”MundoBraz”: a brasilianização do mundo. Entrevista especial com Giuseppe Cocco

Pensar o mundo a partir do Brasil. Pensar o mundo e suas complexidades a partir de um “ator fundamental” como o Brasil. Esse foi o desafio que Giuseppe Cocco, sociólogo e doutor em história social, assumiu ao escrever seu novo livro “MundoBraz: O devir-mundo do Brasil e o devir-Brasil do mundo” (Ed. Record, 2009).

“A ‘brasilianização’ é o devir-Brasil do mundo: o país está, efetivamente, na frente, pois está em outro lugar em termos de políticas dos pobres, políticas sociais, de mestiçagem”
Portanto, um devir-Brasil do mundo é um devir-Sul do mundo, que não implica em um deslocamento do Norte para o Sul, mas sim uma ultrapassagem da clivagem Norte e Sul. Essa ultrapassagem, na verdade, é atípica da dominação dos blocos imperialistas do mundo. A clivagem está deslocada não porque desaparece, mas porque, hoje em dia, podemos dizer que há algo em comum nos movimentos sociais e de resistência: há uma subjetividade na constituição de um sujeito de luta, de um novo tipo de sujeito de classe, que poderíamos chamar de “a multidão dos pobres”.
IHU On-Line – Em que aspectos o mundo está se “brasilianizando”? Neste sentido, porque é importante “desinventar” o Brasil?
Giuseppe Cocco – A brasilianização do mundo foi um tema muito importante na década de 90, em toda uma literatura crítica da globalização neoliberal e suas consequências nos países centrais, que tinham um forte sistema de proteção social, e que a globalização neoliberal vinha destruindo. Seja na teoria social, econômica ou na filosofia política, vários autores usaram a brasilianização como uma metáfora negativa. O Brasil ia se tornando um pesadelo para aquelas sociedades que tinham um pacto social avançado, com altos salários, sindicatos fortes, proteção social abrangente e que passavam por um processo de fragmentação social e por uma crise civil em termos de violência pelo aumento da exclusão. Tudo isso era chamado de brasilianização, o que para o Brasil se tornou um pesadelo ainda maior. A perspectiva de desenvolvimento e o discurso nacional-desenvolvimentista diziam que o Brasil era o país do futuro, porque iria se industrializar, passar da periferia para o centro, através do processo de industrialização. Porém, a “brasilianização” significa que a própria modernização trazida pela globalização, ao invés de diminuir a exclusão, distribuir riquezas e sistemas de proteção, vai aumentar a exclusão, privatizar os serviços e criar ainda mais problemas em termos de dinâmica e justiça social.
A proposta em termos de devir-Brasil do mundo é dizer que há uma brasilianização (essa metáfora pode ser, sim, utilizada), mas que há outro lado muito potente do Brasil, o devir-Sul do mundo. Deste devir, o Brasil é o protagonista, não como Estado-nação desenvolvimentista, mas como Brasil dos pobres, desinventado. Quando falamos dos pobres, falamos de sujeitos atravessados por questões sociais de classe e também por questões culturais, de raça, de luta contra o racismo e a desigualdade, de reservas indígenas e tudo mais.
“É preciso desinventar o Brasil: o Brasil nacionalista, da homologação da cidadania sob a figura unívoca da modernidade ocidental, que não reconhece a problemática do racismo”
Esse outro lado da “brasilianização” é o devir-Brasil do mundo, em que o país está, efetivamente, na frente, pois está em outro lugar em termos de políticas dos pobres, políticas sociais, de mestiçagem, de um governo que teve, nos últimos oito anos, uma experiência inovadora, extremamente interessante, de sindicalização democrática, como nos serviços culturais. Esse outro lado implica no fato de desinventar o Brasil: o Brasil nacionalista, da homologação da cidadania sob a figura unívoca da modernidade ocidental, que não respeita os direitos dos índios, dos quilombolas e que não reconhece a problemática do racismo.
IHU On-Line – No lugar do desenvolvimento econômico, você enfatiza uma espécie de desenvolvimento antropológico, situando o Brasil no centro do mundo. Como a nossa cultura influencia as outras culturas do mundo?
Giuseppe Cocco – Quando pensamos o desenvolvimento econômico, temos dois elementos para relativizar esse conceito. O Brasil possui dois pontos de vista certamente potentes. Em primeiro lugar, porque o Brasil teve uma taxa de desenvolvimento econômico, em termos de desenvolvimento do PIB, entre as mais elevadas do mundo pós-guerra do século passado, mas com isso, ao mesmo tempo, o país se tornou o campeão mundial da desigualdade. Ou seja, o Brasil é o país para se pensar no fato de que o desenvolvimento, enquanto crescimento do PIB, não significa em si muita coisa. Ao contrário, pode ser uma máquina monstruosa de amplificação da desigualdade, da injustiça e da violência civil, que diz respeito às populações pobres.
O primeiro elemento enfatiza que a noção de desenvolvimento está em crise, e o segundo elemento afirma que, hoje em dia, a noção de desenvolvimento está em crise no mundo todo, a partir da crise mundial: mundial hoje, mas declarada inicialmente nos pontos mais avançados do capitalismo global cognitivo, nos Estados Unidos, por exemplo, com a crise do subprime. Uma crise do próprio conceito de desenvolvimento econômico, seja quando pensamos nesse mecanismo da financeirização, seja quando pensamos nas questões do meio ambiente.
