Pesquisa estimula políticas públicas em Cidade de Deus

Levantar informações que possam orientar políticas públicas foi o principal objetivo do “Levantamento socioeconômico na comunidade Cidade de Deus do Rio de Janeiro”, recém lançado pelo Ibase. A pesquisa, que ouviu 1.548 moradores(as) da localidade, foi realizada entre junho e novembro de 2009. O trabalho contou com o apoio da Arci – Cultura e Sviluppo (ONG italiana dedicada ao tema do desenvolvimento). O relatório final da pesquisa traz recomendações para as áreas de educação, juventude e geração de trabalho e renda. O coordenador do Ibase, Itamar Silva, comenta os principais resultados do levantamento.

Ibase – Como surgiu a pesquisa?

Itamar Silva – A pesquisa faz parte de um projeto focado no desenvolvimento territorial no Brasil, com recorte específico de economia solidária, formação e orientação para o trabalho. O projeto é desen

volvido em três áreas: na Cidade de Deus, na Zona Oeste, no Santa Marta, em Botafogo, e na região da Grande Tijuca. Mas a pesquisa foi desenvolvida somente na Cidade de Deus. O objetivo é orientar nossas ações nessa localidade. Quais as lacunas existentes? Como ela está organizada e como um projeto pequeno como o nosso pode contribuir? E, é claro, o objetivo também é compartilhar essas informações com outros parceiros, outros atores de Cidade de Deus, para que mais gente tenha a oportunidade de pautar iniciativas a partir desses dados. Nesse sentido, a pesquisa contribui com a estruturação da Agência de Desenvolvimento Local de Cidade de Deus.

Ibase – Por que a Cidade de Deus?

Itamar Silva – Das áreas onde trabalhamos, a Cidade de Deus é a maior em termos populacionais. Além de haver, dentro de um mesmo território, inúmeras diferenças.

Ibase – Você acredita que os resultados seriam os mesmos se os dados fossem levantados em outras localidades, como o Santa Marta e a Grande Tijuca, por exemplo?

Itamar Silva – Pode haver diferenças, pois as favelas são múltiplas. E quando se faz esse recorte zonas sul, norte e oeste, há diferenças. Tem a ver com a regionalidade, com a forma como a própria cidade se constituiu.

Ibase – Quais seriam as principais diferenças?

Itamar Silva – Na zona sul, por exemplo, há mais oferta de serviços. Os moradores encontram mais acesso ao mercado de trabalho, à escola. Quando observamos a questão da escolaridade, isso fica muito nítido. Embora a pesquisa não tenha sido feita na zona sul, a informação que temos é que a oferta de escolas de ensino médio nessa área específica é muito maior. Então, existem diferenças.

Ibase – A dificuldade de acesso à educação seria um importante ponto levantado pela pesquisa, não?

Itamar Silva – Sim. É exatamente a ausência ou a existência insuficiente de escolas do ensino médio. Essa é uma demanda muito explícita em Cidade de Deus. Só tem uma para toda a população. Temos dados que revelam que apenas 19,5% das pessoas afirmam haver escolas de ensino médio perto de casa. Isso revela que, de fato, a educação precisa ser vista de forma muito particular em Cidade de Deus.

Ibase – Quais as principais conclusões do levantamento?

Itamar Silva – O estudo revela que existe um alto índice de trabalho informal em Cidade de Deus. Essa é uma característica das comunidades populares ou de favelas. Apenas 44% dos jovens adultos completaram o ensino fundamental. A questão da renda chama a atenção, 30% têm renda familiar de até um salário mínimo. É um dado muito significativo, revela a pobreza dentro da pobreza. Mas um outro dado interessante é que 34% da população tem computador em casa. Ou seja, há uma população com acesso à alfabetização digital. Mesmo que o acesso à internet seja também uma demanda da localidade.

Ibase – Quais as sugestões que a pesquisa faz?

Itamar Silva – Primeiro, investir em educação profissional formal em Cidade de Deus. Há muitas ofertas de pequenos cursos, breves, mas há demanda pelo ensino formal. Ampliar a rede pública de educação, acesso ao ensino técnico e superior. Além disso, é preciso promover atividades que incluam os jovens, criando condições para trabalho, oportunidades. É preciso também estimular iniciativas que gerem renda. Apostamos na economia solidária.

