

O sociólogo Francisco de Oliveira é ainda mais ácido na crítica ao governo Lula. Segundo ele, Lula pratica a hegemonia às avessas, ou seja, a classe dominante aceitou ceder aos dominados o discurso político, desde que os fundamentos da dominação que exerce não sejam questionados. Na sua opinião a chegada do PT ao Estado não significou rupturas com o status quo anterior. Se por um lado é inegável que Lula alterou a rota do modelo econômico, principalmente no segundo mandato, por outro, não mudou a lógica de funcionamento da política – a concepção de um Estado ainda marcadamente patrimonialista que se manifesta na manutenção de uma base de sustentação que trouxe a tona figuras políticas associadas aos métodos políticos da Velha’ República – práticas coronelistas que agregam autoritarismo, assistencialismo e clientelismo com a expertise de se valer da presença no espaço público para atingir objetivos privados.

“O que está unificando o país hoje é um projeto expansionista burguês com vocação grão-burguesa”, diz Werneck Vianna. Segundo ele, o Estado traduz este movimento, ele é “ator, mas também é objeto”.  Não se trata de um “Estado patrão”, esclarece, “o que se tem aí é uma associação, uma vinculação entre política e economia, governo e empresas, governos e atores políticos e empresariais, que, juntos, no Estado e no governo, implementam essa política. As elites econômicas, por exemplo, são partícipes disso”. Os fundos de pensão também têm participação direta nesse processo, e esse é um aspecto complicado, “porque eles atestam que esse movimento não se limita às elites econômicas da indústria, do agronegócio e está envolvendo também, no mínimo, a vida sindical. Basta olhar para a composição desse governo, onde todas as classes e frações de classes se encontram representadas”, menciona.

O esvaziamento do movimento social

A interpretação de Werneck Vianna é a de que o governo Lula engoliu a todos. O movimento social grita, reage, mas no limite não rompe com o governo; a direita esperneia, protesta, mas rende-se ao governo de coalizão; o capital produtivo e financeiro reclama, mas está contente com Lula. No máximo o presidente, deixa “que os dissídios internos amadureçam e no final arbitra e decide”. Lula tornou-se o conciliador de classes.

A grande aposta foi a de que Lula no poder faria um governo sintonizado com o seu histórico de movimento social. Porém, o que se vê é a opção de Lula pela continuidade da modernização conservadora. Prevaleceu o Lula do ABC – da lógica do desenvolvimentismo associado ao capital transnacional ajustado aos tempos da globalização, um governo que pratica o Pós-consenso de Washington. Para as demandas dos movimentos sociais encontrou uma solução intermediária: o apaziguamento da miséria.

A adoção do ‘pós-neoliberalismo pragmático’ de Lula fragmentou a esquerda, os movimentos sociais e os intelectuais. Passou-se a uma relação tensa, ambígua e complexa. Na análise do cientista político canadense, Leo Panish, o governo Lula “desmobilizou a CUT e não chegou a desmobilizar o MST, mas desencorajou sua mobilização. Ou seja, é um governo que tratou de desmobilizar as forças organizadas, com forte poder de mobilização social, para governar com os desmobilizados”.

Eleições 2010. Diferenças menores do que se pensa.

Olhado sob a perspectiva da análise anterior, do novo paradigma instaurado por Lula, as diferenças de projeto político de José Serra (PSDB) e Dilma Rousseff (PT) são menores do que se imagina. Os dois candidatos podem ser definidos como “desenvolvimentistas” (uma corrente que defende o Estado como protagonista importante no desenvolvimento do país). Nessa perspectiva, nem um dos dois defende as teses do neoliberalismo (fragilização do papel do Estado).

Defendem, entretanto, a economia de mercado e são alinhados às teses macroeconômicas do equilíbrio fiscal (política monetária rigorosa: controle da inflação, dos gastos públicos, pagamento dos juros da dívida interna, etc). Também os dois defendem investimentos na área social, sobretudo em políticas sociais de caráter compensatórias, das quais, o Bolsa-Família é o exemplo maior. Segundo o sociólogo Francisco de Oliveira, o Bolsa-Família “é um programa politicamente regressivo. Anula a transformação. Funcionaliza a pobreza. É um programa de apaziguamento da pobreza. Acho muito perigoso. Tende a mitificar a política”, diz ele.