Em termos gerais, o capitalismo que está em crise é o cognitivo, cujos elementos de valor estão ligados a fenômenos do conhecimento e que, ao mesmo tempo, produz mais do que objetos: produz formas de vida, das quais os objetos desempenham determinado papel.  A parte fundamental é que esse capitalismo produz formas de vida por meio de formas de vida, o que quer dizer que é uma produção do homem por meio do homem. Por isso podemos falar de modelo antropogenético. Portanto, se esse capitalismo é produtor do homem por meio do homem, a problemática antropológica se torna, imediatamente, social, econômica e política.
“Há algo em comum nos movimentos sociais e de resistência: uma subjetividade na constituição de um sujeito de luta que poderíamos chamar de ‘a multidão dos pobres'”
Nesse sentido, isso possibilita julgar por ecúmeno todos os temas que dizem respeito à monstruosidade, para o bem ou para o mal, que caracterizam a dinâmica brasileira, que é a mistura da relação com os indígenas, a mestiçagem e a exclusão generalizadas, a questão da Amazônia e das grandes cidades. No Brasil encontramos tudo, tudo o que há de pior e de melhor. Nesse sentido, o Brasil pode ser um monstro, um monstro bom ou mau, dependendo da capacidade de produção ética que tivermos.
Na relação do Brasil com o mundo, podemos ver relações antropofágicas, no sentido oswaldiano do termo. É uma relação radical com o outro: comer o outro para ser tornar o outro. Portanto, não é a cultura ou o patrimônio ou a raiz: para os índios, muito pelo contrário, a cultura é uma relação. Temos toda a antropologia de Viveiros de Castro, com aportes importantes para pensarmos isso.
IHU On-Line – Em seu livro, como podemos entender os conceitos de biopoder e biopolítica?
Giuseppe Cocco – Eu uso esses conceitos juntamente com Negri, [Maurizio] Lazzarato, entre outros, a partir de [Michel] Foucault. Grosso modo, Foucault definia a biopolítica e o biopoder (não fazia muita distinção entre eles) como uma tecnologia de poder, que ele via como uma tecnologia que se diferenciava. Ao mesmo tempo, se sobrepondo à elas, vinham outras duas tecnologias, que podemos colocar como anteriores e, ao mesmo tempo, como tecnologias de poder que coabitam. A primeira é a tecnologia do poder arcaico, do poder soberano, que era um poder de vida e morte por parte do soberano, e que, fundamentalmente, Foucault sintetizava dizendo que era uma tecnologia organizada em torno da possibilidade de fazer morrer e deixar viver. A população se virava, mas tinha que respeitar determinados limites. Caso os desrespeitasse, sofria de punição soberana, vista como divina.
A segunda tecnologia é a disciplinar, que se aplicava ao corpo dos indivíduos domesticados dentro das organizações funcionalistas, modernas e industriais. O paradigma era a prisão e a fábrica sobre organização disciplinar, que é fundamentalmente totalizadora e organiza todo o tempo e espaço. Toda a cidade era organizada: bairros dormitórios, industriais, de negócios e de lazer. O tempo de vida era funcionalizado: tempo da escola, de serviço militar, de fábrica e de aposentadoria. Essa é a sociedade disciplinar, que vai moldando o corpo dos indivíduos dentro do maquinismo industrial e de suas instituições concentracionárias, sabendo que, por trás da fábrica e da prisão, temos o campo de concentração, de trabalho.
A terceira forma, que se sobrepõe a essas, é a do biopoder e diz respeito à população entendida como meio ambiente. É preciso, mais do que determinar regras disciplinares ou leis punitivas, estabelecer critérios de probabilidade, de tolerabilidade social e de interação, sobre os quais se deve intervir para modular o que acontece na população. O exemplo mais clássico disso é a evolução das políticas de repressão da criminalidade, em que o problema não é reprimir qualquer crime, mas manter um determinado tipo de crime dentro de um determinado nível aceitável social e estatisticamente.
“O Brasil é o país para se pensar no fato de que o desenvolvimento, enquanto crescimento do PIB, não significa em si muita coisa”
Outro exemplo é a vacina, que investe no princípio, não no combate do vírus ou da bactéria dentro do corpo de cada indivíduo para curá-lo. Busca-se inocular a bactéria, com determinados critérios, em toda a população, fazendo um combate preventivo. O biopoder é um poder que investe na vida como um todo, entendendo a vida da população como meio ambiente.
No Brasil, a relação com o biopoder e a biopolitica se faz pela distinção de poder sobre a vida e de potência da vida. Na vacina que é usada, por exemplo, para fazer uma política de remoção das populações que moram em “cabeças de porco”, com problemas de higiene, temos o poder, que usa essa sua dimensão “bios” para discriminar os pobres, ou temos uma política para dar mais potência à vida dos pobres.
É o que acontece agora no debate sobre as áreas de risco, nas encostas, por causa da chuva. Por um lado há uma política necessária para avaliar o risco com relação à possibilidade de desabamentos, e portanto evitar as mortes pela dimensão biopolítica. Por outro lado, há o uso da problemática do risco para reintroduzir a questão da remoção das favelas.
