Sujeitar o povo a condições de asfixia – criando premeditadamente as condições para uma catástrofe humanitária – viola todas as convenções internacionais
InfoGrécia/Carta Maior*
A poucas horas da votação das medidas prévias de austeridade, a presidente do Parlamento grego voltou a apelar ao Governo para que não aceite a chantagem dos credores para um acordo em que já nem o FMI acredita. Leia aqui o discurso de Zoe Konstantopoulou na semana passada a justificar a abstenção na proposta, traduzido pelo blogue Aventar.
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«Minhas senhoras e senhores, caros colegas,
Nos momentos como este, devemos agir e falar com sinceridade institucional e coragem política. Devemos assumir, cada um, a responsabilidade que nos cabe.
Protegendo, como a nossa consciência nos obriga, as causas justas e os direitos sagrados, invioláveis e não negociáveis do nosso povo e da nossa sociedade.
Salvaguardando a herança legada por aqueles que deram a sua vida e a sua liberdade para que hoje possamos ser livres.
Preservando a herança das novas gerações e das vindouras, bem como a civilização humana, o mesmo acontecendo com os valores inalienáveis que caracterizam e dão sentido à nossa existência individual e colectiva.
O modo como cada um opta por decidir e agir pode variar, mas ninguém tem o direito de zombar, degradar, denegrir ou usar com uma finalidade política as decisões emanadas de um processo e de uma decisão difícil e consciente, intimamente ligados ao cerne da nossa existência.
Seremos todas e todos julgados pelas nossas atitudes e decisões, pelos nossos sim e pelos nossos não, pelos nossos actos e pelas nossas omissões, pela nossa coerência, pelas nossas resistências, pela nossa abnegação e pelo nosso desinteresse.
Desde há cinco meses que o Governo, que tem por tronco a Esquerda e por coração as forças anti-memorando, se entrega a um combate desigual, nas condições de asfixia e de chantagem contra uma Europa que traiu os objectivos inscritos nos seus Estatutos, a saber, o bem-estar dos povos e das sociedades, uma Europa que utiliza uma moeda comum, o euro, não como meio para alcançar o bem-estar social, mas como alavanca e instrumento de subjugação e de humilhação dos povos e dos governos rebeldes, uma Europa que está em vias de se transformar numa prisão de pesadelo para os seus povos, apesar de ter sido construída para ser a sua casa acolhedora comum.
O povo grego confiou a este Governo a grande causa da sua libertação das malhas do memorando, do torno vicioso da sua colocação sob tutela e sob vigilância, impostas à sociedade sob pretexto de uma dívida – uma dívida ilegal, ilegítima, odiosa e insustentável, cuja natureza – tal como o demonstraram as conclusões preliminares da Comissão para o apuramento da Verdade sobre a Dívida Pública – era já do conhecimento dos credores desde 2010.
Uma dívida que não surgiu como um fenómeno meteorológico, antes foi criada pelos governos precedentes, mediante contratos manchados pela corrupção, por comissões, luvas, cláusulas leoninas e juros astronómicos, de que bancos e empresas estrangeiras beneficiaram.
Uma dívida que a Troika, com o beneplácito dos precedentes governos, transformou fraudulentamente, fazendo de uma dívida privada uma dívida pública, salvando assim bancos franceses e alemães, bem como bancos privados gregos, condenando o povo grego a viver nas actuais condições de crise humanitária, enquanto mobilizando e gratificando os órgãos da corrupção mediática encarregues de aterrorizar e de enganar os cidadãos.
Esta dívida, que nem o povo nem o Governo actual criaram ou fizeram aumentar, é desde há cinco anos usada como instrumento de subjugação do povo por forças que agem a partir do interior da Europa, no quadro de um totalitarismo económico.
A despeito da moral e do direito, a Alemanha ainda não honrou até este dia as suas dívidas para com a pequenina Grécia resistente, cuja atitude heróica a História reconheceu. Tratam-se de dívidas de ultrapassam a dívida pública grega e representam um montante de 340 mil milhões de euros, segundo os cálculos emanados da Comissão de Justiça do Tribunal de Contas, que foi criada pelo governo precedente, data em que a alegada dívida pública grega foi estimada em 325 mil milhões de euros.
A Alemanha beneficiou do maior apagamento de dívida do pós-Segunda Grande Guerra, a fim de poder reerguer-se, com o patrocínio generoso da Grécia. Esta mesma Alemanha emprestou protecção a responsáveis por empresas culpadas por actos de corrupção, realizados em parceria com os governos precedentes e os seus partidos políticos, tais como a Siemens, que a Alemanha protegeu, subtraindo-os todos à obrigação de apresentação perante a justiça grega.
Assim, a Alemanha comporta-se como se a História e o povo grego tivesse contraído dívidas junto dela, como se pretendesse um ajustamento de contas, realizando a sua vingança histórica pelas suas próprias atrocidades, aplicando e impondo uma política que constitui um crime não apenas relativamente ao povo grego mas também contra a própria Humanidade – no sentido penal do termo, pois trata-se aqui de uma agressão sistemática e de grande escala contra uma população, com o objectivo premeditado de produzir a sua destruição parcial ou total.
