O imperialismo brasileiro está nascendo? Entrevista especial com Virgínia Fontes

“A história brasileira só pode ser entendida a partir dos processos de lutas sociais”

[Unisinos] – Para a historiadora Virgínia Fontes, estamos vivendo o nascimento do imperialismo brasileiro onde os grandes capitais originados aqui no país “estão se concentrando em uma proporção faraônica” e, assim, passam a fazer investimentos diretos fora do país, além de implantar empresas no exterior. A Petrobras e a Vale são bons exemplos disso. Em entrevista à IHU On-Line, realizada por telefone, a professora explicou como o imperialismo brasileiro está surgindo e se desenvolvendo, e analisa o comportamento dessa exportação de capital a partir da atuação dessas empresas fora do país. “Na canadense Inco, subsidiária da Vale, os metalúrgicos estão em greve há nove meses, porque a empresa está impondo uma drástica restrição de direitos. Isso significa que exportação de capitais brasileiros leva junto uma certa cultura da truculência, características das formas políticas brasileiras”, apontou.

Fontes refletiu ainda sobre o papel de órgãos como o BNDES na reestruturação do capitalismo brasileiro e na vertente imperialista que está surgindo. Além disso, ela fala sobre a atuação dos governos sul-americanos frente à expansão do imperialismo brasileiro. “Há contradições sutis que permitiram certo alívio para um conjunto de países frente à pressão dos EUA. Ao mesmo tempo, isso significa uma penetração maior em setores estratégicos de capitais de origem brasileira e associados. Assim, vão se introduzindo novas formas de relações desiguais e combinadas no interior da América do Sul”, descreveu.

Virginia Maria Gomes de Mattos Fontes é mestre em História pela Universidade Federal Fluminense e doutora em Filosofia pela Université de Paris X (França). Atualmente, é professora da Universidade de Brasília e da UFF. É autora de Reflexões Im-pertinentes. História e capitalismo contemporâneo (Rio de Janeiro: Bom Texto, 2005) e Dilemas da Humanidade – diálogos entre civilizações (Rio de Janeiro: Contraponto, 2008). Confira a entrevista.

IHU On-Line – Estamos assistindo ao nascedouro do imperialismo brasileiro, no qual empresas brasileiras se voltam para explorar a força de trabalho em outros países?

Virgínia Fontes – Tenho analisado a questão por dois caminhos: um é o da história contemporânea, do desenvolvimento do capitalismo nos últimos 50 e 60 anos, e o outro são as características específicas da sociedade brasileira. Então, começando pela história brasileira, desde 1960, Ruy Mauro Marini [1] apontava as características de um subimperialismo brasileiro. Isso, em função da industrialização, razoavelmente complexa, já atingida pela economia brasileira, assim como pela relativa autonomia do Estado com relação a cada fração capitalista, o que permitia uma atuação mais ampla e organizadora do conjunto dos capitais, e também pela superexploração do trabalhador e pela escassez de mercado interno.

O termo subimperialismo tinha a ver com o fato do Brasil se expandir, exportando capitais. E, naquele momento, principalmente, sob a forma de mercadorias. Houve uma exportação crescente de produtos manufaturados e industrializados para a América Latina. Considero que essa trilha, aberta por Ruy Mauro Marini, é muito importante, mas acho que hoje precisamos averiguar se as condições são exatamente as mesmas. Diria que há vários fatores importantes para se compreender no processo brasileiro contemporâneo.

Atualmente, diferente da exportação de mercadoria, os grandes capitais brasileiros estão se concentrando em uma proporção faraônica e passam a exportar capital sob forma de investimento direto no estrangeiro, e a implantar empresas no exterior.  E estes contam com o apoio de entidades públicas, como o BNDES e Banco do Brasil, por exemplo.

IHU On-Line – E qual a diferença dessa fase descrita por Marini para essa que está nascendo?