O Brasil, desse ponto de vista, é um território que fica no centro desse deslocamento, primeiro porque aqui encontramos os três elementos. Na regulação dos pobres há o poder arcaico e, ao mesmo tempo, acontece esse deslocamento de um poder que, mais do que se organizar sobre o poder de morte e o de deixar viver, se organiza sobre o poder de fazer viver e deixar morrer. Porém, nisso temos uma dinâmica demográfica, de reprodução dos pobres por mestiçagem e por migração, que é completamente biopolítica, é uma potência da população. Por isso, o Brasil é o contexto no qual as temáticas do biopoder e da biopolítica são fundamentais, e é por isso, aliás, que quando Negri e eu escrevemos o livro “GlobAL”, enfatizamos no título a relação entre biopoder e lutas biopolíticas.
IHU On-Line – Quais são as experiências que o senhor aponta de radicalização da democracia em nosso país e também no continente? Como o senhor interpreta o conceito da sociedade de controle?
Giuseppe Cocco – A sociedade de controle diz respeito ao fato do poder se tornar mais uma gestão dos fluxos do que uma tentativa de dizer o que está fora e o que está dentro. O poder nessa “sociedade” se escurece e fica dentro de nossas cabeças. Nós mesmos somos o sujeito do poder. Digamos que a sociedade de controle é um termo muito parecido com o que Foucault chama de sociedade de segurança, sociedade do risco e da probabilidade, que é um dos modos fundamentais da governamentalidade e de como funciona o biopoder.
“O capitalismo que está em crise é o cognitivo, cujos elementos de valor estão ligados ao conhecimento e que produz mais do que objetos: produz formas de vida”
Quanto à radicalização democrática podemos dizer que, na América do Sul, esse processo diz respeito às experiências dos novos governos, que são todos diferentes. Porém, ao mesmo tempo, todos indicavam, em primeiro lugar, um esgotamento definitivo do projeto neoliberal, antecipando o que a crise do subprime declarou definitivamente, e, em segundo lugar, colocavam em todos os países latino-americanos novas prioridades.
Em conjunto, essas novas prioridades não se definem como a aplicação de um modelo, significando que o que acontece na América do Sul não é a hegemonia do movimento socialista e operário, mas o contrário. É uma experiência diferente, em termos políticos e de forças. Diferente entre elas e dentro delas. É só pensar na riqueza e na diversidade das dinâmicas indígenas na Bolívia, nas experiências que dizem respeito a movimentos de governo no Brasil etc. Em termos de radicalização democrática temos, primeiro, as constituintes na Bolívia e na Venezuela, com elementos diferentes. A Venezuela, que parece mais radical mas é, porém, mais frágil, e a constituinte plurinacional boliviana, extremamente interessante e inovadora.
O segundo elemento, aqui no Brasil, é a experiência do orçamento participativo, no final dos anos 90, e depois das políticas mais recentes, como as do Ministério da Cultura. A política dos pontos de cultura, por exemplo, é uma política de radicalização democrática, pois reconhece as dinâmicas de posição cultural que já existem e revela a articulação entre a produção cultural e os movimentos.
Mas, mesmo sem querer, sobretudo quando fazemos essa conexão, podemos pensar nas políticas de distribuição de renda, como o bolsa-família. Ele é pensado sobre uma política social de tipo neoliberal, condicionada e fragmentada, mas que o governo foi massificando, permitindo que os pobres tenham uma postura política diferente, mais autônoma. Se juntarmos bolsa-família e pontos de cultura, o bolsa-família tem uma dinâmica quantitativa consistente, embora moderada, e com os pontos de cultura estamos numa perspectiva de um novo tipo de políticas públicas.
IHU On-Line – Em um país marcado culturalmente pela antropofagia, como o senhor analisa fenômenos como o racismo e a mestiçagem no nosso Brasil contemporâneo?
Giuseppe Cocco – Esse é um dos debates mais importantes. O debate sobre o racismo no Brasil contém o que há de pior e de melhor no mundo, além de ser o terreno de simplificação mais forte desse discurso do “MundoBraz”. Porque, na realidade, o que se diz diante das propostas de políticas de ação afirmativa, de políticas que reconhecem a dimensão de cor e de desigualdade e que pensam medidas que tenham esse viés de combate ao racismo é que o Brasil não é um país racista, porque é o país da mestiçagem.
“Na relação do Brasil com o mundo, podemos ver relações antropofágicas, no sentido oswaldiano do termo. É uma relação radical com o outro: comer o outro para ser tornar o outro”
Isso é dito de duas maneiras bastante cínicas. O primeiro discurso, mais simplório, é de que no Brasil existe uma harmonia entre as raças. O segundo discurso, ligado ao primeiro, é um pouco mais sofisticado e afirma que, mesmo que exista alguma discriminação, não é possível qualificá-la, à medida que ninguém no Brasil sabe quem é índio, negro ou branco. Esta última faz um uso instrumental da sociologia e antropologia heroica dos anos 30 no Brasil, que resolveu o quebra-cabeça das raças no momento da construção de uma ideia de povo para o estado nação moderno. Esse tipo de discurso, que é muito midiatizado, parece obrigar os movimentos que defendem ações afirmativas, que visam uma política antirracista no país, a se transformarem em movimentos que negam esse discurso, movimentos identitários, obrigando-os a não reconhecer a riqueza do discurso brasileiro sobre mestiçagem.
