Norma prevê que estrangeiros em situação vulnerável devem ser amparados. Fiscalização teme que informação equivocada gere pânico e desestimule novas denúncias
Por Stefano Wrobleski – Repórter Brasil
Após a libertação de quinze bolivianos que trabalhavam como escravos em uma oficina de costura em Itaquera, na Zona Leste de São Paulo, Mauro Rocha de Oliveira, o 1º tenente da Polícia Militar (PM) de São Paulo que comandou a operação, afirmou que os que estivessem em situação irregular poderiam ser deportados. A declaração foi dada em entrevista à Globo News (clique aqui para assistir ao vídeo).
A informação contraria a Resolução Normativa 93 do Conselho Nacional de Imigração (CNIg), que determina que trabalhadores imigrantes em situação vulnerável devem ser amparados pelas autoridades, podendo inclusive requerer o visto de permanência no Brasil. Tal norma foi criada em 2010 justamente porque muitos estrangeiros vítimas de tráfico de pessoas e trabalho escravo deixam de denunciar seus exploradores por temerem ser forçados a deixar o país ao contatar autoridades brasileiras. A garantia de proteção para quem está vulnerável visa fortalecer denúncias e preservar direitos básicos dos que foram submetidos à exploração.
A Repórter Brasil procurou as assessorias de imprensa da Polícia Militar e da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo para ouvir representantes da instituição sobre o caso, mas a reportagem foi orientada a procurar a Polícia Federal, para onde os trabalhadores resgatados foram encaminhados. De Brasília, o chefe nacional do Serviço de Repressão ao Trabalho Forçado da PF, delegado Érico Barboza Alves, afirmou que a informação divulgada pela PM está equivocada e garantiu que as vítimas não correm o risco de serem forçadas a deixar o país. “Se for verificada a condição de escravidão, existe um amparo que é feito, independente de ser estrangeiro ou não”, afirma, garantindo que os trabalhadores em questão não terão de pagar qualquer multa.
A reportagem tentou por três dias também contato com o delegado da Polícia Federal que ficou diretamente responsável pela ocorrência, mas a assessoria de imprensa da instituição em São Paulo não informou seu nome e disse que não seria possível entrevistá-lo. A PF afirmou que todos os trabalhadores vítimas de escravidão foram liberados após prestar depoimento e que foi aberto um inquérito para apurar o caso, que é de competência federal por envolver estrangeiros. As vítimas disseram que trabalhavam 16 horas por dia e recebiam somente 500 reais por mês. Além disso, relataram também a retenção de documentos, o que as impedia de sair do local.
Despreparo
O posicionamento institucional do representante da Polícia Militar preocupa as autoridades responsáveis pelas políticas nacionais de combate à escravidão. “Imagine os bolivianos que estão vendo a TV. Já pensou o pânico desnecessário? É uma informação errada que o policial militar passou na TV”, ponderou o auditor fiscal do trabalho Renato Bignami, que coordena o Programa de Erradicação do Trabalho Escravo da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE) – braço paulista do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
De acordo com a Polícia Federal, o MTE será chamado para se colocar sobre o caso durante as investigações do inquérito. “Infelizmente, como a SRTE apenas soube do caso posteriormente e pela imprensa, não pôde atuar porque o flagrante já havia sido desnaturado”, disse Renato. O auditor do trabalho explica que, sem a atuação da repartição no momento da fiscalização, as vítimas passam por uma “dificuldade adicional” para receber seus direitos trabalhistas, como verbas de seguro desemprego e do fundo de garantia (FGTS). Dentre outros, esses valores são garantidos a vítimas de trabalho escravo em libertações feitas com participação de auditores fiscais.