A que infelizmente há que acrescentar, apesar do seu dever de procurar estar à altura das suas responsabilidades e do momento histórico, a cumplicidade dos governos e das instituições perante esta agressão.
Minhas senhoras e meus senhores, caros colegas,
Sujeitar o povo e o Governo a condições de asfixia e à ameaça de uma violenta bancarrota, pela criação artificial e premeditada das condições para uma catástrofe humanitária, constitui uma violação directa de todas as convenções internacionais que protegem os direitos do Homem, da Convenção da ONU, das convenções Europeias, e até mesmo dos próprios Estatutos do Tribunal Penal Internacional.
A chantagem não é uma fatalidade. E a criação e aplicação de condições cuja finalidade é a de suprimir o livre arbítrio, não permite a ninguém poder falar sobre “liberdade de escolha”.
Os credores chantageam o Governo. Agem fraudulentamente, apesar de saberem desde 2010 que a dívida não é sustentável. Agem conscientemente, uma vez que reconhecem nas suas declarações a necessidade de conceder uma ajuda humanitária à Grécia. Uma ajuda humanitária por que razão? Para alguma catástrofe natural imprevista e inesperada? Um sismo imprevisto, uma inundação, um incêndio?
Não. Uma ajuda humanitária que é a própria consequência das suas escolhas conscientes, calculada para privar o povo dos seus meios de subsistência, fechando a torneira da liquidez, como forma de represália pela decisão democrática do Governo e do Parlamento de organizar um referendo e de dar a voz ao povo para que pudesse ser ele a decidir o seu futuro.
O povo grego honrou o Governo que teve confiança nele, bem como o Parlamento que lhe deu o direito de tomar nas suas mãos a sua vida e o seu destino. E disse um NÃO corajoso e confiável,
NÃO às chantagens,
NÃO aos ultimatos,
NÃO aos memorandos da subjugação,
NÃO ao pagamento de uma dívida que não foi por ele criada e de que não é responsável,
NÃO a mais medidas de miséria e de submissão
Esse NÃO, os credores obstinam-se com persistência a querer transformar num SIM, com a cumplicidade pérfida de todos os que são co-responsáveis por esses memorandos e que tiraram proventos deles: os que criaram a dívida.
Esse NÃO do povo ultrapassa-nos a todos e obriga-nos a defender o seu direito a lutar pela sua vida, a lutar para que não mais viva uma vida pela metade, ou uma vida de servidão, e para ter orgulho em tudo o que vai deixar aos seus sucessores e à Humanidade.
O Governo é hoje objecto de uma chantagem, a fim de levá-lo a aceitar tudo o que não quer, que emana não de si próprio e que agora combate. O primeiro-ministro falou com sinceridade, com coragem, franqueza e de forma desinteressada. É o mais jovem primeiro-ministro e é também aquele que, ao invés de todos os seus congéneres, mais lutou pelos direitos democráticos e sociais do povo e das novas gerações, que representou e representa a nossa geração e lhe dá esperança. Presto-lhe e continuarei a prestar-lhe a minha homenagem, pela sua atitude e pelas suas escolhas. Mas ao mesmo tempo, posta perante a minha responsabilidade institucional, enquanto Presidente do Parlamento, considero que não posso fechar os olhos e fazer de conta que não percebo a chantagem.
Nunca poderia votar em favor da legitimação do conteúdo do acordo, e penso que isso também é válido para o primeiro-ministro, que é hoje objecto de uma chantagem que usa contra ele a arma da necessidade de sobrevivência do seu povo. E julgo que também o Governo e os grupos parlamentares que o apoiam pensam desta forma.
A minha responsabilidade para com a História desta Instituição, assumo-a respondendo “presente” no debate e na votação de hoje. Penso, assim, ser mais útil ao povo, ao Governo, e ao primeiro-ministro, às gerações futuras e às sociedades europeias, expondo à luz do dia as verdadeiras condições nas quais o parlamento é chamado a tomar decisões, recusando a chantagem, em nome da alínea 4 do Artigo 120 da Constituição grega.
O povo grego é o segundo a ser vítima de uma tal agressão emanada do interior da zona euro. Foi precedido por Chipre, em Março de 2013.
A tentativa de impor medidas que o povo rejeitou em referendo, usando a chantagem do encerramento dos bancos e a ameaça da falência, constitui uma violação brutal da Constituição, ademais de privar o Parlamento dos poderes que lhe são atribuídos por essa mesma Lei Fundamental.
Cada uma e cada um tem o direito e o dever de resistir. Nenhuma resistência na História foi fácil. No entanto, pedimos o voto e a confiança do povo para enfrentar as dificuldades e é face a essas dificuldades que devemos agora ser bem sucedidos. E fazendo-o sem medo.»
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*Tradução do Grego de Yorgos Mitralias (revisto por Patrick Saurin) e do Francês por Sarah Adamopoulos para o blogue Aventar.