Acho que, quando tomamos toda a problemática da antropofagia, seja em termos antropológicos, como faz Viveiros de Castro ao construir o papel da antropofagia nas sociedades tupinambás, seja nos termos do modernismo revolucionário e comunista de Oswald de Andrade, a antropofagia aparece como a qualificação de um discurso sobre miscigenação que não deixa nenhuma dúvida com relação ao uso instrumental, que foi feito na ideologia de casa grande e senzala.
Oswald fala de Canudos, por exemplo. Canudos é a referência dessa mestiçagem potente que Euclides da Cunha descobriu acompanhando a guerra que escreveu em “Os Sertões”. Ele fala de Canudos como uma capital jagunça, de uma Stalingrado jagunça. Fala da miscigenação não como um terreno de conciliação entre a casa grande e a senzala, onde a sociedade transformaria essa relação de poder biopolítica entre o senhor e a escrava como uma ideologia de harmonia racial, mas ao contrário, em transformar a relação entre casa grande e senzala em uma relação, sim, de miscigenação, mas que depende da luta e da resistência. O verdadeiro desafio é entre aqueles que querem usar a ideologia da mestiçagem e da harmonia racial para afirmar a existência de um povo homogêneo e “cinza”, e a discussão da mestiçagem como continuidade do processo de caldeamento, como um arco-íris de cores. Há a necessidade de que as políticas públicas levem em conta que esse devir da mestiçagem implica em políticas adequadas para que encontremos todas as cores em todos os lugares.
IHU On-Line – Em que aspectos sua ideia de universalização do Brasil é tributária a Claude Lévi-Strauss, Gilberto Freyre e Eduardo Viveiros de Castro?
Giuseppe Cocco – No que diz respeito a Gilberto Freyre e também a Oswald de Andrade, estamos falando da sociologia, antropologia, literatura e da política do Brasil nos 20 anos da transição da República Velha para a Nova. Falamos também do esforço gigantesco do Brasil para “resolver” o quebra-cabeça construído pela própria raça da escravidão em um país que sempre foi pós-colonial, pois a dinâmica brasileira logo se tornou mais importante do que a da metrópole portuguesa, e por essa razão tinha uma dinâmica de colonização que não era apenas exógena – Portugal sobre o Brasil –, mas também endógena, como uma dinâmica brasileira.
“O lugar da utopia é o lugar da desutopia. Significa não ter mais um modelo abstrato, que existe a priori. A nova utopia é uma desutopia”
Freire e Andrade são um tanto “heróis” dessa solução do enigma, cuja dimensão universal vem muito da capacidade que eles tiveram de olhar o Brasil a partir do exterior. Gilberto Freire a partir dos Estados Unidos – e foi lá que ele teve a intuição de que o Brasil funcionava diferentemente – e Oswald a partir de Paris. Esse fato descoberto por eles – a especificidade brasileira indo para fora do país – é bem interessante se relativizada ao discurso que fazíamos sobre a necessidade de jogar o Brasil para o centro do mundo e desinventá-lo.
É aí que temos a riqueza da proposta de Viveiros de Castro, que coopera para a cosmologia e o animismo dos ameríndios no Brasil. Ele recupera o perspectivismo, essa ideia de que a cultura é uma troca de pontos de vista. Viveiros de Castro, um dos antropólogos mais importantes do mundo contemporâneo, recupera o perspectivismo ameríndio, trabalhando com as ideias de Strauss. Foi capaz de renovar a experiência de Gilberto Freire e Oswald, dizendo “sair do Brasil para pensar o Brasil”, sendo que a saída do Brasil que ele opera não é geográfica, mas sim cultural. Ele procura o ponto de vista dos índios, e para eles o Brasil é o colonizador, e não Portugal.
IHU On-Line – Nesse cenário do “MundoBraz”, qual é o lugar da utopia e da política?
Giuseppe Cocco – O lugar da utopia, podemos dizer, é o lugar da desutopia. Significa não ter mais um modelo abstrato, que existe a priori, mas pensar o modelo que se produz nas próprias dinâmicas de luta. A nova utopia é uma desutopia. É a afirmação de que precisamos de uma nova grande narrativa, como a ameríndia, por exemplo, antropofágica e que ao mesmo tempo aplique e determine o novo modelo. Já a política está em todo lugar, inclusive na floresta.
IHU On-Line – Em que aspectos sua obra dialoga com os aportes teóricos de Negri e Hardt?
Giuseppe Cocco – Em tudo. O “MundoBraz” é um aprofundamento do que eu tinha desenvolvido junto a Negri no livro “GlobAL”. Naquele livro, criticamos completamente a clivagem Norte-Sul e afirmamos que os temas da globalização que atravessam o Norte do mundo são os mesmo que atravessam o Sul. O “MundoBraz” é um aprofundamento dessa questão, mas com essa textura antropológica, que ao meu ver é fundamental. O diálogo interno é total. A tentativa de “MundoBraz” é antropofágica, seja no sentido do que Negri e a escola negriana desenvolvem, seja no sentido de Viveiros de Castro e a antropologia imanentista. A obra faz uma mestiçagem entre os dois.
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?optioPensar o mundo a partir do Brasil. Pensar o mundo e suas complexidades a partir de um “ator fundamental” como o Brasil. Esse foi o desafio que Giuseppe Cocco, sociólogo e doutor em história social, assumiu ao escrever seu novo livro “MundoBraz: O devir-mundo do Brasil e o devir-Brasil do mundo” (Ed. Record, 2009).