Virgínia Fontes – Ruy Mauro Marini tinha razão. A interconexão entre capitais de origem estrangeira e brasileiros só se aprofundou. Portanto, hoje é muito difícil distinguir entre um capital genuinamente brasileiro e um capital mesclado com capitais internacionais. O primeiro ponto é de que, no contexto internacional, a expansão do capitalismo contemporâneo só pode ocorrer sobre a forma de imperialismo. Porque o grau de concentração de capitais e de centralização exigido para que as burguesias brasileiras permaneçam capitalistas determina um saldo de exportação de capitais, no sentido de investimento direto no exterior e de extração de mais valor para além das fronteiras.

A segunda diferença, com relação a Marini, é que houve uma expansão do mercado interno, principalmente a partir dos anos 1970, não exatamente em função de melhorias salariais de redução da desigualdade. Ao contrário, as desigualdades se aprofundaram. Porém, expandiu-se, absurdamente, o crédito para todas as formas de consumo, desde o consumo especulativo e produtivo ao imediato, das famílias. Outro ponto importante é uma análise mais ampla do conjunto do processo histórico. Acho que isso irá caracterizar os saltos de etapa da sociedade brasileira.

A história brasileira só pode ser entendida a partir dos processos de lutas sociais. Temos três grandes momentos dessa história, sintetizando bastante. O primeiro ocorreu nas décadas de 1910 e 1920, quando aconteceu um enorme impulso, sobretudo urbanos, de lutas sociais. Uma industrialização incipiente, ainda originária, convive com formas de organização burguesa-agrária muito forte, já alcançando o âmbito nacional na escalada da organização proprietária de entidades de interesse, como a Sociedade Nacional de Agricultura, Sociedade Rural Brasileira etc.

A continuidade do processo de acumulação de capital, na década de 1920, impunha uma espécie de salto industrializador, através do famoso pacto entre o moderno e o atrasado. Foi uma ditadura contra os movimentos democratizantes, operários, urbanos e rurais, para controlar esse processo de reivindicações democratizadoras e, simultaneamente, um salto para frente na acumulação capitalista com uma expansão acelerada, com apoio do Estado, dos processos de industrialização e monopolização do capital. Isso já ocorreu de maneira integrada com os capitais internacionais.

O segundo momento é, novamente, de extensão das lutas populares no Brasil, entre 1955 e 1964. As reivindicações, além de democratizadoras, já começam a colocar em questão as próprias estratégias clássicas de acumulação no Brasil, já tentando unificar lutas urbanas e rurais. Novamente, este processo termina com a imposição da ditadura civil militar, de 1964, que teve como suporte uma extensão da organização burguesa e um aprofundamento dela no contexto do país como um todo. Essa malha organizadora contou com apoio direto dos Estados Unidos, porém, é preciso esclarecer que houve também um processo de organização interna das burguesias brasileiras, no sentido de impedir esse crescimento democratizante popular. O golpe de 64 configura um novo salto de concentração de capitais, a partir do controle ditatorial direto das massas populares. Este foi um processo de monopolização da economia, através da sustentação do Estado, e de montagem de um sistema bancário e financeiro, abrangendo todo o território.

Temos também a década de 1980, quando houve as mais importantes lutas sociais que já tivemos na história do Brasil. Da segunda metade da década de 1970 e toda a década de 1980, foram 15 anos de importantíssimas lutas de classe no país, com movimentos sociais urbanos e rurais. Há uma complexidade nesta luta, porém, ela já dá no momento de uma crise da burguesia, no sentido da condução dos processos políticos, frente à sua capacidade de acumulação. A burguesia brasileira não tem a configuração do que chamamos de burguesia nacional, com uma autonomia nacional. É uma burguesia cuja implantação cobre o território nacional, cuja associação subalterna ou cresce como burguesia ou recua para uma situação de mera prestadora dos sistemas internacionais. Nesta década, com o esvaziamento da ditadura, os recursos foram à quebra de direitos da população, sobretudo através de um massivo processo de demissão nos setores públicos e privados. Em seguida, houve um salto brutal de concentração e centralização de capitais, de maneira a permitir a inserção, ainda que subordinada, dos capitais brasileiros no processo de expansão imperialista no mundo.

