A polícia de São Paulo, destaca o diretor, matou em apenas 6 meses, aproximadamente, quase o que todas as polícias dos Estados Unidos matam em um ano
André Caramante, Ponte
No país há uma “classe perigosa”, composta por jovens negros e moradores da periferia. É com esta premissa que opera a repressão policial no país, afirma o diretor da Anistia Internacional no Brasil, Atila Roque.
Em entrevista à Ponte, Roque diz ainda que existe, por parte da sociedade, grande aceitação das mortes cometidas pelos agentes das forças de segurança, principalmente devido à forma como normalmente esses crimes são retratados pela chamada “grande mídia”. A seguir, a entrevista com Roque:
PONTE – O total de mortos por PMs no estado de SP subiu de 269 (primeiro semestre de 2013) para 434 (primeiro semestre de 2014). Como o senhor avalia esse crescimento de 62% no número de mortos por PMs, seja no trabalho ou na folga?
ATILA ROQUE – Infelizmente essa variação reforça um padrão histórico de alta letalidade nas ações policiais decorrente de um conjunto de fatores, que incluem uma polícia formada para a “guerra” e para a eliminação do “inimigo”, despreparo técnico e psicológico dos profissionais que atuam na ponta do policiamento e, sobretudo, uma doutrina de segurança pública estruturada desde sempre por uma lógica de repressão e controle das “classes perigosas”, o que leva a uma alta concentração de jovens negros e pobres da periferia entre os mortos pela polícia.
Podemos acrescentar a isso uma naturalização da violência que resulta em um grau alto de aceitação por parte da sociedade –alimentada por uma grande indiferença da grande mídia sobre as circunstâncias em que essas mortes ocorrem – que acaba por considerar o que deveria ser percebido como um escândalo nacional, como um fato supostamente inevitável da luta contra o crime. Sem uma mudança de fundo na doutrina da segurança pública e na estrutura militarizada das polícias, juntamente com um compromisso efetivo das altas autoridades do estado, a começar pelo governador, com um policiamento voltado para a garantia do direito à segurança pública de todas as pessoas, independente da classe social, local de moradia ou cor da pele, continuaremos a conviver no Brasil e em São Paulo com a triste realidade de ter uma das polícias que mais mata e mais morre do mundo.
PONTE – Como o senhor classifica os índices de letalidade da PM de São Paulo?
ATILA ROQUE – São dados escandalosos. Estamos a caminho de voltar ao patamar de quase mil mortes por ano, somente no Estado de São Paulo, o mais rico e moderno do Brasil. Basta pensar que a polícia de São Paulo matou em apenas 6 meses, aproximadamente, quase o que todas as polícias dos Estados Unidos matam em um ano. Para se ter uma ideia, em 2012 a polícia da cidade de Nova Iorque matou (em serviço e fora de serviço) 16 pessoas. A da Filadélfia, no mesmo ano, matou 54 pessoas.
PONTE – Na sua opinião, como seria possível fazer com que a PM de São Paulo matasse menos?
ATILA ROQUE – É importante dizer que esse não é um desafio restrito a São Paulo, onde pelo menos temos acesso aos dados referentes a essas mortes. Com exceção de poucos estados, como é o caso de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, o Brasil simplesmente não sabe quantas pessoas morrem nas mãos das policias, seja em serviço ou fora de serviço. Isso em um país em que mais de 50 mil pessoas são vítimas de homicídio todos os anos é um fato de extrema gravidade, considerando que a primeira medida para se executar qualquer política de redução da letalidade policial é saber quanto o estado mata e em quais circunstâncias.
Em relação a São Paulo, é necessário um comprometimento mais amplo de todas as esferas do estado, em especial do governador e das instâncias legislativas, para a implementação de políticas efetivas de redução da letalidade, o que inclui não apenas treinamento e protocolos claros sobre as circunstâncias em que o uso de armas de fogo é aceitável, mas, sobretudo, investigação rigorosa e independente sobre as situações que resultam em mortes de suspeitos. A responsabilidade sobre isso cabe não apenas a Secretaria de Segurança Pública, mas especialmente às instâncias externas de controle, como o Ministério Público e outras instâncias da Justiça. O que temos visto, lamentavelmente, é um patamar alto de impunidade e baixo nível de investigação para situações de homicídios envolvendo policiais. Em geral a versão da polícia de que foi uma morte decorrente de reação por parte da pessoa suspeita costuma ser aceita como ponto de partida legítimo da investigação, com raras exceções – como, por exemplo, o caso dos dois homens mortos na semana passada quando, tudo indica, foram surpreendidos e mortos pelos agentes policiais em uma ação de pichação de um prédio e não de ação criminosa violenta. Nesse caso a investigação, esperemos, será capaz de apontar o que aconteceu de fato e a responsabilidade dos policiais envolvidos.
PONTE – Que avaliação o senhor faz da resolução nº 5, feita pela Secretaria da Segurança Pública em janeiro de 2013, que recomenda que a polícia não socorra feridos nas ruas e aguarde atendimento especializado?
ATILA ROQUE – Acho ainda cedo para avaliar plenamente os efeitos dessa medida. Em princípio ela se mostrou positiva, pois dificulta que se forjem os chamados autos de resistência e falsos socorros de pessoas executadas em ações criminosas de alguns policiais. Mas a redução da letalidade decorrente de ações policias e das mortes de policiais em serviço ou fora de serviço não depende de uma medida isolada, mas de um conjunto de fatores que formam a política de segurança pública como um todo e as ações das policiais em particular, inclusive bom treinamento, remuneração e apoio psicológico aos profissionais.