“A ‘brasilianização’ é o devir-Brasil do mundo: o país está, efetivamente, na frente, pois está em outro lugar em termos de políticas dos pobres, políticas sociais, de mestiçagem, de sindicalização democrática”, afirma o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), nesta entrevista especial concedida por telefone à IHU On-Line.

Analisando aspectos centrais do papel do Brasil no cenário mundial, Cocco afirma que é preciso “desinventar o Brasil: o Brasil nacionalista, da homologação da cidadania sob a figura unívoca da modernidade ocidental, que não respeita os direitos dos índios, dos quilombolas e que não reconhece a problemática do racismo”.

Por outro lado, o Brasil é uma peça chave para a compreensão dos demais problemas e soluções existentes no mundo, no âmbito político-social. “O Brasil é o país para se pensar no fato de que o desenvolvimento, enquanto crescimento do PIB, não significa em si muita coisa”, defende. “Na relação do Brasil com o mundo, podemos ver relações antropofágicas, no sentido oswaldiano do termo. É uma relação radical com o outro: comer o outro para ser tornar o outro”, resume o sociólogo.

Giuseppe Cocco possui graduação em ciências políticas pela Universite de Paris VIII e pela Università degli Studi di Padova. É mestre em ciências tecnológicas e sociedade pelo Conservatoire National des Arts et Metiers e em história social pela Université de Paris I (Pantheon-Sorbonne). Doutor em história social pela Université de Paris I (Pantheon-Sorbonne), atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Publicou com Antonio Negri o livro “GlobAL: Biopoder e lutas em uma América Latina globalizada” (Ed. Record, 2005).

Cocco estará presente na Unisinos para o XI Simpósio Internacional IHU: “O (des)governo biopolítico da vida humana”, nos dias 13 a 16 de setembro deste ano.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que quer dizer o devir-mundo do Brasil e o devir-Brasil do mundo?

Giuseppe Cocco – Coloquei esse subtítulo ao meu livro “MundoBraz” e se trata de uma brincadeira com relação ao sufixo “braz” aplicado ao mundo. É um oxímoro, um paradoxo, tentando dizer o que caracteriza a globalização. É, na realidade, uma nova relação entre o Brasil e o mundo, e entre o mundo e o Brasil. Isso se deve, por um lado, à importância crescente que o Brasil desempenha no âmbito dos esforços de definição dos contextos de governanças democráticas da globalização e ao fato de que esses esforços passam cada vez mais por reações Sul-Sul, das quais o Brasil é um ator fundamental.

“A ‘brasilianização’ é o devir-Brasil do mundo: o país está, efetivamente, na frente, pois está em outro lugar em termos de políticas dos pobres, políticas sociais, de mestiçagem”

Portanto, um devir-Brasil do mundo é um devir-Sul do mundo, que não implica em um deslocamento do Norte para o Sul, mas sim uma ultrapassagem da clivagem Norte e Sul. Essa ultrapassagem, na verdade, é atípica da dominação dos blocos imperialistas do mundo. A clivagem está deslocada não porque desaparece, mas porque, hoje em dia, podemos dizer que há algo em comum nos movimentos sociais e de resistência: há uma subjetividade na constituição de um sujeito de luta, de um novo tipo de sujeito de classe, que poderíamos chamar de “a multidão dos pobres”.

IHU On-Line – Em que aspectos o mundo está se “brasilianizando”? Neste sentido, porque é importante “desinventar” o Brasil?

Giuseppe Cocco – A brasilianização do mundo foi um tema muito importante na década de 90, em toda uma literatura crítica da globalização neoliberal e suas consequências nos países centrais, que tinham um forte sistema de proteção social, e que a globalização neoliberal vinha destruindo. Seja na teoria social, econômica ou na filosofia política, vários autores usaram a brasilianização como uma metáfora negativa. O Brasil ia se tornando um pesadelo para aquelas sociedades que tinham um pacto social avançado, com altos salários, sindicatos fortes, proteção social abrangente e que passavam por um processo de fragmentação social e por uma crise civil em termos de violência pelo aumento da exclusão. Tudo isso era chamado de brasilianização, o que para o Brasil se tornou um pesadelo ainda maior. A perspectiva de desenvolvimento e o discurso nacional-desenvolvimentista diziam que o Brasil era o país do futuro, porque iria se industrializar, passar da periferia para o centro, através do processo de industrialização. Porém, a “brasilianização” significa que a própria modernização trazida pela globalização, ao invés de diminuir a exclusão, distribuir riquezas e sistemas de proteção, vai aumentar a exclusão, privatizar os serviços e criar ainda mais problemas em termos de dinâmica e justiça social.

A proposta em termos de devir-Brasil do mundo é dizer que há uma brasilianização (essa metáfora pode ser, sim, utilizada), mas que há outro lado muito potente do Brasil, o devir-Sul do mundo. Deste devir, o Brasil é o protagonista, não como Estado-nação desenvolvimentista, mas como Brasil dos pobres, desinventado. Quando falamos dos pobres, falamos de sujeitos atravessados por questões sociais de classe e também por questões culturais, de raça, de luta contra o racismo e a desigualdade, de reservas indígenas e tudo mais.

“É preciso desinventar o Brasil: o Brasil nacionalista, da homologação da cidadania sob a figura unívoca da modernidade ocidental, que não reconhece a problemática do racismo”

Esse outro lado da “brasilianização” é o devir-Brasil do mundo, em que o país está, efetivamente, na frente, pois está em outro lugar em termos de políticas dos pobres, políticas sociais, de mestiçagem, de um governo que teve, nos últimos oito anos, uma experiência inovadora, extremamente interessante, de sindicalização democrática, como nos serviços culturais. Esse outro lado implica no fato de desinventar o Brasil: o Brasil nacionalista, da homologação da cidadania sob a figura unívoca da modernidade ocidental, que não respeita os direitos dos índios, dos quilombolas e que não reconhece a problemática do racismo.

IHU On-Line – No lugar do desenvolvimento econômico, você enfatiza uma espécie de desenvolvimento antropológico, situando o Brasil no centro do mundo. Como a nossa cultura influencia as outras culturas do mundo?

