Mesmo protegidos por diversas leis e tratados internacionais, mães encarceradas e seus filhos têm direitos violados
por Andrea Dip – Agência Pública
Clarice* abre a porta de casa com o filho no colo, um menino bonito e falante de dois anos de idade, que mostra a roupa nova, o cachorro, se agarra no pescoço dela e diz “ó, essa é minha mãe”. Lá dentro, a avó ajuda a dar conta dos outros dois filhos, uma menina de 15 e um menino de 13, que chegam da escola.
Quando a entrevista começa a avó tira as crianças da sala e o sorriso desaparece do rosto de Clarice. “Eu tive dois filhos dentro do sistema penitenciário. O primeiro algemada pelos pés e pelas mãos”, diz. “Morava na rua por causa do crack e aos 18 anos me chamaram para participar de um assalto a um ônibus. Estava doente e grávida, e quando você está na fissura, não pensa. Fui presa, sentenciada a 5 anos e 4 meses. Tomei banho gelado os nove meses de gravidez. Quando minha bolsa estourou, fiquei umas quatro horas esperando a viatura. Fui de bonde (camburão) pro hospital, sentada lá atrás na lata, sozinha e algemada. Tive meu filho algemada, não podia me mexer. Fui tratada igual cachorro pelo médico. De lá fui pra unidade do Butantã com meu filho, achando que iria amamentar os seis meses, mas tinham reduzido pra três. Lembro que encostei a cabeça na grade e vi os pés da minha mãe e os da minha filha por debaixo da porta e pensei ‘é agora’. Pedi, implorei pra não levarem. Quando entreguei, nem olhei pra trás. Fiquei todo o período sem ver meus filhos porque era muito sofrido pra todo mundo. Nem perguntava se ele já estava andando, se tinha dentinho… Até hoje meu filho não é meu, é da minha mãe, a gente não conseguiu criar esse vínculo. Quando fui solta tive outro surto e voltei a morar na Cracolândia. Faz dois anos fui presa de novo, peguei aquela época da revitalização do centro, que eles prendiam todo mundo, a maioria usuário, não traficante. Eu tenho sete passagens por tráfico e se você pegar meus papéis vai ver que foi sempre uma pedra, um cachimbo e 5 reais …”
Ela respira fundo e retoma a história dessa última prisão: “Estava grávida de novo e tinha acabado de descobrir que meu namorado era HIV positivo. Pensei ‘pronto, acabou. Não vou fazer meu filho sofrer’”. Pegou então um dinheiro dado pela sogra e gastou tudo em pedras de crack: “Queria morrer de uma vez”. Antes de acender o primeiro cachimbo, porém, foi presa, acusada de tráfico. “Os policiais dizem que me viram pegando um dinheiro mas é mentira, juro pelo meu filho que naquele momento eu tava tão louca que só queria morrer”, diz.
Clarice foi levada para a Penitenciária Feminina da Capital quando fez o exame e descobriu que nem ela nem o filho tinham o vírus. Dali saiu de ambulância para o seu segundo parto. Desta vez ela não foi algemada – o uso de algemas durante o parto só foi proibido em 2012, apesar de consistir em óbvia violação de direitos humanos. A Pública teve acesso a uma decisão judicial de 30 de julho passado, condenando o Estado de São Paulo a pagarindenização a uma mulher algemada durante o parto em 2011 (a decisão na íntegra está no fim da reportagem).
Mas o tratamento recebido por Clarice depois do parto não melhorou.”Passei 15 dias fechada com meu bebê em um quarto muito pequeno, sem escovar o dente, lavar o cabelo, pentear, porque só me deram um pedaço de sabão”, conta. Para vestir, “uma calcinha descartável e o avental sempre sujo porque eles dão aquele aberto e eu tinha vergonha de ficar pelada na frente dos policiais (que vigiavam o quarto). Daí quando me traziam um limpo, colocava na frente e deixava o sujo atrás. Eu não reclamava porque sabia que ia ouvir: ‘Não tá feliz? Entrega o filho pra sua mãe ou manda pro abrigo e volta pra onde você tava’ porque é isso que a gente ouve 24 horas por dia.”