Ou seja, sob a perspectiva do projeto econômico, não há diferenças substanciais de fundo. Evidentemente que José Serra pode ser pressionado pelo DEM, seu principal aliado, para que implemente um governo mais liberal, porém hoje, o DEM está fragilizado e terá pouca influência em seu governo.

Do ponto de vista do “jeito de fazer” política também não haverá muita diferença entre os dois. Se o PSDB tem o DEM como grande aliado, o PT tem o PMDB. Ambos, DEM e PMDB são bastante fisiológicos e num governo de partilha do poder “arrancam” o que podem – cargos e recursos – para dar sustentação política aos “titulares” do poder. Ou seja, tanto Serra como Dilma terão que governar com bases de apoio fisiológicas e não romperão com a política clientelista – o uso do Estado para objetivos privados.

A diferença maior entre os candidatos ficará por conta da relação com o movimento social. José Serra tem um histórico de difícil relação com o movimento social – sindicatos, MST, movimentos populares –, basta ter presente seu mandato como governador em São Paulo. Dilma Rousseff, por sua vez, terá mais facilidade na relação com o movimento social. Com uma possível vitória do Serra, a relação com o movimento social, certamente, mudaria. Acredita-se que Serra seria mais duro e inflexível nas questões que envolvem tratamento com o movimento social, razão pela qual seriam mais tensionadas. As chances de as manifestações sociais serem tratadas com maior rigor e repressão aumentam num governo do PSDB.

Dentre as candidaturas, a novidade maior fica por conta da candidatura de Marina Silva pelo PV. A novidade reside no fato de que a sua candidatura é a manifestação de algo novo na sociedade mundial e brasileira: a emergência da agenda ambiental. Registre-se, entretanto, que o PV é um partido que acumula a maioria dos problemas existentes nos demais partidos: falta de base social, burocratismo, ausência de conteúdo político, caciquismo, etc. Por outro lado, a própria Marina tem tido manifestações dúbias sobre vários temas polêmicos, inclusive sobre a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte.

Há ainda a candidatura de Plinio Arruda Sampaio pelo PSOL. Personagem já mítico da política brasileira, do extinto PDC, cassado pela ditadura e egresso do PT, Plínio se define como socialista e cristão. Sob sua candidatura Plinio a define da seguinte forma, consciente de que suas chances são remotas: “A importância de romper com o script montado para essa eleição, que impede o debate dos verdadeiros problemas e soluções para o Brasil e limita a discussão sobre as medidas técnicas. Quero fazer esse debate, ajudar a construir consciência política e mobilização social”.

PT-PSDB. Mais do que uma disputa por projeto, uma disputa pelo poder

A disputa pela presidência, salvo acontecimentos excepcionais se dará entre José Serra do PSDB e Dilma Rousseff, “recém-chegada” ao PT. Ambos, de partidos que apesar da intensa disputa cada vez mais se aproximam programaticamente. A “breve” história na sequência auxilia a compreender o projeto político de ambos

Vejamos:

Em 2010, o PT e o PSDB disputarão pela quinta vez consecutiva a Presidência da República. Em duas delas (1994 e 1998), o PSDB levou a melhor; nas duas seguintes (2002 e 2006), ganhou o PT. Os dois partidos perdem em tamanho para o PMDB, partido que reúne o maior número de parlamentares no Congresso e mandatos no executivo em âmbito municipal e estadual, porém, PT e PSDB, já há algum tempo polarizam a política nacional. Os demais partidos, com poucas exceções, gravitam em torno de ambos.

PT e PSDB são partidos novos, surgem nos anos 1980 no denominado período da redemocratização brasileira, porém suas histórias começam bem antes e estão vinculados à modernização conservadora da sociedade brasileira. É impensável pensar o PT e o PSDB sem a Era Vargas, os anos Juscelino Kubistchek (JK), o período autoritário, e recentemente, a inserção do país na economia mundial. O amadurecimento que permite a origem desses partidos tem a ver por um lado com o amadurecimento tardio do capitalismo brasileiro e, por outro, e consoante a essa dinâmica, com o surgimento de uma forte sociedade civil.