Giuseppe Cocco – Quando pensamos o desenvolvimento econômico, temos dois elementos para relativizar esse conceito. O Brasil possui dois pontos de vista certamente potentes. Em primeiro lugar, porque o Brasil teve uma taxa de desenvolvimento econômico, em termos de desenvolvimento do PIB, entre as mais elevadas do mundo pós-guerra do século passado, mas com isso, ao mesmo tempo, o país se tornou o campeão mundial da desigualdade. Ou seja, o Brasil é o país para se pensar no fato de que o desenvolvimento, enquanto crescimento do PIB, não significa em si muita coisa. Ao contrário, pode ser uma máquina monstruosa de amplificação da desigualdade, da injustiça e da violência civil, que diz respeito às populações pobres.

O primeiro elemento enfatiza que a noção de desenvolvimento está em crise, e o segundo elemento afirma que, hoje em dia, a noção de desenvolvimento está em crise no mundo todo, a partir da crise mundial: mundial hoje, mas declarada inicialmente nos pontos mais avançados do capitalismo global cognitivo, nos Estados Unidos, por exemplo, com a crise do subprime. Uma crise do próprio conceito de desenvolvimento econômico, seja quando pensamos nesse mecanismo da financeirização, seja quando pensamos nas questões do meio ambiente.

Em termos gerais, o capitalismo que está em crise é o cognitivo, cujos elementos de valor estão ligados a fenômenos do conhecimento e que, ao mesmo tempo, produz mais do que objetos: produz formas de vida, das quais os objetos desempenham determinado papel.  A parte fundamental é que esse capitalismo produz formas de vida por meio de formas de vida, o que quer dizer que é uma produção do homem por meio do homem. Por isso podemos falar de modelo antropogenético. Portanto, se esse capitalismo é produtor do homem por meio do homem, a problemática antropológica se torna, imediatamente, social, econômica e política.

“Há algo em comum nos movimentos sociais e de resistência: uma subjetividade na constituição de um sujeito de luta que poderíamos chamar de ‘a multidão dos pobres'”

Nesse sentido, isso possibilita julgar por ecúmeno todos os temas que dizem respeito à monstruosidade, para o bem ou para o mal, que caracterizam a dinâmica brasileira, que é a mistura da relação com os indígenas, a mestiçagem e a exclusão generalizadas, a questão da Amazônia e das grandes cidades. No Brasil encontramos tudo, tudo o que há de pior e de melhor. Nesse sentido, o Brasil pode ser um monstro, um monstro bom ou mau, dependendo da capacidade de produção ética que tivermos.

Na relação do Brasil com o mundo, podemos ver relações antropofágicas, no sentido oswaldiano do termo. É uma relação radical com o outro: comer o outro para ser tornar o outro. Portanto, não é a cultura ou o patrimônio ou a raiz: para os índios, muito pelo contrário, a cultura é uma relação. Temos toda a antropologia de Viveiros de Castro, com aportes importantes para pensarmos isso.

IHU On-Line – Em seu livro, como podemos entender os conceitos de biopoder e biopolítica?

Giuseppe Cocco – Eu uso esses conceitos juntamente com Negri, [Maurizio] Lazzarato, entre outros, a partir de [Michel] Foucault. Grosso modo, Foucault definia a biopolítica e o biopoder (não fazia muita distinção entre eles) como uma tecnologia de poder, que ele via como uma tecnologia que se diferenciava. Ao mesmo tempo, se sobrepondo à elas, vinham outras duas tecnologias, que podemos colocar como anteriores e, ao mesmo tempo, como tecnologias de poder que coabitam. A primeira é a tecnologia do poder arcaico, do poder soberano, que era um poder de vida e morte por parte do soberano, e que, fundamentalmente, Foucault sintetizava dizendo que era uma tecnologia organizada em torno da possibilidade de fazer morrer e deixar viver. A população se virava, mas tinha que respeitar determinados limites. Caso os desrespeitasse, sofria de punição soberana, vista como divina.

A segunda tecnologia é a disciplinar, que se aplicava ao corpo dos indivíduos domesticados dentro das organizações funcionalistas, modernas e industriais. O paradigma era a prisão e a fábrica sobre organização disciplinar, que é fundamentalmente totalizadora e organiza todo o tempo e espaço. Toda a cidade era organizada: bairros dormitórios, industriais, de negócios e de lazer. O tempo de vida era funcionalizado: tempo da escola, de serviço militar, de fábrica e de aposentadoria. Essa é a sociedade disciplinar, que vai moldando o corpo dos indivíduos dentro do maquinismo industrial e de suas instituições concentracionárias, sabendo que, por trás da fábrica e da prisão, temos o campo de concentração, de trabalho.

A terceira forma, que se sobrepõe a essas, é a do biopoder e diz respeito à população entendida como meio ambiente. É preciso, mais do que determinar regras disciplinares ou leis punitivas, estabelecer critérios de probabilidade, de tolerabilidade social e de interação, sobre os quais se deve intervir para modular o que acontece na população. O exemplo mais clássico disso é a evolução das políticas de repressão da criminalidade, em que o problema não é reprimir qualquer crime, mas manter um determinado tipo de crime dentro de um determinado nível aceitável social e estatisticamente.

“O Brasil é o país para se pensar no fato de que o desenvolvimento, enquanto crescimento do PIB, não significa em si muita coisa”

Outro exemplo é a vacina, que investe no princípio, não no combate do vírus ou da bactéria dentro do corpo de cada indivíduo para curá-lo. Busca-se inocular a bactéria, com determinados critérios, em toda a população, fazendo um combate preventivo. O biopoder é um poder que investe na vida como um todo, entendendo a vida da população como meio ambiente.