Ibase – Segundo a pesquisa, 71% não participam de práticas social-comunitárias, embora 26% participem. O que esse dado significa?

Itamar Silva – A expectativa é achar que na favela todos são unidos e trabalham pelo mesmo objetivo, mas não é verdade. É um estereótipo, um mito. Na verdade, as favelas refletem a sociedade. Ela não está fora desta cidade marcada por individualismo, competição. É parte e também reflete essa dinâmica. O trabalho pode ajudar a revelar, para a própria comunidade, o que ela é. E pode nos permitir atuar ali de forma a estimular iniciativas mais coletivas. A economia solidária ajuda a buscar ou retomar valores que estão diluídos nessa dinâmica competitiva.

Ibase – Existem iniciativas que podem ser encaradas como economia solidária na Cidade de Deus?

Itamar Silva – Atualmente, não dá para dar esse carimbo. Existem muitas iniciativas autogestionadas e algumas com potencial mais solidário. Tem artesanato, culinária, cooperativas de construção civil.

Ibase – A economia solidária seria, então, uma saída?

Itamar Silva – A gente vive em um tempo em que o estímulo à individualidade é crescente. A economia solidária traz como potencial a oportunidade de repensar as relações na sociedade, mudar ou transformar a realidade a partir de relação coletiva, para que o lucro não seja mais importante do que o bem estar de todos. Não há saídas individuais para todo mundo. A economia solidária tem o potencial de resgatar um sentimento mais coletivo nesses espaços populares, principalmente.

Ibase – Os dados de escolaridade chamam muito a atenção: 44% não completaram o ciclo do ensino fundamental; apenas 6% alcançaram o ensino superior (completo e/ou incompleto). Ao mesmo tempo, há um alto índice de informalidade e uma população jovem: mais da metade dos moradores (53,5%) têm até 30 anos de idade. Como você percebe essa realidade?

Itamar Silva – As escolas não estão vazias, estão cheias. Faltam escolas. Quando metade da população é de jovens abaixo de 30 anos e existe um déficit de ofertas de escolas de ensino médio, isso impossibilita a elevação de escolaridade. A falta de oferta de escolas desestimula que jovens sigam no estudo. E vai mantendo a juventude fora, à margem do mercado. Reverter isso é o grande desafio.

Ibase – A pesquisa será encaminhada para autoridades, não é mesmo?

Itamar Silva – A pesquisa já está sendo compartilhada em nível municipal. A Secretária de Desenvolvimento Econômico Solidário esteve no lançamento da pesquisa em Cidade de Deus e a Secretaria Municipal de Habitação já nos pediu alguns dados. Mas também temos que estar ligados com a dinâmica local, com instituições que estão atuando em Cidade de Deus e que, a partir desses dados, podem qualificar as suas ações.

Ibase – Como a pesquisa está sendo divulgada?

Itamar Silva – Estamos divulgando esses dados por meio de mídias locais, por exemplo. É fundamental que Cidade de Deus se aproprie deles. Toda a informação produzida por meio de iniciativas dessa natureza deve ser devolvida para instituições locais fazerem uso a partir de seus interesses, bem como poder questionar e debater.

Ibase – É significativo o percentual de moradores que têm computador em casa (34%), embora, um em cada dois moradores (56%) não faça uso dele. Diante da pergunta sobre quais seriam as prioridades na área profissionalizante, 21% responderam “cursos para a área de informática”. Você acha que a a informática é vista como uma saída para o desemprego e a informalidade?

Itamar Silva – O acesso ao computador é importante para seguir no mercado de trabalho. É fundamental que mais moradores tenham acesso. Abre a perspectiva de entrar em contato com ofertas que estão distantes daquele local e, ao mesmo tempo, essa pessoa passa a sentir a necessidade de obter mais e novas informações.

Ibase – Então a informática poderia colaborar também para a transformação da realidade com relação a educação?

Itamar Silva – Não acho que a informática seja uma panacéia. Ela é fundamental para o acesso ao emprego, por exemplo. Mas a educação é fundamentalmente uma questão de política pública, de estado. Em Cidade Deus, se o estado não investir pesadamente, criando novas escolas, novas possibilidades de ensino público e médio, dificilmente vai conseguir reverter o quadro que temos hoje. A informática é importante, mas atua como coadjuvante no processo de antecipação a partir da escolaridade. Ela depende da iniciativa do poder público.

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