Sem o mapeamento da cadeia produtiva indicando quem se beneficia da produção, a equipe do 39º Batalhão da Polícia Militar que efetuou o resgate limitou-se a prender um dos bolivianos, que foi considerado o responsável pela situação dos demais imigrantes. Sua detenção aconteceu com base no artigo 149 do Código Penal, que tipifica o crime de trabalho escravo e prevê pena de dois a oito anos de prisão. O representante do MTE lamentou que a falta de informações sobre a produção em si impossibilitou a punição dos demais responsáveis pela situação encontrada. “Não há a responsabilização civil e trabalhista de eventuais empresas beneficiárias”, afirmou.
Não é o primeiro caso em que vítimas de escravidão acabam ameaçadas de ter de deixar o país por autoridades que deveriam acolhê-las. A própria Polícia Federal atuou de maneira equivocada em pelo menos dois casos envolvendo imigrantes. Em fevereiro de 2013, no Paraná, treze trabalhadores paraguaios foram multados por estarem em situação irregular e acabaram forçados a deixar o Brasil. No mês seguinte, no Mato Grosso do Sul, 34 vítimas da mesma nacionalidade – entre elas, sete adolescentes – passaram pelo mesmo constrangimento. Os casos, noticiados pela Repórter Brasil, motivaram críticas por parte de deputados federais integrantes da CPI do Trabalho Escravo, e levaram a Comissão Nacional de Combate ao Trabalho Escravo (Conatrae) a publicar uma série de recomendações técnicas para a PF sobre a questão migratória.
Falta de articulação
O caso acontece em um momento em que a Polícia de São Paulo passa a dar mais atenção ao trabalho escravo. Na quinta-feira, 16, a Secretaria de Segurança Pública anunciou uma segunda libertação, esta de 20 bolivianos pela Polícia Civil, também feita sem o MTE.
Na avaliação do auditor fiscal Renato Bignami, falta coordenação entre as autoridades paulistas que combatem o crime, o que poderia ser resolvido pela aprovação do Plano Estadual para Erradicação da Escravidão. “É fundamental que a fiscalização do trabalho esteja presente. A PM deveria ter feito contato com os auditores fiscais do trabalho e a Coetrae [Comissão Estadual para a Erradicação do Trabalho Escravo] deveria articular-se com a Secretaria de Segurança Pública”, lamentou.
A minuta do plano, entregue em agosto de 2013 ao Governo do Estado, prevê, dentre outras coisas, a capacitação de policiais sobre o trabalho escravo. Um ano e três meses depois, o documento ainda tramita nas secretarias do governo paulista. De acordo com Juliana Armede, integrante da comissão executiva da Comissão Estadual para a Erradicação do Trabalho Escravo (Coetrae-SP) e responsável pelo Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado, o plano encontra-se há cerca de um mês na Secretaria da Casa Civil – a última repartição por onde deve passar.
“É preciso que a polícia tenha mais conhecimento sobre normas internacionais. Não só a polícia, como todas as instituições que trabalham com imigrantes”, diz Juliana. Ela diz que a Secretaria de Justiça Estadual tem trabalhado com a Diretoria de Policiamento Comunitário e Direitos Humanos da PM sobre o tema: “Eles [a PM] vão soltar um relatório para todos os PMs do Estado sobre refugiados e imigração” para orientá-los sobre o que deve ser feito em operações como a do dia 12 de novembro.
A exemplo dos planos já ratificados em oito estados, o Plano Estadual para Erradicação da Escravidão prevê uma série de ações dos poderes Executivo e Judiciário para combater o trabalho em condições análogas às de escravos. O documento é resultado do trabalho da Coetrae-SP, frente criada em 2012 e composta por secretarias estaduais, tribunais das justiças do trabalho e federal, entidades do governo federal e da sociedade civil, da qual a Repórter Brasil participa como representante civil.
Em São Paulo, migrantes têm se mobilizado por direitos e, a exemplo do que aconteceu no ano passado, preparam uma nova marcha este ano. A manifestação está prevista para o próximo dia 25, às 16h, próximo ao Metrô Armênia.