No Brasil, a relação com o biopoder e a biopolitica se faz pela distinção de poder sobre a vida e de potência da vida. Na vacina que é usada, por exemplo, para fazer uma política de remoção das populações que moram em “cabeças de porco”, com problemas de higiene, temos o poder, que usa essa sua dimensão “bios” para discriminar os pobres, ou temos uma política para dar mais potência à vida dos pobres.

É o que acontece agora no debate sobre as áreas de risco, nas encostas, por causa da chuva. Por um lado há uma política necessária para avaliar o risco com relação à possibilidade de desabamentos, e portanto evitar as mortes pela dimensão biopolítica. Por outro lado, há o uso da problemática do risco para reintroduzir a questão da remoção das favelas.

O Brasil, desse ponto de vista, é um território que fica no centro desse deslocamento, primeiro porque aqui encontramos os três elementos. Na regulação dos pobres há o poder arcaico e, ao mesmo tempo, acontece esse deslocamento de um poder que, mais do que se organizar sobre o poder de morte e o de deixar viver, se organiza sobre o poder de fazer viver e deixar morrer. Porém, nisso temos uma dinâmica demográfica, de reprodução dos pobres por mestiçagem e por migração, que é completamente biopolítica, é uma potência da população. Por isso, o Brasil é o contexto no qual as temáticas do biopoder e da biopolítica são fundamentais, e é por isso, aliás, que quando Negri e eu escrevemos o livro “GlobAL”, enfatizamos no título a relação entre biopoder e lutas biopolíticas.

IHU On-Line – Quais são as experiências que o senhor aponta de radicalização da democracia em nosso país e também no continente? Como o senhor interpreta o conceito da sociedade de controle?

Giuseppe Cocco – A sociedade de controle diz respeito ao fato do poder se tornar mais uma gestão dos fluxos do que uma tentativa de dizer o que está fora e o que está dentro. O poder nessa “sociedade” se escurece e fica dentro de nossas cabeças. Nós mesmos somos o sujeito do poder. Digamos que a sociedade de controle é um termo muito parecido com o que Foucault chama de sociedade de segurança, sociedade do risco e da probabilidade, que é um dos modos fundamentais da governamentalidade e de como funciona o biopoder.

“O capitalismo que está em crise é o cognitivo, cujos elementos de valor estão ligados ao conhecimento e que produz mais do que objetos: produz formas de vida”

Quanto à radicalização democrática podemos dizer que, na América do Sul, esse processo diz respeito às experiências dos novos governos, que são todos diferentes. Porém, ao mesmo tempo, todos indicavam, em primeiro lugar, um esgotamento definitivo do projeto neoliberal, antecipando o que a crise do subprime declarou definitivamente, e, em segundo lugar, colocavam em todos os países latino-americanos novas prioridades.

Em conjunto, essas novas prioridades não se definem como a aplicação de um modelo, significando que o que acontece na América do Sul não é a hegemonia do movimento socialista e operário, mas o contrário. É uma experiência diferente, em termos políticos e de forças. Diferente entre elas e dentro delas. É só pensar na riqueza e na diversidade das dinâmicas indígenas na Bolívia, nas experiências que dizem respeito a movimentos de governo no Brasil etc. Em termos de radicalização democrática temos, primeiro, as constituintes na Bolívia e na Venezuela, com elementos diferentes. A Venezuela, que parece mais radical mas é, porém, mais frágil, e a constituinte plurinacional boliviana, extremamente interessante e inovadora.

O segundo elemento, aqui no Brasil, é a experiência do orçamento participativo, no final dos anos 90, e depois das políticas mais recentes, como as do Ministério da Cultura. A política dos pontos de cultura, por exemplo, é uma política de radicalização democrática, pois reconhece as dinâmicas de posição cultural que já existem e revela a articulação entre a produção cultural e os movimentos.

Mas, mesmo sem querer, sobretudo quando fazemos essa conexão, podemos pensar nas políticas de distribuição de renda, como o bolsa-família. Ele é pensado sobre uma política social de tipo neoliberal, condicionada e fragmentada, mas que o governo foi massificando, permitindo que os pobres tenham uma postura política diferente, mais autônoma. Se juntarmos bolsa-família e pontos de cultura, o bolsa-família tem uma dinâmica quantitativa consistente, embora moderada, e com os pontos de cultura estamos numa perspectiva de um novo tipo de políticas públicas.

IHU On-Line – Em um país marcado culturalmente pela antropofagia, como o senhor analisa fenômenos como o racismo e a mestiçagem no nosso Brasil contemporâneo?

Giuseppe Cocco – Esse é um dos debates mais importantes. O debate sobre o racismo no Brasil contém o que há de pior e de melhor no mundo, além de ser o terreno de simplificação mais forte desse discurso do “MundoBraz”. Porque, na realidade, o que se diz diante das propostas de políticas de ação afirmativa, de políticas que reconhecem a dimensão de cor e de desigualdade e que pensam medidas que tenham esse viés de combate ao racismo é que o Brasil não é um país racista, porque é o país da mestiçagem.

“Na relação do Brasil com o mundo, podemos ver relações antropofágicas, no sentido oswaldiano do termo. É uma relação radical com o outro: comer o outro para ser tornar o outro”

Isso é dito de duas maneiras bastante cínicas. O primeiro discurso, mais simplório, é de que no Brasil existe uma harmonia entre as raças. O segundo discurso, ligado ao primeiro, é um pouco mais sofisticado e afirma que, mesmo que exista alguma discriminação, não é possível qualificá-la, à medida que ninguém no Brasil sabe quem é índio, negro ou branco. Esta última faz um uso instrumental da sociologia e antropologia heroica dos anos 30 no Brasil, que resolveu o quebra-cabeça das raças no momento da construção de uma ideia de povo para o estado nação moderno. Esse tipo de discurso, que é muito midiatizado, parece obrigar os movimentos que defendem ações afirmativas, que visam uma política antirracista no país, a se transformarem em movimentos que negam esse discurso, movimentos identitários, obrigando-os a não reconhecer a riqueza do discurso brasileiro sobre mestiçagem.

