A libertação do suspeito de ser mandante do assassinato do casal de extrativistas foi a cereja no bolo de um julgamento com suspeita de falso testemunho, ameaças, pregação bíblica e uma discussão científica sobre a validade do exame de DNA. Para governo federal, resultado traz “sensação de impunidade”
Maíra Kubík Mano – Carta Maior
Marabá (PA) – “E agora, você vai organizar a morte da Laisa?”. A fala, embargada e alta, tomou conta do Fórum de Justiça de Marabá (PA). Claudelice, a dona da voz que ecoou pela sala, é irmã de José Cláudio Ribeiro da Silva e cunhada de Maria do Espírito Santo, cujos responsáveis pelo assassinato estão sendo julgados naquele 04/04/2013. Laisa, a próxima vítima declarada, é irmã de Maria e desde que o crime ocorreu ela está sob constante ameaça de morte.
A voz de Claudelice é rapidamente sobreposta por muitas outras, unidas em coro. O barulho vem do lado de fora, da multidão que aguarda o final da leitura da sentença. “Aos nossos mortos, nem um minuto de silêncio, mas toda uma vida de luta”. “O povo, unido, jamais será vencido”. “Justiça, justiça, justiça”. MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), Fetagri (Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Pará) e CPT (Comissão Pastoral da Terra), entre outros, organizaram uma vigília durante o julgamento.
O juiz Murilo Lemos continua seu pronunciamento. Momentos antes de ser surpreendido pelas manifestações, ele havia declarado José Rodrigues Moreira, acusado de mandante do crime, inocente. As famílias das vítimas estão atônitas. Em choque. Em sua sentença, o juiz afirmara ainda que José Claudio havia contribuído para a própria morte: “O comportamento das vítimas contribuiu de certa maneira para o crime pois tentaram fazer justiça pelas próprias mãos, utilizando terceiros posseiros, sem terras, para impedir José Rodrigues de ter a posse de um imóvel rural, acarretando o agravamento do conflito”.
Segundo Murilo Lemos, as vítimas deveriam ter denunciado as ameaças e os conflitos no assentamento agroextrativista Praia Alta Piranheira, onde moravam. O texto foi motivo de contestação do julgamento pelos movimentos sociais, entre eles Fetagri, MST e CPT. “Uma afirmação absurda, mentirosa e sem qualquer fundamento. José Claudio e Maria do Espírito Santo denunciaram o caso às autoridades constituídas”, divulgaram, em nota. “O juiz tenta de forma irresponsável criminalizar as vítimas e legitimar a ação do assassino”.
“[Antes do julgamento] eu estava muito ansiosa e acreditando. Mas hoje eu vejo que, parece, ocorreram muitas coisas sujas e contraditórias, que terminam sendo favoráveis à visão arcaica de que os ambientalistas são nocivos à sociedade. Ao dizer que eles são responsáveis, o juiz disse que estava certo quem matou e quem mandou matar”, afirmou Laisa Sampaio.
Os dois outros réus no processo, Lindonjonson Silva Rocha, irmão de José Rodrigues, e Alberto Lopes do Nascimento, acusados da execução propriamente dita, foram condenados a 42 anos e oito meses e a 45 anos de reclusão, respectivamente. A crueldade de cortarem uma das orelhas de José Claudio foi considerada um agravante e aumentou a pena. Segundo o inquérito, o pedaço do corpo seria uma das maneiras de comprovar que o “serviço”, apesar de, ironicamente, a empreitada criminosa agora não ter mandante.
Julgamento
A libertação de José Rodrigues foi a cereja no bolo de um julgamento com suspeita de falso testemunho, pregação bíblica e uma discussão científica sobre a validade do exame de DNA.
“As nossas testemunhas falaram a verdade com convicção e a deles mentiu em juízo”, disse uma inconformada Claudelice sobre o depoimento de Joeuza Pereira da Silva. A testemunha, que a princípio afirmara ter visto Lindonjonson em outro município na mesma data e local do crime, acabou se calando ao ser questionada de maneira mais incisiva pela promotora Ana Maria Magalhães, uma das responsáveis pela acusação.
Outra testemunha, Nilton José Ferreira, falou exatamente o contrário: havia visto sim Lindonjonson saindo pelo que seria uma rota de fuga do local do crime pouco depois dos assassinatos. E apontou para ele na frente do júri. “Esse aqui”.
Os advogados de defesa tentaram desconstruir a versão afirmando que seria impossível, na distância que ele estava, cerca de 15 metros, reconhecer alguém de costas. “Mas eu vi de frente de primeiro”, disse Nilton. Logo após o depoimento, ele foi abordado por um dos irmão de José Rodrigues e Lindonjonson. Recebeu três tapinhas no peito e um olhar fulminante. Estava marcado. Agora, Nilton, escondido, aguarda proteção.
Em outro momento simbólico, José Rodrigues se jogou no chão do Fórum com uma pequena bíblia nas mãos e rezou por todos os presentes, se dizendo pai de família. Convertido ao Evangelho na cadeia, Rodrigues pregou longamente sobre seu amor a Jesus e a justiça divina, curiosamente desabonando o papel do tribunal diante dele. Uma das juradas chorou. Ficou tocada com o que, soube-se depois, era seu irmão de culto.