Em que pese a intensa e já histórica disputa que travam, os ataques verbais e acusações que trocam mutuamente e permanentemente, as diferenças dos partidos, principalmente programática e de método – o jeito de se fazer política –, são menores do que se pensa. A afirmação pode parecer pouco compreensível e anacrônica ainda mais às vésperas das eleições e, sobretudo, quando se ouve reiteradamente que as eleições colocarão em disputa diferentes projetos políticos. A interpretação de que PT e PSDB são como “óleo e água” é propagada principalmente pelos movimentos sociais, e de fato a partir do olhar do movimento social há diferenças que se justificam, porém, a defesa dessa tese já não se faz apenas a partir de argumentos ideológicos como se via nos anos 1980 e 1990.

PT e PSDB são estampas da matriz paulista – o “motor” do capitalismo brasileiro – e com o advento da nova ordem econômica internacional, a globalização, a representação financista (PSDB) e produtivista (PT) fizeram com que os mesmos se aproximassem programaticamente.

Vale aqui lembrar a análise do sociólogo Francisco Oliveira, de que os dirigentes de PT e PSDB são metades de uma mesma laranja. Segundo ele, “a partir da entrada do Brasil no processo de globalização, os tucanos promoveram as privatizações e ganharam prestígio e poder nas empresas privatizadas. Muitos ocupam altos postos nessas empresas. Já os ex-sindicalistas ligados a Lula têm funções importantes nos fundos de pensão, que são grandes investidores nessas empresas. Formam uma espécie de nova classe social, nesse processo de globalização financeira”.

Algo semelhante pensa Luiz Werneck Viana, para quem “o PT e o PSDB nasceram no mesmo lugar, São Paulo, lugar por excelência do mercado, do liberalismo, do anti-Estado”. Segundo ele, “a matriz paulista do PT e do PSDB remete para as suas fortes ligações com o capital produtivo e financeiro. Particularmente, o PT paulista é tributário de um determinado tipo de relação capital-trabalho que não contempla quem está fora dela, daí o pouco apetite de Lula em promover rupturas incisivas e contentar-se com as políticas compensatórias na área social”.  A partir dessa perspectiva, Fernando Henrique Cardoso teria governado oito anos a partir dos interesses paulistas articulados aos interesses do capital financeiro internacional, e Lula a partir da aliança “trabalho-capital” (capital produtivo) sem, entretanto, afrontar os interesses do capital financeiro.

Ou seja, o PT no governo não rompeu com a política econômico-financeira do PSDB e tratou de juntar à ortodoxia econômica políticas sociais de forte incidência junto aos mais pobres; agora tampouco, o PSDB romperá com as políticas sociais do PT.

Modelo neo-desenvolvimentista não sofrerá interrupção

O resultado de oito anos do governo Lula afirmaram o modelo neo-desenvolvimentista como a rota a ser seguida. A junção do capital financeiro com o capital produtivo acrescido de políticas sociais de mitigação da pobreza tornou-se a plataforma comum a ser perseguida pelos candidatos à presidente. É em função dessa lógica que se pode afirmar que não há diferenças programáticas substancias entre a candidatura de José Serra (PSDB) e Dilma Rousseff (PT).

Serra já mais de uma vez manifestou que defende a presença do Estado na economia diferentemente do que pregavam FHC em Alckmin. O fato é que ganhe Dilma ou ganhe Serra, ambos são vistos como continuadores das bases políticas e econômicas do governo Lula. O próprio Lula tem repetido isso à exaustão: “O Brasil está vivendo um momento rico, porque se a disputa se der entre Serra, Dilma e Marina, é um avanço extraordinário”.

O economista João Manuel Cardoso de Mello, que deu aulas para Serra e Dilma, comenta: “A Dilma e o Serra são muito parecidos, têm a mesma visão de mundo. Se houvesse uma reorganização política, eles estariam no mesmo partido. É uma gente que não existe mais na política, gente compromissada com o Brasil. Ambos podem ser enquadrados no conceito inglês de servidor público”.