Do hospital Clarice foi com o bebê para o COC (Centro de Observação Criminológica) mas dessa vez não foi obrigada a se separar do filho; conseguiu um habeas corpus por problemas de saúde e, longe do crack, ficou morando com a mãe e os filhos, fazendo faxina, doce, sem conseguir emprego fixo nem mesmo no programa do governo para egressos. Há alguns dias recebeu a sentença do juiz, que a condenou a seis anos por tráfico. “A defensora que está me ajudando disse que a gente ainda tem uns recursos pra tentar mas eu durmo e acordo todo dia agarrada no meu bebê, com medo de tirarem ele de mim. Eu preciso de emprego fixo pro juiz. Se me mandarem pra lá de novo, eu não vou ter força. Se eu voltar pra lá, eu vou morrer”.
A história de Clarice, paulistana de 35 anos, é semelhante à de milhares de mulheres mães encarceradas no país. Ela também se encaixa no perfil da mulher em situação prisional no Brasil: “Jovem, de baixa renda, em geral mãe, presa provisória suspeita de crime relacionado ao tráfico de drogas ou contra o patrimônio; e, em menor proporção, condenadas por crimes dessa natureza” segundo a pesquisa “Dar a Luz na Sombra”, realizada por Ana Gabriela Mendes Braga (doutora e mestre em Criminologia e Direito Penal) e Bruna Angotti (mestre em Antropologia Social e especialista em Criminologia), do projeto “Pensando o Direito” da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça em parceria com o IPEA, que deve ser lançada nos próximos dias. As pesquisadoras visitaram penitenciárias em vários estados do país durante oito meses.
A quantidade de mulheres encarceradas no Brasil cresceu 42% entre 2007 e 2012, segundo o levantamento mais recente do InfoPen Estatística, do Ministério da Justiça. Em dezembro de 2007, havia 24.052 mulheres nas prisões brasileiras; cinco anos depois, 35.072 presas, correspondentes a 6,4% de um total de 548.003 presos. Entre 2007 e 2012, o crescimento das presas por tráfico de drogas foi de 77,11%, sendo o que mais encarcera mulheres, com 10,3% das condenações, de acordo com os dados do InfoPen. Em São Paulo, Segundo a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), 12.198 mulheres estão presas, sendo 9376 por tráfico de drogas.
O número de mulheres grávidas, com filhos pequenos ou amamentando começou a ser contabilizado e acompanhado recentemente no Estado de São Paulo – onde está a maior população carcerária do país – pelo programa “Mães do Cárcere” da Defensoria Pública de São Paulo. Em 2012 entraram para o sistema penitenciário paulista 2579 mães, com 6.027 filhos no total – 2.923 deles com menos de 7 anos; 74 estavam amamentando e 110, grávidas. Segundo informações da SAP, o estado tem hoje 118 bebês em unidades prisionais do estado.
São Paulo tem 8 unidades prisionais teoricamente preparadas para que as presas exerçam o direito à maternidade e as crianças o de ficar junto da mãe, principalmente nos primeiros anos de vida. Um direito violado mesmo no período de amamentação apesar das orientações do ministério da Saúde sobre a importância do leite materno até dois ou três anos de idade, como enfatiza o defensor público Bruno Shimizu, do Núcleo Especializado de Situação Carcerária. “O Estado diz para fazer de um jeito e o Estado mesmo não cumpre”, diz.
Violação de direitos de mães e filhos
O artigo 5o da Constituição Federal assegura às presidiárias “condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação”; A Lei de Execução Penal (LEP) exige que “os estabelecimentos penais destinados a mulheres” sejam dotados de “berçário, onde as condenadas possam cuidar de seus filhos, inclusive amamentá-los, no mínimo, até 6 (seis) meses de idade”, além de “seção para gestante e parturiente e de creche para abrigar crianças maiores de 6 (seis) meses e menores de 7 (sete) anos”. A LEP também estabelece preferência para “penas não privativas de liberdade” para mulheres grávidas e com filhos dependentes. Isso sem mencionar o Estatuto da Criança e do Adolescente e as Regras de Bangkok para o tratamento da mulher presa, aprovadas pela ONU em dezembro de 2010.