Eu penso que a forma do capitalismo, hoje, no mundo, é imperialista. Só se expande capitalismo sob uma forma imperialista, característica pós Segunda Guerra Mundial. No caso brasileiro, esta forma já está implantada internamente. Portanto, estamos diante de uma situação bastante complexa, porque se trata de um capital imperialista, porém, desigual e combinado, no sentido de que é hierarquizado nos próprios países de capital imperialista.

IHU On-Line – Há evidências de conflitos entre as empresas brasileiras e organizações de trabalhadores de outros países?

Virgínia Fontes – Temos dois casos clássicos. O primeiro é o da Vale. A empresa Vale é contestada por trabalhadores do mundo inteiro. Na canadense Inco, subsidiária da Vale, os metalúrgicos estão em greve há nove meses, porque a empresa está impondo uma drástica restrição de direitos. Isso significa que a exportação de capitais brasileiros leva junto uma certa cultura da truculência características das formas políticas brasileiras. A Vale atua também em Moçambique onde está promovendo uma tragédia ambiental e social, e em vários países da América do Sul, onde se defronta com movimentos sociais, indígenas e de trabalhadores, sem falar na tragédia social que promove aqui mesmo no Brasil.

Além disso, temos o exemplo da Petrobras, que é o mais complexo. A Petrobras é uma empresa pública, mas que vem atuando sob a forma de empresa privada no exterior, através da exportação de capitais em associação a capitais imperialistas do país e do mundo. Já tivemos problemas na Argentina, na Bolívia e em outros lugares. Quanto às demais empresas, como Camargo Corrêa e Odebrecht, precisaríamos de uma avaliação mais profunda. Já tivemos casos de problemas no Peru, na Bolívia e no Paraguai, com relação à atuação dessas empresas, não com relação aos movimentos de trabalhadores, mas sim com próprios governos.

IHU On-Line – A crescente presença do capital brasileiro no exterior significa que o capitalismo brasileiro está passando por uma reestruturação?

Virgínia Fontes – Quando analisamos o capitalismo, percebemos que as burguesias capitalistas seguem nesta corrida frenética por acumulações, e não pela produção de bens necessários para vida. Ou as burguesias seguem nesta corrida, ou elas deixam de existir como burguesia. Tudo vem indicando que a burguesia brasileira entrou nesta corrida frenética sem se importar com o custo social que isso pode representar. Isso não quer dizer que o fato de o Brasil ser um país imperialista, onde as burguesias brasileiras são capitais imperialistas, que irá melhorar a condição de vida da maioria da população, ou que vá reduzir as desigualdades sociais brasileiras. Pelo contrário, essas desigualdades tendem a se aprofundar.

IHU On-Line – Qual é o papel que joga o BNDES na reestruturação do capitalismo brasileiro e na vertente imperialista brasileira?

Virgínia Fontes – O papel do BNDES vem sendo fundamental, mas não só dele, também dos fundos de pensão, do sistema bancário brasileiro altamente concentrado e das grandes corporações de capital, cuja origem pode estar no capital industrial, comercial ou bancário. Porém, estes vêm se entrecruzando de uma maneira que chamo de pornográfica, a tal ponto em que não sabemos quem é quem.

O BNDES vem tendo, sobretudo nos últimos anos, um papel fundamental porque está aportando capital para esse salto. É possível imaginar que haja divergências burguesas com relação a esse apoio do BNDES a um ou outro setor. É possível imaginar que determinados setores estejam querendo participar desse processo de concentração. Mas, aparentemente, não há conflitos maiores, e o processo de concentração e centralização de capitais para o salto da transnacionalização vem sendo substantivamente apoiado pelas entidades empresariais.

IHU On-Line – Como a senhora interpreta, sob a perspectiva do movimento social, os governos dos Kirchner, na Argentina, Evo, na Bolívia, Correa, no Equador, e Chávez, na Venezuela, em relação à expansão do imperialismo brasileiro?