Acho que, quando tomamos toda a problemática da antropofagia, seja em termos antropológicos, como faz Viveiros de Castro ao construir o papel da antropofagia nas sociedades tupinambás, seja nos termos do modernismo revolucionário e comunista de Oswald de Andrade, a antropofagia aparece como a qualificação de um discurso sobre miscigenação que não deixa nenhuma dúvida com relação ao uso instrumental, que foi feito na ideologia de casa grande e senzala.

Oswald fala de Canudos, por exemplo. Canudos é a referência dessa mestiçagem potente que Euclides da Cunha descobriu acompanhando a guerra que escreveu em “Os Sertões”. Ele fala de Canudos como uma capital jagunça, de uma Stalingrado jagunça. Fala da miscigenação não como um terreno de conciliação entre a casa grande e a senzala, onde a sociedade transformaria essa relação de poder biopolítica entre o senhor e a escrava como uma ideologia de harmonia racial, mas ao contrário, em transformar a relação entre casa grande e senzala em uma relação, sim, de miscigenação, mas que depende da luta e da resistência. O verdadeiro desafio é entre aqueles que querem usar a ideologia da mestiçagem e da harmonia racial para afirmar a existência de um povo homogêneo e “cinza”, e a discussão da mestiçagem como continuidade do processo de caldeamento, como um arco-íris de cores. Há a necessidade de que as políticas públicas levem em conta que esse devir da mestiçagem implica em políticas adequadas para que encontremos todas as cores em todos os lugares.

IHU On-Line – Em que aspectos sua ideia de universalização do Brasil é tributária a Claude Lévi-Strauss, Gilberto Freyre e Eduardo Viveiros de Castro?

Giuseppe Cocco – No que diz respeito a Gilberto Freyre e também a Oswald de Andrade, estamos falando da sociologia, antropologia, literatura e da política do Brasil nos 20 anos da transição da República Velha para a Nova. Falamos também do esforço gigantesco do Brasil para “resolver” o quebra-cabeça construído pela própria raça da escravidão em um país que sempre foi pós-colonial, pois a dinâmica brasileira logo se tornou mais importante do que a da metrópole portuguesa, e por essa razão tinha uma dinâmica de colonização que não era apenas exógena – Portugal sobre o Brasil –, mas também endógena, como uma dinâmica brasileira.

“O lugar da utopia é o lugar da desutopia. Significa não ter mais um modelo abstrato, que existe a priori. A nova utopia é uma desutopia”

Freire e Andrade são um tanto “heróis” dessa solução do enigma, cuja dimensão universal vem muito da capacidade que eles tiveram de olhar o Brasil a partir do exterior. Gilberto Freire a partir dos Estados Unidos – e foi lá que ele teve a intuição de que o Brasil funcionava diferentemente – e Oswald a partir de Paris. Esse fato descoberto por eles – a especificidade brasileira indo para fora do país – é bem interessante se relativizada ao discurso que fazíamos sobre a necessidade de jogar o Brasil para o centro do mundo e desinventá-lo.

É aí que temos a riqueza da proposta de Viveiros de Castro, que coopera para a cosmologia e o animismo dos ameríndios no Brasil. Ele recupera o perspectivismo, essa ideia de que a cultura é uma troca de pontos de vista. Viveiros de Castro, um dos antropólogos mais importantes do mundo contemporâneo, recupera o perspectivismo ameríndio, trabalhando com as ideias de Strauss. Foi capaz de renovar a experiência de Gilberto Freire e Oswald, dizendo “sair do Brasil para pensar o Brasil”, sendo que a saída do Brasil que ele opera não é geográfica, mas sim cultural. Ele procura o ponto de vista dos índios, e para eles o Brasil é o colonizador, e não Portugal.

IHU On-Line – Nesse cenário do “MundoBraz”, qual é o lugar da utopia e da política?

Giuseppe Cocco – O lugar da utopia, podemos dizer, é o lugar da desutopia. Significa não ter mais um modelo abstrato, que existe a priori, mas pensar o modelo que se produz nas próprias dinâmicas de luta. A nova utopia é uma desutopia. É a afirmação de que precisamos de uma nova grande narrativa, como a ameríndia, por exemplo, antropofágica e que ao mesmo tempo aplique e determine o novo modelo. Já a política está em todo lugar, inclusive na floresta.

IHU On-Line – Em que aspectos sua obra dialoga com os aportes teóricos de Negri e Hardt?

Giuseppe Cocco – Em tudo. O “MundoBraz” é um aprofundamento do que eu tinha desenvolvido junto a Negri no livro “GlobAL”. Naquele livro, criticamos completamente a clivagem Norte-Sul e afirmamos que os temas da globalização que atravessam o Norte do mundo são os mesmo que atravessam o Sul. O “MundoBraz” é um aprofundamento dessa questão, mas com essa textura antropológica, que ao meu ver é fundamental. O diálogo interno é total. A tentativa de “MundoBraz” é antropofágica, seja no sentido do que Negri e a escola negriana desenvolvem, seja no sentido de Viveiros de Castro e a antropologia imanentista. A obra faz uma mestiçagem entre os dois.

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