“Nós temos todas estas leis mas a maioria delas não é aplicada minimamente” diz o defensor Bruno Shimizu. “Em São Paulo a gente pode dizer com propriedade que estas creches não existem e que a criança fica no máximo 6 meses com a mãe. Depois é arrancada, mandada para a família da presa ou para um abrigo. Se não há vagas nas unidades preparadas, elas são separadas dos bebês na hora”, denuncia o defensor.
A ONG Artemis, que atua na promoção da autonomia feminina através de políticas públicas, tem acompanhado casos assim: “Nós recebemos a denúncia de que bebês de mulheres presas têm sido separados das mães alguns dias após o parto e encaminhados para abrigos com explicações por vezes muito vagas” diz a diretora jurídica da organização Ana Lúcia Keunecke. Procurada pela reportagem, uma voluntária do abrigo que não quis se identificar confirmou: “Chegaram três recém nascidos aqui nos últimos meses. Os relatórios dizem coisas como ‘ela teve um surto psicológico portanto não é capaz de cuidar’. Não existe muito rigor, depende da visão pessoal dos profissionais”, disse.
Por violações como essas a Artemis pretende levar o Brasil à Corte de Haia. “A questão das mães encarceradas é muito séria, principalmente do ponto de vista da Convenção Sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação contra a Mulher e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Não podemos mais permitir que essas mulheres tenham suas penas transformadas em perpétuas, tendo vínculos quebrados de forma tão dramática, perdendo a guarda de seus filhos e tendo tantos direitos violados”, diz Keunecke.
Condenadas por tráfico
Para a desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo Kenarik Boujikian Felippe a relação do judiciário com as presas é atravessada por conflitos de gênero e pelo rigor excessivo em relação a determinados crimes. “O Judiciário é muito duro com o tráfico e já existe culturalmente uma dureza em relação à conduta da mulher em relação a criminalidade. No meu gabinete, a pilha maior é de processos de tráfico mas a maioria não é presa com um volume grande de drogas”. Sobre as mães no cárcere, Kenarik diz: “Muito da não concordância com a permanência das crianças nos presídios é por conta das más condições dos locais. Mas você não pode tirar um direito porque não deu condições”.
A reportagem não obteve a autorização judicial antes do fechamento da matéria para visitar as unidades prisionais preparadas, mas ouviu queixas de falta de vagas, de inadequação de ambiente e de cuidados com mães e filhos. “A gente já recebeu várias denúncias tanto da falta de equipe médica quanto de alimentação, do local ser frio, na Penitenciária Feminina da Capital” diz a defensora pública Verônica Sionti sobre a unidade que recebe atualmente 74 bebês. Apesar de, segundo a SAP, mães e crianças receberem um kit com roupas, cobertor, itens de higiene e frequentar regularmente o pediatra, Laura*, funcionária do Sistema Penitenciário de São Paulo, conta que na ala de puérperas da PFC “não tem pediatra e tem poucos ginecologistas para uma população carcerária enorme”. A terapeuta ocupacional Luiza*, que trabalhou em uma unidade prisional hospitalar, também aponta problemas sérios. “Elas não recebiam nem um brinquedo para os bebês nem roupas suficientes. Muitos tinham algum tipo de atraso no desenvolvimento pelo simples fato de não terem estímulo, nada para pegar, morder.” O mais grave, porém, é a separação brutal de mães e bebês. “Imagine que esse bebê acorda e dorme olhando para essa mãe por seis meses. De repente isso acaba. Do ponto de vista do desenvolvimento dele e da constituição enquanto sujeito a gente não pode prever o que vai acontecer”, explica Luiza*.
Joana vai presa, os filhos também
A prisão de Joana por tráfico, há 4 anos, deixou marcas profundas em sua família. Mãe solteira de três filhos, única responsável pelo sustento da casa, ela ficou durante dois anos e sete meses na Penitenciária Feminina Sant’ana. “Quando eu fui presa espalhou, né? Minha menina de 12 foi para a casa da minha irmã, o mais velho, com 20, estava preso e o do meio, com 16 ficou morando sozinho na casa” lembra. Grávida de 4 meses ao entrar na prisão, acabou perdendo o bebê pela demora em obter socorro hospitalar, conta, mas logo começou a trabalhar dentro da penitenciária para mandar dinheiro pra casa. Com sua ausência, porém, o filho adolescente começou a roubar. “Eu ligava pra ele e ele dizia ‘olha mãe, tô saindo pra roubar. Não tenho o que comer e não vou ficar mendigando prato de comida pros outros’. Faz pouco tempo, ele também foi preso”, diz, já em liberdade – ela acabou de cumprir a pena em 2012.