Virgínia Fontes – Essa é a questão mais delicada. Por um lado, a expansão desse imperialismo brasileiro fornece uma espécie de proteção para um conjunto de países latino americanos, frente à devastação direta que vem do capital imperialismo norte-americano. De um lado, a política externa brasileira, para que consiga expandir os capitais num subterritório mais próximo, como a América do Sul, precisa lidar com mais cuidado com esses países. Porém, de uma maneira diferente da truculência característica da diplomacia norte-americana que sempre opera a América Latina como seu quintal.

Há contradições sutis que permitiram certo alívio para um conjunto de países frente à pressão dos EUA. Ao mesmo tempo, isso significa uma penetração maior em setores estratégicos de capitais de origem brasileira e associados. Assim, vão se introduzindo novas formas de relações desiguais e combinadas no interior da América do Sul.

Estamos vivendo uma situação razoavelmente nova. Os movimentos sociais precisam construir um trato mais cauteloso com os governos populares da América do Sul, e que seja um trato constitutivo da relação do Brasil com o exterior. Porém, não temos nenhuma garantia disso a longo prazo, na medida em que junto com esse trato vai uma série de exportações de capitais de origem brasileira, cuja relação com os movimentos populares é muito truculento. Além disso, temos ainda dificuldades de nos enxergarmos neste papel. Temos de ter a clareza de que nossa solidariedade é de uma luta com todos os trabalhadores latino-americanos.

IHU On-Line – O que há de novo na luta social latino-americana?

Virgínia Fontes – A política latino-americana é riquíssima. Diria que os séculos XX e XXI seguem marcados por uma luta popular e por uma profunda modificação dos rumos da existência social na América Latina como um todo, em especial na América do Sul. Há um profundo desgosto popular com relação às formas de imperialismo externo, sobretudo o imperialismo estadunidense, mas qualquer forma de imperialismo. Isso, às vezes, pode cegar um pouco a expansão do capitalismo brasileiro, por isso devemos estar atentos. Esse processo encontrou formas de saída de luta popular distintas. Temos um avanço muito grande na Venezuela e na Bolívia, com a procura da consolidação e organicidade dos movimentos populares em formas políticas. Em outros países, temos projetos mais ou menos neodesenvolvimentistas, como os economistas vêm chamando, assim como no Brasil.

A consolidação institucional contemporânea do governo Lula levou a uma política de duas caras. Uma cara na qual se alivia o sofrimento da pobreza, de maneira muito pontual e sem assegurar direitos, enquanto a outra mão impulsiona a concentração de capitais. Hoje, no Brasil, esse formato político de minorar o excessivo sofrimento da pobreza garante a legitimidade eleitoral para o processo da concentração econômica. Porém, as massas populares brasileiras sentiram esse alívio e se sentem gratas.

Elas sabem das experiências de truculências na qual são submetidas no seu cotidiano. As experiências de desigualdade agora vêm se aprofundando, com os 10% mais ricos da população, tomando mais de 70% da renda nacional. É um descalabro de concentração e desigualdade, ainda que tenha sido minorado o sofrimento dos setores mais frágeis e vulneráveis. Novamente, na América Latina, temos aberto o conjunto das lutas. Há uma tentativa, por parte de países como Brasil, de promover uma via neodesenvolvimentista sob a “condução” brasileira, e escoando seus capitais para investimentos diretos no contexto da América do Sul, no qual evitam a entrada de certos países. Acredito que a única condição de uma mudança efetiva é uma luta anticapitalista, contra todos os efeitos da concentração de capitais.

Notas:
[1] O cientista social Ruy Mauro Marini é conhecido internacionalmente como um dos elaboradores da Teoria da Dependência. Embora extremamente conhecido nos países latino-americanos de língua espanhola, sua obra é pouco conhecida no Brasil. Sobre o esforço dos governos militares brasileiros de desenvolvimento industrial e de hegemonia continental, Marini posicionou-se pela criação da categoria sub-imperialismo para designar um processo dinâmico do capitalismo nacional, que expande seus capitais sobre as economias vizinhas, porém sob os limites impostos pelo capital monopólico mundial.

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