V – Conclusão

Considerando-se o conjunto da análise anterior e tendo presente o papel do movimento social que é identificado como independente e comprometidos com os interesses populares, e exerce a análise crítica dos fatos, é que se pode afirmar que o Brasil parece não perceber que frente à crise epocal, manifesta sobretudo na crise ecológica, joga um papel estratégico. No contexto da crise ambiental, o país abre mão de utilizar racionalmente os recursos naturais limitados e opta por iniciativas preocupantes.

O que se percebe, por um lado, é o ganho de uma consciência ecológica maior em relação as gerações anteriores que se traduz na crítica a mega-projetos que agridem o meio ambiente: Itaipu, Balbina, Tucuruí, Transamazônica, são exemplos. Por outro lado, apesar da consciência dos erros cometidos, o país caminha para outros erros – a metáfora do farol de um automóvel virado para trás: ilumina o trajeto percorrido, mas não aclara o futuro. Assim como a nossa geração lamenta os erros cometidos pelas gerações anteriores, tudo indica que as gerações futuras lamentarão as decisões de hoje. Tome-se como exemplo maior a insistência na construção da hidrelétrica de Belo Monte.

O ambientalista Washington Novaes alerta que o Brasil se encontra numa encruzilhada histórica que pode ser decisiva para o futuro de nação soberana e um ganho comparativo mundial. Segundo ele, “um país que tem a biodiversidade que o Brasil tem, os recursos hídricos, a insolação o ano todo, enfim, com a riqueza que o país tem, deveria ter uma estratégia que colocasse esse fator escasso no mundo numa posição privilegiada como base de políticas. Mas essa estratégia não existe”.

O país foi acometido pela obsessão do crescimento. Fala-se em “crescer, crescer e crescer”. O país sonha em reeditar o projeto desenvolvimentista de Vargas e JK e transformar o país num canteiro de obras. Fala em destravar o país. A meta-síntese do projeto de país do governo é o Programa de Aceleração do Crescimento  – PAC que se traduze em investimentos em  Infra-estrutura Logística (Rodovias; Ferrovias; Hidrovias; Portos; Aeroportos); Infra-estrutura Energética (Combustíveis Renováveis; Geração de Energia Elétrica; Transmissão de Energia Elétrica; Petróleo e Gás Natural) e Infra-estrutura Social e Urbana (metro, saneamento, habitação).

O PAC manifesta um silêncio absoluto sobre a questão ambiental e aponta para a derrota do conceito da “tranversalidade”. O conceito da “transversalidade” sugeria que no cerne de todas as decisões do país fossem se levasse em conta a questão ambiental. Por detrás da concepção de transversalidade está a idéia de que a questão ambiental não pode ser tratada apenas como mais uma política pública, mas que em função da crise ecológica se tornou a questão premente e mais importante sob a qual todas as demais deveriam estar circunscritas.

Esse princípio que guarda uma similitude com o princípio da ‘ecologia da ação’ foi derrotado internamente no governo. As derrotas do conceito da “transversalidade” manifestam-se, entre outras, como se viu, na aceitação dos transgênicos, na transposição do Rio São Francisco,  na produção do etanol, na retomada do programa de energia nuclear, na polêmica da construção das hidrelétricas no Rio Madeira e Belo Monte, entre outras.

A grande questão posta hoje é que tipo de crescimento econômico queremos? Por muito tempo, inclusive na esquerda, acreditou-se que o crescimento econômico seria a varinha de condão para a resolução de todos os problemas. Particularmente da pobreza. A equação é conhecida. O crescimento econômico produziria um círculo virtuoso: produção-emprego-consumo. Porém, o axioma de que apenas o crescimento econômico torna possível a justiça social não é verdadeiro. Será que o grande projeto brasileiro é transformar todos cidadãos em consumidores?

Tendo presente a disputa eleitoral que se avizinha, percebe-se que o projeto em curso dificilmente será interrompido. Teremos mais do mesmo, com pequenas mudanças, a mais significativa, talvez, na relação com o movimento social dependendo de quem ganhe.

É preciso complexificar o debate. O debate sugerido, a partir do princípio da ‘ecologia da ação’ recomenda que devemos construir uma sociedade que seja sustentável com a natureza, às necessidades humanas presentes e futuras, com uma ética solidária, definidas desde os setores populares, tendo como fim a construção de uma sociedade baseada em valores da solidariedade, liberdade, democracia, justiça e equidade.

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