A funcionária Laura* confirma que a maior parte das presas trabalha e continua sustentando as famílias, já que os pais costumam ser completamente ausentes. Como não existe licença maternidade na prisão, quando dão a luz tem de escolher entre entregar o filho e voltar para o trabalho ou deixar de mandar dinheiro para casa.
A juíza Kenarik aposta em uma mudança no próprio judiciário – citando como positivos encontros que têm sido realizados pelo CNJ sobre a questão de gênero. Na pauta do debate, a desagregação familiar provocada pela reclusão da mulher, que poderia ser minorada respeitando a preferência estabelecida pela lei por regimes semiabertos ou de prisão domiciliar. Nesse sentido, a dureza da legislação contra o tráfico e a visão discriminatória da mulher citadas pela juíza estão entre os primeiros obstáculos.
Estrangeiras
A situação das mulheres detentas é ainda pior quando são estrangeiras. Sem família ou amigos no país, sem residência fixa para ter direito à prisão domiciliar e geralmente com dificuldades de comunicação, elas têm de contar com a boa vontade dos profissionais do sistema penitenciário e dos consulados de seus países para seus filhos não irem direto para abrigos, como explica Isabela Cunha, do “Projeto Estrangeiras” do Instituto Trabalho e Cidadania (ITTC), que faz um acompanhamento jurídico e social dessas mulheres: “As estrangeiras não tem para quem entregar os bebês e o contato com as famílias ás vezes é bem difícil. Tem consulado que ajuda e tem consulado que não faz nada. E se a família não tem dinheiro para buscar a criança, a mãe é obrigada a mandar para o abrigo. Aí eles ficam sob custodia do judiciário da vara da infância”.
Michael Mary Nolan, presidente do ITTC, complementa que grande parte das estrangeiras presas têm filhos pequenos e passam por graves dificuldades financeiras. “Uma ou outra são presas por roubo, algumas vêm como escravas e acabam fazendo pequenos furtos na empresa. A maioria vai por tráfico e é presa com pequenas quantias, muitas vezes delatadas pelos próprios traficantes para alguém com mais drogas passar”, diz.
A filipina Muriel* é uma delas. Foi presa no Aeroporto de Guarulhos por tráfico de drogas, ainda no início da gravidez. Falando inglês com dificuldade, ela conta que teve muitos problemas para entender os funcionários, e teve que lutar para conseguir manter o filho com ela na Penitenciária Feminina do Butantã até os oito meses. “Eu sabia que sairia em pouco tempo e não queria que ele fosse para um abrigo”.Então o bebê foi enviado para o abrigamento. “Sofri muito, foi muito ruim ficar longe, mas o ITTC me ajudou a saber onde ele estava e quando eu saí para o regime aberto, três meses depois, fui atrás dele”. Com ajuda do ITTC, ela conseguiu um trabalho, um lugar para morar e hoje está com seu filho. Mas nem todas têm a mesma sorte.
“A gente conseguiu algumas prisões domiciliares de estrangeiras porque elas iam para a Casa de Acolhida, que é um espaço que recebe egressas e refugiadas. Mas a casa está lotada, e para prisão domiciliar elas precisam de endereço fixo. Até agora não tem nenhuma política pública nesse sentido. A prefeitura está abrindo um espaço e o Governo do Estado vai abrir outro, mas ainda não estão prontos e a gente não sabe se vão receber essas mulheres ou se serão para refugiadas apenas”, diz Isabela.
Segundo o ITTC há atualmente 4 estrangeiras gestantes na Penitenciária Feminina da Capital ; 3 estrangeiras na mesma unidade junto com seus filhos de 2 a 3 meses de idade; 5 estrangeiras presas com filhos abrigados e uma estrangeira no CPP Butantã cujo filho também está abrigado.
Veja aqui, em primeira mão, a decisão que condena o Estado de São Paulo a pagar indenização a uma mulher por dar à luz algemada:
*Os nomes foram trocados a pedido das entrevistadas
Colaboraram: Andréia MF e Jéssica Mota