“A única coisa que o juiz fez foi oferecer lenços para que o acusado enxugasse as lágrimas”, atacaram os movimentos sociais. “Quando avisado em particular pelo Ministério Público (MP) da reação da jurada, fato que demonstrava claramente a sua parcialidade, o juiz respondeu ao representante do MP que caso suscitasse a parcialidade da jurada e o júri fosse suspenso, ele iria revogar a prisão e mandar soltar imediatamente os três acusados. Frente à ameaça do juiz o MP recuou da decisão de pedir a suspeição da jurada”, continua o texto.
“Acabamos desacreditando no preparo da sociedade representada ali”, avalia Laisa. “Vão pela emoção da religião, não pela razão”.
A razão, aliás, foi também colocada à prova pelos advogados de defesa de Rodrigues e Lindonjonson, Arnaldo Ramos de Barros Jr. e Wandergleisson Fernandes Silva. Em sua sustentação, eles afirmaram que o exame de DNA feito em uma touca de mergulho encontrada na cena do crime – e cujo resultado incriminava os irmãos – não poderia ser levado em consideração porque havia sido realizado com DNA mitocondrial, e não do núcleo da célula. Segundo eles, isso mapearia todo um grupo populacional, como negros e indígenas, o que não permitiria uma identificação apurada. Só não explicaram ao júri que o “grupo populacional” a que se referiam partia da linhagem materna daquela família.
O Ministério Público já recorreu da sentença, assim como os advogados de defesa.
Crime
José Claudio e sua esposa foram assassinados em 24 de maio de 2011 no assentamento agroextrativista Praia Alta Piranheira, onde moravam. Sofreram uma emboscada quando cruzavam uma das pequenas pontes de troncos de madeira que levavam à cidade mais próxima, Nova Ipixuna.
O motivo do crime seria uma disputa em torno de uma área que Rodrigues havia comprado ilegalmente por R$ 100 mil. No local, já residiam três famílias, que foram expulsas pelo novo dono. José Claudio e Maria, duas lideranças no assentamento, acolheram os pequenos produtores e denunciaram Rodrigues. Esta denúncia somou-se a inúmeras outras feitas anteriormente pelo casal ao Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e ao Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis), ao Ministério Público e à Polícia Federal contra o desmatamento desenfreado.
O lote de José Claudio e Maria é ainda hoje uma das áreas de floresta mais preservadas do assentamento. O local permanece intacto, como eles deixaram no dia do crime. Nas paredes, retratos da Irmã Dorothy e de Chico Mendes parecem hoje uma previsão macabra – em especial sabendo que os mandantes de ambos os crimes já estão soltos após cumprirem parte das penas. Nos fundos, as ferramentas para extração do óleo de castanha. Árvores de todos os tipos. Cacau, limão e goiaba continuam nos pés, esperando para serem colhidos.
Proteção policial
Após o término do julgamento, Laisa Sampaio, irmã de Maria do Espírito Santo, foi imediatamente retirada de Marabá pelo governo federal. Não teve tempo de buscar nada em casa. Durante os dois anos entre o crime e o julgamento, Laisa sofreu ameaças constantes por não se calar diante da morte da irmã. Em 2012, ela recebeu, em nome de José Claudio e Maria, o prêmio Heróis da Floresta, concedido pela ONU (Organização das Nações Unidas) em Nova York.
Agora Laisa está em Brasília, onde aguarda, angustiada, uma solução para a sua situação. Ela já se encontrou com a ministra Maria do Rosário, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. O governo considerou grave que nenhum mandante tenha sido responsabilizado e divulgou um comunicado sobre a questão: “A absolvição do mandante desse crime traz como conseqüência a sensação de impunidade no que se refere a homicídios de trabalhadores na zona rural. E, ainda, prejudica a luta de trabalhadores que defendem a geração de renda com preservação da floresta.”
“Estamos numa discussão. Tive uma reunião com o pessoal do Programa de Proteção à Vítimas e Testemunhas Ameaçadas”, conta Laisa. Há cerca de um ano ela tentava ingressar, sem sucesso, no Programa. Agora o problema é outro: o convênio com o governo do estado está vencido. “Não tem como eu voltar para lá sem ter essa proteção. Mas eu preciso voltar, eu quero voltar.” Laisa, que é professora na escola do assentamento, também trabalha com outras mulheres do entorno em atividades extrativistas. “O trabalho não para. Vamos ter uma oficina agora de boas práticas sustentáveis para aprendermos a usar a prensa para extrair o óleo da castanha. Quero ter motivos para acreditar, mas agora não tem perspectiva favorável. Tenho que emendar os pedaços e continuar a luta”.
Seu marido, José Rondon, também testemunha no processo, continua no lote junto com seus filhos. “Não saio daqui antes do final da safra de andiroba”, afirma, orgulhoso da produção. O óleo recolhido é transformado em sabonete e remédio, comercializados pela família.
Em casa, cercado de mata, galinhas, cachorros e gatos, Rondon mostra um punhado de cartas que ele e Laisa receberam, via Anistia Internacional, dos mais diferentes lugares do mundo. A maioria ainda nem foi aberta. “Não sabemos essas línguas”, diz. Espanhol, inglês, alemão, francês. Em todas, uma mesma mensagem: “Vocês não estão sozinhos”. Será mesmo?